A segurança jurídica constitui um dos pilares do Estado democrático e condição indispensável para que indivíduos e empresas planejem suas ações com previsibilidade. No Brasil, no entanto, a promessa de estabilidade esbarra em um sistema jurisprudencial marcado por oscilações e decisões contraditórias. Esse panorama é alimentado por diversos fatores que comprometem o ambiente de negócios e a confiança no Poder Judiciário; compreendê-los é fundamental para qualquer debate sério sobre o tema.
O CPC/15 impôs obrigações claras aos tribunais. O art. 926 determina que as cortes uniformizem sua jurisprudência e a mantenham estável, íntegra e coerente. O art. 927 lista as decisões que devem ser seguidas por juízes e tribunais - dentre elas, decisões do STF em controle concentrado, súmulas vinculantes, acórdãos repetitivos e orientações do plenário.
Para reforçar esse dever, o art. 30 da lei de introdução às normas do Direito Brasileiro obriga autoridades a atuarem no sentido de aumentar a segurança jurídica, inclusive mediante enunciados e consultas vinculantes.
Apesar desse arcabouço normativo, a realidade ainda está longe do ideal. A figura da modulação de efeitos, autorizada pelo art. 927, § 3º, do CPC e pelo art. 27 da lei 9.868/1999 para preservar a segurança jurídica ou o interesse social, vem sendo utilizada de forma tão recorrente que provoca o efeito inverso: sem critérios transparentes, transforma-se em mecanismo de incerteza.
Temos exemplos: O STJ já se posicionou de três formas distintas sobre qual município tem competência para cobrar o ISS: primeiro, adotou o critério do local da execução do serviço (decreto-lei 406/1968); depois, com a LC 116/03, fixou como regra o local do estabelecimento do prestador; em seguida, ampliou o conceito de estabelecimento e, na prática, retornou à regra do local da prestação, sem amparo legislativo ou doutrinário.
Tal vai-e-vem foi agravado pelo julgamento do REsp 1.060.210/SC, em 2013, quando o STJ definiu que a localização do fato gerador variava conforme o regime vigente. Resultado: contribuintes se viram diante de exigências conflitantes de diferentes municípios e têm dificuldade para recuperar tributos pagos indevidamente.
Outro exemplo recente é o Tema 1.079 do STJ. Por décadas, a corte pacificou que as contribuições ao Sesc, Senac, Sesi e Senai incidiam apenas sobre 20 salários-mínimos. Em maio de 2024, a 1ª seção, ao julgar o REsp 1.898.532/CE, revogou esse limite. Para evitar uma mudança brusca, modulou os efeitos para beneficiar apenas contribuintes que já tinham ação ou pedido administrativo até a data do julgamento. Além de deixar outras contribuições parafiscais em aberto, a modulação não esclareceu como as empresas que cumpriram a antiga orientação devem proceder. A consequência imediata foi um “vácuo jurídico” que abre espaço para interpretações divergentes e impõe às empresas o risco de autuações surpresa.
Houve também um retrocesso no direito à desaposentação. A 1ª seção do STJ, ao julgar o Tema 563 (REsp 1.334.488/SC), reconheceu que o aposentado poderia renunciar ao benefício anterior e obter nova aposentadoria mais vantajosa. Contudo, após o STF fixar tese contrária no Tema 503 (RE 661.256/SC), o STJ se retratou em 2019 e passou a negar o direito à desaposentação, afirmando que falta previsão legal. A reversão frustrou milhares de segurados que haviam confiado em precedentes firmados pela própria corte. Não se discutem apenas expectativas; trata-se de pessoas que reorganizaram suas vidas financeiras de acordo com uma orientação jurisprudencial que se desfaz repentinamente.
Por que a insegurança prejudica o país: A instabilidade jurisprudencial não é mero incômodo acadêmico; ela impacta diretamente a economia. Empresas brasileiras e estrangeiras, ao avaliar investimentos, levam em conta o risco jurídico. Quando entendimentos sobre tributos e direitos trabalhistas mudam de forma imprevisível, o custo de conformidade aumenta, a incerteza afasta investimentos e a litigiosidade se multiplica. O STF reconheceu que os repetitivos e os precedentes qualificados têm função de promover economia processual e segurança jurídica, mas esse objetivo perde força quando decisões vinculantes são desrespeitadas ou alteradas sem transição adequada.
Além disso, a reabertura de litígios por meio de ações rescisórias - como no caso do Tema 69 - corrói a confiança na coisa julgada, um dos pilares do Estado de Direito. Sem confiança na definitividade das decisões, a motivação para cumprir voluntariamente a ordem judicial diminui e o Judiciário se sobrecarrega ainda mais.
Dever-se-ia estabelecer critérios claros para modulação de efeitos: a modulação deve permanecer excepcional, com critérios objetivos e fundamentação explícita sobre o porquê da proteção de determinadas situações e exclusão de outras.
Tribunais de todo o país precisam cumprir o dever imposto pelos arts. 926 e 927 do CPC. Juízes que se afastarem de precedentes vinculantes devem fundamentar a distinção de modo consistente, sob pena de nulidade.
O Poder Legislativo deve revisar normas tributárias e previdenciárias para evitar interpretações divergentes, fornecendo parâmetros claros que reduzam a margem de variação dos tribunais.
O banco de precedentes do STJ e as plataformas de divulgação de teses precisam ser fortalecidos para garantir que advogados, magistrados e cidadãos tenham acesso rápido às decisões de caráter vinculante. A uniformização depende de comunicação eficiente.
A promessa de segurança jurídica proclamada na Constituição e no CPC não se realiza enquanto a jurisprudência brasileira permanecer volátil. O cenário atual - em que decisões mudam abruptamente, modulam-se efeitos sem critérios claros e se admite a revisão de sentenças transitadas em julgado - coloca em risco a estabilidade das relações sociais e econômicas. A crítica à insegurança jurídica não é mera retórica; é chamada à responsabilidade institucional de quem legisla e julga. Promover previsibilidade é dever constitucional e condição para o desenvolvimento do país.