O presente ensaio aborda, de maneira objetiva, a ilegalidade do pregão, enquanto modalidade de licitação, para a contratação de escritórios de advocacia, o que tem, infelizmente, se tornado cada vez mais comum, não obstante se tratar de conduta expressamente vedada por lei.
Como sabido, desde da anterior lei que regulamentava o pregão - lei federal 10.520/02, a referida modalidade de licitação sempre se destinou para a aquisição de bens e contratação de serviços comuns, in verbis:
Art. 1º Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta lei. Parágrafo único. Consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.
Os serviços de advocacia e consultoria jurídica, por sua natureza, não se qualificam como serviços comuns, ordinários, passíveis de licitação na modalidade pregão, seja pela tecnicidade e intelectualidade enquanto essência do exercício da profissão, seja pela complexidade e especificidade do serviço de maior amplitude, natureza incerta e peculiar.
A advocacia encarta-se, portanto, como um serviço de alta especialização e de técnica, além de trazer consigo o caráter de irrestrita confiança que deve nortear a relação jurídica cliente e advogado.
O pregão visa, primordialmente, a busca pelo menor preço, modalidade adequada para serviços que não guardem, na sua essência, o emprego da intelectualidade e para hipóteses que a qualidade da variação técnica seja irrelevante para a satisfação das necessidades da Administração Pública, o que obviamente não é a hipótese do exercício da advocacia. Assim dita, há tempos, Marçal Justen Filho1:
“o pregão foi concebido como um procedimento licitatório em que existe essencialmente competição sobre preço e em que não se instauram (por serem desnecessárias) disputas sobre capacitação do sujeito para executar o objeto nem sobre a qualidade do produto ofertado.”
A vigente lei de licitações (lei federal 14.133/20) ao definir os conceitos técnicos legais em seu artigo 6º, estabeleceu, expressamente, a diferença entre os denominados serviços comuns e os serviços especializados. Assim consta no texto legal:
Art. 6º Para os fins desta lei, consideram-se:
(...)
XIII - bens e serviços comuns: aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade podem ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado;
(...)
XVIII - serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual: aqueles realizados em trabalhos relativos a:
a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos;
b) pareceres, perícias e avaliações em geral;
c) assessorias e consultorias técnicas e auditorias financeiras e tributárias;
d) fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras e serviços;
e) patrocínio ou defesa de causas judiciais e administrativas;
f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
g) restauração de obras de arte e de bens de valor histórico;
Para além do enquadramento legal da advocacia, em todas as suas variáveis, como serviço especializado, a lei federal 14.133/20 veda, expressamente, a contratação de tais serviços pela modalidade pregão, conforme do disposto no parágrafo único do art. 29, in verbis:
Art. 29. A concorrência e o pregão seguem o rito procedimental comum a que se refere o art. 17 desta Lei, adotando-se o pregão sempre que o objeto possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado.
Parágrafo único. O pregão não se aplica às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia, exceto os serviços de engenharia de que trata a alínea “a” do inciso XXI do caput do art. 6º desta lei.
O legislador, para além da expressa vedação da utilização do pregão para serviços técnicos e intelectuais, como é o caso da advocacia, ainda estabeleceu, na lei de regência, notadamente no art. 36, a modalidade licitatória que deve ser preferencialmente empregada para a contratação de advogados e de escritórios de advocacia:
Art. 36. O julgamento por técnica e preço considerará a maior pontuação obtida a partir da ponderação, segundo fatores objetivos previstos no edital, das notas atribuídas aos aspectos de técnica e de preço da proposta.
§ 1º O critério de julgamento de que trata o caput deste artigo será escolhido quando estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos pela Administração nas licitações para contratação de:
I - serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, caso em que o critério de julgamento de técnica e preço deverá ser preferencialmente empregado;
Registra-se, por oportuno, que a contratação de advogados e de escritórios de advocacia pela Administração Pública se enquadra, inclusive, nas hipóteses de inexigibilidade de licitação previstas no art. 74 da lei federal 14.133/20, exatamente porque, além questão técnica, há a fidúcia como elemento indissociável do relação jurídica.
A inexigibilidade de licitação para contratação de serviços jurídicos foi, inclusive, alvo de recente julgamento pelo STF, no RE 656.558, no qual o Conselho Federal da OAB atuou como amicus curie. Após o julgamento, o presidente do Conselho Federal, Beto Simonetti2 destacou:
“A decisão do STF representa importante reconhecimento da valorização da advocacia e da necessidade de critérios justos e transparentes na contratação direta de advogados. Essa medida assegura que serviços especializados, que não podem ser adequadamente realizados pelo poder público, sejam contratados com respeito à expertise e à justa remuneração dos profissionais”
Não obstante o possibilidade de contratação por inexigibilidade de licitação - tema para outro artigo - a forma de contratação ainda se encontra no campo discricionário do gestor público que, muitas vezes, por receio das equivocadas interpretações dos órgãos de controle externo, opta por licitar o serviço, o que deve ser feito por outra forma que não o pregão.
