Migalhas de Peso

O afeto como motor dos direitos humanos

Os direitos humanos são uma conquista civilizatória das lutas sociais que só se mantém como paradigma civilizatório se tiver lastro numa escolha política-filosófica baseada no amor.

8/8/2025

Manter os filhos vivos é uma das principais funções de quem exerce a parentalidade, especialmente nos primeiros anos de vida da criança. Unida a esta importante função está a de criar seres humanos com valores compartilháveis numa sociedade plural, diversa e internacionalizada.

Estas atividades exercidas no âmbito privado das famílias são o motor determinante para o respeito aos direitos humanos. Nelson Mandela afirmava que se você pode ensinar alguém a odiar, também pode ensinar alguém a amar. Infelizmente, atualmente, muito se ensina a odiar e pouco a amar.

A própria noção de direitos humanos deixou de ser para muitos uma conquista civilizatória e passou ao arsenal de valores desprezíveis. Há muitas explicações sobre o como, e o porquê desta mudança de entendimento.

Neste momento, focamos apenas na falta de empatia por determinados grupos de pessoas, consideradas subumanas ou menos humanas, suas existências são valoradas diferentemente.1 Dito de outra forma, a falta de empatia desconsidera a alteridade do outro e representa uma forma de desamor.

Só mesmo a total ausência de empatia para explicar o quanto se tornou natural a repetição ano após ano do estratosférico número de pessoas mortas pela polícia no Brasil. Elas hoje representam 14% de todas as mortes violentas intencionais. Nos últimos 10 anos, foram mais de 60 mil mortos, a grande maioria jovens negros periféricos. Em 2024, foram 6243 vítimas da letalidade policial, 46 policiais mortos em serviço, 124 policiais mortos na folga e 126 policiais vítimas de suicídio2.

Triste. Mas o Brasil não parou.

Estas mortes são apenas mais um cruel dado de uma estatística publicada anualmente. Números que não causam comoção. Embora representem vidas ceifadas pelo próprio Estado.

Na Faixa de Gaza, já são mais de 50 mil crianças mortas desde outubro de 2023. São 28 crianças mortas por dia em virtude de ações violentas ou em resultado do bloqueio humanitário.3 Fome, desnutrição, impossibilidade de atendimentos médicos básicos, ausência de serviços públicos adequados. Apesar dos riscos pessoais, inúmeros Médicos Sem Fronteiras permanecem atuando na região, onde hospitais são alvos de bombardeios, e escreveram contundente relato sobre as condições inumanas as quais palestinos vêm sendo submetidos.4 Não são “apenas” relatórios. O genocídio do povo palestino vem sendo televisionado.

Mas o mundo não para.

A maioria dos países mantém contratos intactos com Israel mesmo diante da barbárie praticada pelo governo de Netanyahu. Intelectuais judeus como Noam Chomsky e Judith Butler alertam que a atual política do governo israelense não representa o povo judeu como um todo. Em verdade, milhares de judeus, inclusive judeus sionistas, são contra o massacre. Ainda assim, ele persiste.

Em ambos os casos, todas as normas jurídicas de direitos humanos vêm sendo reiteradamente descumpridas. No Brasil, há décadas relatórios da anistia internacional5 e da Human Rights Watch denunciam o quanto grande contingente da letalidade policial pode ser considerada execução sumária e não um ato de devido exercício do poder legal. Em Gaza, o bloqueio humanitário desafia não só o Sistema Internacional de Direitos Humanos como o direito de guerra que lhe é anterior.

Não há solução fácil para mudar esta realidade. Seria leviano propor qualquer tipo de ação individual ou coletiva que não passe pela atuação das instituições, pelas decisões de estados soberanos e que não leve em conta fatores econômicos e geopolíticos. Entretanto, há algo que toda pessoa pode fazer para redirecionar o debate e impedir a permanência da barbárie: amar.

Esta pode parecer uma proposta inocente, ou pouco “jurídica”, para muitos. Mas não é. Como nos ensina a filósofa Bell Hooks o amor não é apenas um sentimento individual - e por vezes mesquinho - ele se constitui numa prática ética e política que deve ser cultivada desde a infância.6 Sem ele, é impossível retomarmos os direitos humanos como uma conquista civilizatória das lutas sociais. É preciso uma escolha consciente em prol do amor, este amor que representa empatia, ação e se constitui como um fundamento ético para a luta por justiça social.7

Não há como ensinar/realizar direitos humanos, sem se debater alteridade, antirracismo, equidade de gênero, e direitos de coletivos oprimidos ao redor do mundo. Por isso, tamanha rejeição. A ojeriza não se direciona aos valores de direitos humanos em si. Enquanto eles beneficiavam apenas os grupos dominantes - homens brancos europeus - eram facilmente deglutidos como representantes de um patamar de civilidade a que todos deveriam aderir. Quando passam a ser bandeira de luta de diferentes grupos oprimidos, se tornam menosprezados.

Portanto, se a solução imediata passa por ações institucionais complexas, a própria existência dos direitos humanos como valores civilizatórios depende, sim, de escolhas individuais feitas no seio das famílias. Uma escolha por se despir de preconceitos, se desarmar de convicções pré-estabelecidas, e por “remover as máscaras sem as quais tememos não poder viver, porém, sabemos que não podemos continuar usando”.8 Uma escolha por amar os demais e se deixar afetar por suas dores. Essa é a escolha necessária de todas as pessoas defensoras de direitos humanos.

__________________

1 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018. P. 71 e ss.

2 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 20--. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/.

3 CNN BRASIL. UNICEF aponta que ações de Israel matam 28 crianças por dia em Gaza. CNN Brasil, S. l., 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/unicef-aponta-que-acoes-de-israel-matam-28-criancas-por-dia-em-gaza/. Acesso em: 6 ago. 2025.

4 MÉDICOS SEM FRONTEIRAS (MSF). Encurralados pela morte em Gaza: relatório de MSF expõe campanha israelense de destruição total. MSF, S. l., 2024. Disponível em: https://www.msf.org.br/noticias/encurralados-pela-morte-em-gaza-relatorio-de-msf-expoe-a-campanha-israelense-de-destruicao-total/. Acesso em: 6 ago. 2025.

5 ANISTIA INTERNACIONAL BRASIL. 'Você matou meu filho': homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Anistia Internacional, S. l., 2024. Disponível em: https://anistia.org.br/informe/voce-matou-meu-filho-homicidios-cometidos-pela-policia-militar-na-cidade-do-rio-de-janeiro/. Acesso em: 6 ago. 2025.

6 HOOKS, Bell. All About Love: New Visions. New York: William Morrow, 2000, p. 5.

7 HOOKS, Bell. All About Love: New Visions. New York: William Morrow, 2000, p. 5-10.

8 Baldwin, James. The Fire Next Time. New York: Penguin Modern Classics, 2016, p. 82.

Ivanilda Figueiredo
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UERJ. Diretora de Ensino, Articulação e Incidência Política da Tangará - Cultura em Direitos Humanos. É doutora em direito constitucional pela PUC-Rio.

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