Migalhas de Peso

PEC 66: Quando o Estado se beneficia da própria ineficiência

No Direito, há um princípio básico: ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Porém, a PEC 66/23 parece institucionalizar uma exceção a essa regra no Brasil.

15/8/2025

Existe um princípio basilar no Direito, ensinado ainda nas primeiras aulas da faculdade: ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Ou seja, um erro cometido por alguém não pode gerar vantagem para o próprio infrator.

No entanto, no Brasil, parece que esse princípio encontra uma exceção institucionalizada - e agora prestes a ser reforçada por uma proposta de emenda constitucional: a PEC 66/23.

Precatórios: Uma dívida adormecida que vira "ativo"

Para quem não está familiarizado com o termo, precatórios são dívidas judiciais do poder público com cidadãos ou empresas, já transitadas em julgado. São obrigações líquidas e certas, que deveriam ser honradas prontamente - afinal, derivam de uma decisão judicial definitiva.

Mas na prática, o que vemos é o oposto. A morosidade do Estado em pagar essas dívidas, somada ao efeito da inflação, acaba corroendo o valor real do crédito. E agora, com a PEC 66, essa distorção ganha contornos ainda mais graves: os entes públicos não apenas atrasam, mas também ganham o direito de pagar menos, com "descontos" substanciais, após longos períodos de inadimplência, corrigidos a IPCA + 2% ao ano.

O ciclo perverso da PEC 66

A proposta, aprovada em primeiro turno no Senado e prestes a ir a votação final, propõe uma nova dinâmica para o pagamento de precatórios:

  1. O Estado atrasa o pagamento.
  2. O tempo e a inflação desvalorizam o crédito.
  3. A PEC permite ao Estado oferecer descontos para quitar o valor reduzido.
  4. O credor, exausto, aceita - não por vontade, mas por necessidade.

Em outras palavras: a torpeza vira política pública.

E ainda pior: ao excluir os precatórios do teto de gastos e prever refinanciamentos de dívidas previdenciárias, a PEC cria a ilusão de sustentabilidade fiscal. Como bem alertou o senador Oriovisto Guimarães, a lógica econômica continua implacável: receita menos despesa é o que define o resultado fiscal - não a contabilidade criativa.

Um exemplo que vem de cima (e que não deveria)

Não se trata aqui de ignorar as dificuldades fiscais enfrentadas por estados e municípios. É necessário, sim, discutir soluções viáveis, escalonamentos e ajustes. Mas o que não podemos aceitar é a legitimação da ineficiência como vantagem. O Estado deveria ser o primeiro a honrar seus compromissos, especialmente aqueles reconhecidos pela Justiça.

Infelizmente, o recado que a PEC 66 transmite é outro: "Se atrasar bastante e insistir o suficiente, você poderá pagar menos do que deve."

Que tipo de cultura institucional estamos reforçando com isso?

A quem interessa?

Empresas privadas não têm esse privilégio. Cidadãos comuns tampouco. Se uma dívida não é paga, juros e penalidades se acumulam. Mas para o setor público, a conta parece funcionar ao contrário. E o custo - como sempre - recai sobre o contribuinte, o investidor e o cidadão que já esperou demais por uma reparação devida.

A provocação que deixo:

Será que estamos dispostos a aceitar que o Estado se beneficie da própria torpeza?

Ou chegou a hora de exigir que as regras de responsabilidade, integridade e pontualidade sirvam igualmente para todos? O debate está aberto - e é urgente.

Luciano Curi
COO da Sul Investimentos, +20 anos em Precatórios. Especialista em análise, precificação e gestão de FIDCs, com foco em performance e mitigação de riscos.

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