A utilização do pregão, segundo Marçal Justen Filho3 deve ser reservada para as hipóteses que não há controvérsia lógica sobre a configuração de um bem ou serviço comum. Se dúvidas persistirem, desaconselhável a adoção da modalidade pregão.
Em idêntico raciocínio, comprovando a posição doutrinária, Maria Sylvia Zanella Di Pietro4 destaca que a opção do legislador pelo critério do preço e as restrições ao critério da técnica podem implicar em severas dificuldades à Administração nas licitações para determinados contratos em que, mesmo sem estarem presentes os requisitos previstos para o pregão, seria aconselhável considerar a técnica utilizada. Isso ocorre, em especial, segundo DI PIETRO, nos contratos de obras e serviços técnicos especializados, em que a seleção pelo critério exclusivo do preço pode levar a Administração Pública a ter que aceitar proposta que, sob o ponto de vista técnica, não é a melhor, o que, evidentemente, contraria o princípio constitucional da eficiência e, por consequência, o interesse público.
O Conselho Federal da OAB, desde o ano de 2011, ao julgar a consulta 2007.18.05916-02, da relatoria do conselheiro Federal Marcelo Cintra Zarif (BA), manifestou entendimento contrário à utilização de pregão para fins de contratação de serviços de advocacia, proferindo decisão com a seguinte ementa:
“Ementa 18/2011/COP. Pregão eletrônico. Menor preço. Contratação de serviços especializados de advocacia. Rejeição pela OAB, porquanto, de um lado, não garante a isonomia entre os participantes e, de outro, induz o lançamento de propostas em valores aviltantes para obtenção de contratação.”
Seguindo a linha de entendimento do Conselho Federal, no ano de 2014 a Comissão de Gestão Pública e Controle da Administração da OAB Seção Paraná adotou esse mesmo entendimento e emitiu parecer reputando ilegal o uso do pregão para a contratação de serviços especializados de advocacia, exatamente “por não garantir a isonomia entre os participantes” e por não serem, ditos serviços, considerados comuns, “já que demandam intelectualidade e individualização nos seus préstimos, discrepando de um serviço comum assim entendido aquele padronizado pelo mercado”.
Não há como se admitir que a prestação de serviços técnicos jurídicos de natureza contenciosa, com o patrocínio e ou defesa de causas judiciais e administrativa, seja licitado pela modalidade pregão, ignorando a análise técnica dos licitantes que interferem, diretamente, no serviço a ser executado e, consequentemente, no princípio da eficiência administrativa.
Ainda nesse sentido, a advocacia, sem menosprezo com qualquer outra área de atuação ou profissão, não pode ser tratada da mesma forma que a aquisição de materiais de escritório, serviços de limpeza e vigilância ou compra de alimentos, esses, sim, podem, a depender do caso, serem considerados serviços e produtos comuns e, por consequência, serem licitados pela modalidade pregão. Não se desconhece a importância do pregão enquanto modalidade licitatória, tanto que, há tempos, mesmo antes da expressa previsão legal (inciso LVI do art. 6º da lei federal 14.133/20), vinha sendo tratada pelo Tribunal de Contas da União como uma obrigatoriedade, quando se tratarem de serviços ou produtos comuns a serem licitados5.
Infelizmente alguns julgados, inclusive do próprio TCU, vem admitindo a contratação de serviços jurídicos por meio do pregão, o que, além de violar expressa previsão legal, ainda desvaloriza o exercício de uma profissão caracterizada essencialmente por sua intelectualidade. Os advogados, para além de serem indispensáveis à administração da Justiça, nos termos do art. 133 da Constituição da República, são também, como bem destacado pelo advogado Sérgio Leonardo (procurador geral do CFOAB) em sua recente sustentação oral perante o STJ6, a voz dos cidadãos perante o sistema de justiça, o que, por si só, já confronta com qualquer tentativa de enquadrar serviços jurídicos, quaisquer eles que sejam, como comuns ou ordinários.
É importante, portanto, que os licitantes e a OAB, adotem medidas administrativas e judiciais para impugnação de todos os editais que pretenderem a contratação de advogados ou escritórios de advocacia por meio do pregão, como se serviços comuns fossem, até porque, ao final, para além de não se alcançar a eficiência administrativa, há a desvalorização da advocacia e a canibalização/aviltamento dos honorários, o que vedado pela lei de regência da advocacia.
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1 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 457
2 https://www.oab.org.br/noticia/62676/advogado-pode-ser-contratado-por-ente-publico-sem-licitacao-decide-stf
3 JUSTEN FILHO. Marçal Pregão (comentários à legislação do pregão comum e eletrônico). 6. Ed. São Paulo. Dialética, 2013.
4 DI P/ETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. e‹:I. São Paulo: Atlas, 2o1J. p. 404.
5 Acórdão nº 868/2016 – TUC – Plenário – REPR 004.890/2014-0
6 RHC 212599 (2025/0059135-3) – sessão 05/08/2025 – 5ª Turma