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Constitucionalidade do marco legal das garantias pelo STF

Ao admitir a execução extrajudicial de garantias - lei 14.711/23 -, o STF demonstrou alinhamento com diretrizes modernas de política judiciária: doutrina brasileira e experiência estrangeira.

11/8/2025

O STF concluiu, em sessão virtual finalizada em 30/5/25, o julgamento conjunto das ações diretas de inconstitucionalidade 7.600, 7.601 e 7.608, por meio das quais se questionava a constitucionalidade de diversos dispositivos da lei 14.711/23, conhecida como marco legal das garantias. A norma introduziu no ordenamento jurídico brasileiro novos mecanismos extrajudiciais de execução de garantias, com destaque para a possibilidade de consolidação da propriedade em alienações fiduciárias de bens móveis, a execução extrajudicial de créditos hipotecários e a execução da garantia imobiliária em contextos de concurso de credores.

A controvérsia levada à apreciação da Corte Suprema foi promovida por entidades representativas da magistratura e dos oficiais de justiça, que alegavam que as inovações legislativas violariam princípios constitucionais estruturantes do processo, como a inafastabilidade da jurisdição, o contraditório e a ampla defesa. Entre os dispositivos impugnados, figuravam também os artigos que regulam o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis, gerando debates em torno da inviolabilidade do domicílio e da vedação ao uso privado da força.

O relator das ações, ministro Dias Toffoli, propôs a parcial procedência dos pedidos. A maioria do plenário acompanhou esse entendimento, vencidos parcialmente a ministra Cármen Lúcia e o ministro Flávio Dino.

Na tese fixada pela Corte, o Supremo afirmou expressamente a constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais instituídos pela lei 14.711/23 para consolidação da propriedade. Ao mesmo tempo, estabeleceu que nas diligências de localização e apreensão de bens móveis previstas nos §§ 4º, 5º e 7º do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969, devem ser resguardados direitos fundamentais como a vida privada, a honra, a imagem, o sigilo de dados, a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade do domicílio.

A decisão confirma uma tendência interpretativa que vem sendo consolidada em precedentes da Corte, como o julgamento do RE 627.106 (Tema 249), em que se reconheceu a compatibilidade entre a Constituição de 1988 e a execução extrajudicial prevista no decreto-lei 70/1966.

Do mesmo modo, no RE 860.631 (Tema 982), o Supremo afirmou a validade do procedimento extrajudicial para retomada de imóvel alienado fiduciariamente conforme previsto na lei 9.514/1997, ressaltando que os mecanismos estabelecidos não impedem o acesso ao Judiciário e devem ser compreendidos como manifestações legítimas da autonomia privada.

O marco legal das garantias amplia tal modelo ao permitir a realização de atos executivos extrajudiciais em novas hipóteses, com o protagonismo de agentes cartorários. Para o Supremo, a delegação de tais funções é totalmente admissível, do ponto de vista constitucional, desde que resguardadas as garantias mínimas de contraditório, ampla defesa e possibilidade de controle judicial, ainda que em ultima ratio.

Os conceitos acerca do acesso à justiça - e assim jurisdição - estão ultrapassados em seus contextos históricos e não estão aderentes às necessidades da atual sociedade, de modo que estão sendo ressignificados. A jurisdição deve ser vista como a declaração e a satisfação do direito, atividade a ser realizada por um terceiro imparcial, independente e equidistante das partes, devidamente investido para tanto, mas que não necessariamente um magistrado.1

Para Rodolfo Mancuso, é necessário compreender o conceito de jurisdição não como monopólio estatal, mas muito pelo contrário: trata-se de um conceito pluralista e participativo da distribuição da justiça, em modo justo e tempo razoável, por intermédio de um agente, órgão ou instância capacitada, ainda que fora da estrutura judiciária. Além disso, segundo o autor, o ordenamento jurídico oferece várias evidências da recepção dos equivalentes jurisdicionais, especialmente porque eles se oferecem como um alvitre, perfeitamente válido, na medida em que a justiça estatal é ofertada, mas não imposta.2

A ressignificação do acesso à justiça pode ser realizada por via da atualização dos conceitos conforme a ordem cronológica dos dispositivos constitucionais e legais. O CPC de 2015 trouxe em seu parágrafo 3º do art. 3º o comando de que não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. Já o texto constitucional de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXV, diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Assim, uma leitura mais atenta revela a sutileza do comando infraconstitucional, de modo a oferecer uma garantia mais ampla, não restrita à estrutura do Poder Judiciário, a quem é entregue o dever de prestar a jurisdição, mas não como um monopólio.3

A recepção dos equivalentes jurisdicionais, portanto, está mais que evidenciada no parágrafo 3º do art. 3º, CPC, sem deixar de observar que o jurisdicionado que não tenha suas questões resolvidas na esfera extrajudicial poderá acionar o Poder Judiciário - preferencialmente em caráter residual, em ultima ratio.

