Existe um princípio basilar no Direito, ensinado ainda nas primeiras aulas da faculdade: ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Ou seja, um erro cometido por alguém não pode gerar vantagem para o próprio infrator.
No entanto, no Brasil, parece que esse princípio encontra uma exceção institucionalizada - e agora prestes a ser reforçada por uma proposta de emenda constitucional: a PEC 66/23.
Precatórios: Uma dívida adormecida que vira "ativo"
Para quem não está familiarizado com o termo, precatórios são dívidas judiciais do poder público com cidadãos ou empresas, já transitadas em julgado. São obrigações líquidas e certas, que deveriam ser honradas prontamente - afinal, derivam de uma decisão judicial definitiva.
Mas na prática, o que vemos é o oposto. A morosidade do Estado em pagar essas dívidas, somada ao efeito da inflação, acaba corroendo o valor real do crédito. E agora, com a PEC 66, essa distorção ganha contornos ainda mais graves: os entes públicos não apenas atrasam, mas também ganham o direito de pagar menos, com "descontos" substanciais, após longos períodos de inadimplência, corrigidos a IPCA + 2% ao ano.
O ciclo perverso da PEC 66
A proposta, aprovada em primeiro turno no Senado e prestes a ir a votação final, propõe uma nova dinâmica para o pagamento de precatórios:
- O Estado atrasa o pagamento.
- O tempo e a inflação desvalorizam o crédito.
- A PEC permite ao Estado oferecer descontos para quitar o valor reduzido.
- O credor, exausto, aceita - não por vontade, mas por necessidade.
Em outras palavras: a torpeza vira política pública.
E ainda pior: ao excluir os precatórios do teto de gastos e prever refinanciamentos de dívidas previdenciárias, a PEC cria a ilusão de sustentabilidade fiscal. Como bem alertou o senador Oriovisto Guimarães, a lógica econômica continua implacável: receita menos despesa é o que define o resultado fiscal - não a contabilidade criativa.
Um exemplo que vem de cima (e que não deveria)
Não se trata aqui de ignorar as dificuldades fiscais enfrentadas por estados e municípios. É necessário, sim, discutir soluções viáveis, escalonamentos e ajustes. Mas o que não podemos aceitar é a legitimação da ineficiência como vantagem. O Estado deveria ser o primeiro a honrar seus compromissos, especialmente aqueles reconhecidos pela Justiça.
Infelizmente, o recado que a PEC 66 transmite é outro: "Se atrasar bastante e insistir o suficiente, você poderá pagar menos do que deve."
Que tipo de cultura institucional estamos reforçando com isso?
A quem interessa?
Empresas privadas não têm esse privilégio. Cidadãos comuns tampouco. Se uma dívida não é paga, juros e penalidades se acumulam. Mas para o setor público, a conta parece funcionar ao contrário. E o custo - como sempre - recai sobre o contribuinte, o investidor e o cidadão que já esperou demais por uma reparação devida.
A provocação que deixo:
Será que estamos dispostos a aceitar que o Estado se beneficie da própria torpeza?
Ou chegou a hora de exigir que as regras de responsabilidade, integridade e pontualidade sirvam igualmente para todos? O debate está aberto - e é urgente.