Nos últimos anos, consolidou-se no setor de saúde suplementar uma nova forma de lidar com o risco inerente ao negócio: combater fraudes, presumindo-as. O que poderia ser uma ação legítima de proteção ao bom funcionamento dos planos de saúde virou, em muitos casos, uma política institucional de restrição sistemática de direitos, com impacto direto sobre pacientes e prestadores.
Decisões judiciais recentes demonstram um padrão no qual operadoras rebaixam a cobertura de tratamentos contínuos de alta complexidade, alegando supostos indícios de fraude por parte de clínicas, mas acabam por punir, sem provas, o elo mais frágil da cadeia: o beneficiário. O reembolso é drasticamente reduzido, não porque o contrato mudou formalmente, mas porque a interpretação da cobertura é reconfigurada de forma unilateral, desconsiderando o histórico assistencial e a boa-fé contratual.
Essa inversão da lógica jurídica, da presunção de inocência para a presunção genérica de má-fé, afeta diretamente o direito fundamental à saúde. Quando operadoras alegam “fraude” sem apresentar provas e, com isso, reconfiguram o que está ou não incluído na cobertura contratual, o que está em jogo não é só uma disputa financeira, é a interrupção do cuidado. É a vida do paciente crônico que deixa de realizar o tratamento que mantinha há anos e do qual sua sobrevivência depende. Ou do idoso que, repentinamente, passa a ser visto como cúmplice de um suposto esquema. É o Judiciário, o Ministério Público e até a Polícia que passam a ser acionados de forma padronizada para sustentar uma política privada de contenção de custos.
A lógica por trás dessas práticas se insere num movimento mais amplo de verticalização do setor. Operadoras como SulAmérica - após sua incorporação pela Rede D’Or -, Hapvida-NotreDame Intermédica, Amil e, em certas regiões, Bradesco Saúde, vêm construindo redes assistenciais próprias ou preferenciais, nas quais controlam não apenas o financiamento, mas também a prestação direta dos serviços. O modelo cria incentivos para restringir o acesso de pacientes a prestadores independentes, muitas vezes por meio da desvalorização da cobertura, da redução do reembolso e da criação de barreiras burocráticas disfarçadas de compliance.
O Judiciário tem começado a reagir. Em ações recentes, como a que envolveu um idoso de 79 anos em São Paulo, o Tribunal reconheceu o caráter abusivo da conduta da operadora, que reduziu em mais de 70% o reembolso de um tratamento de alta complexidade com base apenas na escolha da clínica, sem qualquer indício concreto contra o beneficiário. A decisão foi categórica: “tamanha divergência não pode vir em desfavor do consumidor que, de resto, é a parte vulnerável da relação de consumo”.
Não se combate fraude atacando direitos. O verdadeiro compromisso com a integridade exige provas, critérios técnicos, contraditório e respeito ao contrato. Presumir culpa e reorganizar a cobertura com base em suspeitas genéricas não é fiscalização, é exclusão travestida de gestão.