O voto do ministro Dias Toffoli tem muita relevância ao contextualizar a norma no movimento mais amplo de estruturação de um sistema de justiça multiportas, sintonizado com a busca por celeridade, efetividade e racionalidade econômica nas soluções de conflitos. Em sua fundamentação, há referência à experiência estrangeira - em especial ao modelo português de execução extrajudicial -, que teria inspirado parte da doutrina nacional a refletir sobre a viabilidade do deslocamento dos atos executivos para fora da esfera judicial sem sacrificar direitos fundamentais.

O Relator destacou, então, a doutrina da autora Flávia Pereira Ribeiro, cuja obra sobre a desjudicialização da execução civil foi expressamente mencionada no voto. A referência, pontual e tecnicamente situada, reforça a relevância da produção acadêmica brasileira na consolidação de soluções inovadoras, juridicamente sustentáveis e compatíveis com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal.

Segundo ela, em sua tese de doutorado, na maioria dos países europeus4 a execução de títulos executivos é realizada sem a interferência do Judiciário. Nesses países, a competência para a execução é de um agente de execução, que recebe o pedido de execução e lhe dá o devido processamento - desde que presentes os requisitos formais do título -, incluindo citações, notificações, penhoras e venda de bens. O Tribunal fica inteiramente fora desses procedimentos, salvo em situações excepcionais, quando é chamado a decidir os embargos do devedor - ultima ratio.

Como bem enfatizado pelo ministro relator Dias Toffoli5, até as reformas portuguesas iniciadas em 2003, o sistema executivo de matriz judicial de Portugal era exatamente igual ao sistema que se conhece no Brasil ainda hoje, no qual um agente público remunerado pelo Estado - juiz - realiza todas as atividades executivas, sejam elas jurisdicionais, sejam elas administrativas. Após as reformas, as atividades administrativas executivas foram transferidas para um agente privado, que se remunera de modo privado, ainda que exerça a atividade pública da execução.

A decisão do Supremo, ao admitir a execução extrajudicial de garantias nos moldes propostos pela lei 14.711/23, e ao mesmo tempo impor limites claros quanto à proteção dos direitos do devedor, demonstra maturidade institucional e equilíbrio interpretativo.

A Corte, assim, afastou a tradicional visão de que toda execução deve ser judicial, alinhando o Brasil às diretrizes mais modernas de política judiciária, de acordo com a doutrina brasileira e a experiência estrangeira.

________

1 RIBEIRO, Flávia Ribeiro. Desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2019. P. 18

2 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça. 3. ed. Editora JusPodivm: Salvador, 2019. p. 508

3 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; STANCATI, Maria Maria Martins Silva. Ressignificação do princípio do acesso à justiça à luz do art. 3º do CPC/2015. Revista de Processo. vol. 254/2016. São Paulo: Ed. RT, abr 2016. p.17-44

4 Exemplificando, (i) na França, a atividade executiva é realizada pelo hussier – um profissional liberal; (ii) na Alemanha, pelo gerichtsvollzieher – um funcionário público; (iii) em Portugal, pelo agente de execução – um profissional liberal; (iv) na Itália, pelo ufficiale giudiziario – um funcionário público; (v) na Suécia, pelo kronofogde – um funcionário público; e (v) na Espanha, conforme recentíssima reforma, pelo secretário judicial – um funcionário público.

A doutrina enfatiza a exitosa experiência portuguesa de reformulação de seu sistema de execução, o qual, até 2023, era similar ao brasileiro. Em Portugal, atualmente, há sistema desjudicializado de execução, a qual é conduzida por agente privado remunerado por honorários (Ribeiro, Flávia Pereira, p. 153 et seq.; e Execução Civil, p. 387 et seq.).

Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL 6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.

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