Introdução
A Constituição da República de 1988 representou um marco no processo de afirmação dos direitos sociais no Brasil, alçando a saúde à condição de direito fundamental de todos e dever do Estado (art. 196). Essa normatividade, contudo, não se restringiu ao plano programático, mas instituiu dever jurídico imediato, exigível pela via judicial sempre que a omissão ou a insuficiência estatal comprometer a preservação da vida e da dignidade humana. É nesse contexto que emerge o fenômeno da judicialização da saúde, especialmente visível nas demandas por fornecimento de medicamentos e insumos não incorporados ao SUS.
A expansão desse fenômeno não é acidental, mas sintoma de um sistema de saúde tensionado pela escassez de recursos, pela velocidade dos avanços científicos e pela morosidade dos processos de incorporação de novas tecnologias. Como observa Daniel Sarmento, a atuação judicial pode ser um instrumento legítimo para assegurar o acesso a tratamentos necessários para a preservação da vida e da dignidade humana. Ao mesmo tempo, porém, não faltam críticas à intervenção jurisdicional excessiva, acusada de comprometer a separação de poderes e de gerar desequilíbrios orçamentários capazes de afetar a universalidade do SUS.
A jurisprudência dos tribunais superiores tem buscado enfrentar essa tensão por meio da fixação de teses vinculantes que estabelecem balizas objetivas para a concessão judicial de medicamentos não incorporados. O STF, em julgados paradigmáticos (Temas 6, 500, 793 e 1.234), delimitou o espaço legítimo de intervenção do Judiciário, ora restringindo a concessão a situações excepcionais, ora reafirmando a solidariedade entre os entes federativos, ora disciplinando a competência em razão do custo anual do tratamento. O STJ, por sua vez, no julgamento do Tema 106, instituiu critérios probatórios cumulativos que visam uniformizar a jurisprudência e mitigar a fragmentação decisória.
No campo doutrinário, o debate também se estrutura entre legitimadores e críticos da judicialização. De um lado, autores como Daniel Sarmento e Luiz Henrique da Silva defendem a intervenção judicial como instrumento de efetivação dos direitos fundamentais em casos excepcionais. De outro, Lenio Streck adverte para os riscos do ativismo judicial e da erosão da separação de poderes, reclamando maior deferência às escolhas políticas do Executivo. A literatura contemporânea, a exemplo de Luiz Eduardo Fernandes Pantaleão, busca oferecer critérios objetivos que permitam compatibilizar a proteção individual com a racionalidade sistêmica.
A presente investigação tem como objetivo examinar, à luz da doutrina e da jurisprudência recente, as principais dimensões da judicialização da saúde no Brasil, com especial atenção ao fornecimento de medicamentos e insumos não incorporados ao SUS. Parte-se da premissa de que a dogmática jurídica não pode restringir-se a um modelo puramente descritivo - que apenas reproduza textos normativos ou ementas de julgados -, mas deve reconhecer o caráter adscritivo e criativo da interpretação jurídica, como já advertira Humberto Ávila. Nesse sentido, pretende-se propor uma leitura crítica e estruturada do fenômeno, capaz de conciliar a tutela da dignidade da pessoa humana com a necessidade de critérios intersubjetivamente controláveis que assegurem a sustentabilidade do sistema público de saúde.
1 A dimensão constitucional do direito à saúde
1.1 O art. 196 da Constituição da República e a centralidade do direito fundamental à saúde
O ponto de partida para a análise da judicialização da saúde encontra-se na própria tessitura normativa da Constituição da República. O art. 196 da Constituição de 1988 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Não se trata, portanto, de mera disposição programática ou de promessa política, mas de um direito fundamental social de eficácia imediata, dotado de normatividade bastante para vincular diretamente o Estado e conferir ao indivíduo uma posição jurídico-subjetiva de exigibilidade.
A compreensão de que a saúde é direito fundamental insere-se em um movimento mais amplo de constitucionalização de prestações estatais básicas, que, ao mesmo tempo em que reforçam a dignidade da pessoa humana, projetam o desafio de concretizar tais direitos em um ambiente de recursos escassos. O constituinte, ao erigir a saúde como direito universal, não se limitou a reconhecer uma aspiração social, mas vinculou os poderes públicos a uma obrigação positiva de organizar políticas públicas efetivas, de modo a assegurar o mínimo indispensável à preservação da vida e à manutenção da integridade física e psíquica dos indivíduos.
Nesse sentido, a doutrina tem reconhecido a centralidade da saúde no catálogo dos direitos sociais. Para Raphael Silva Rodrigues, Lucas Pires Raydan e Thiago Penido Martins, “a saúde constitui um direito fundamental de cunho social expressamente estabelecido na Constituição de 1988”.1 De igual modo, Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo destacam que “a consagração constitucional de um direito fundamental à saúde pode ser apontada como um dos principais avanços da Constituição de 1988”.2 A normatividade robusta do art. 196 da Constituição, portanto, não admite interpretação que o reduza a enunciado programático: ele institui, desde logo, um dever jurídico imposto ao Estado.
A jurisprudência dos tribunais superiores reflete esse entendimento. O STF, em diversas oportunidades, tem ressaltado que o direito à saúde “se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados” (RE 855.178/SE, Tema 793 da repercussão geral, plenário, Rel. Min. Luiz Fux, Red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, j. 23/5/19, DJe 16/4/20).3 Essa compreensão, reafirmada em casos mais recentes, como na Rcl 49.890/DF (Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª turma, j. 22/3/22, DJe 1/6/22),4 confere densidade ao caráter fundamental do direito, permitindo ao Judiciário intervir sempre que a omissão estatal comprometer a concretização do mandamento constitucional.
A centralidade do art. 196, todavia, não se esgota no reconhecimento da saúde como direito subjetivo. Ele também funciona como princípio estruturante do SUS, norteando a organização e a repartição de competências entre União, Estados e municípios. O desenho constitucional elegeu a universalidade e a igualdade de acesso como critérios de justiça distributiva, de modo que a efetividade do direito à saúde depende de políticas abrangentes e equitativas. A tensão que se instaura com a judicialização decorre justamente desse paradoxo: a necessidade de garantir direitos individuais frente à limitação dos recursos públicos e à estrutura coletiva do sistema.
Portanto, o art. 196 da Constituição deve ser compreendido como núcleo normativo que, por um lado, garante a exigibilidade judicial imediata da saúde como direito fundamental e, por outro, condiciona essa exigibilidade à observância de políticas públicas universais, abrindo espaço para uma reflexão mais complexa sobre os limites e possibilidades da intervenção judicial nesse campo.
1.2 A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial
A leitura sistemática da Constituição de 1988 revela que a proteção da saúde não pode ser dissociada do princípio fundante da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III. A tutela da vida e da integridade física não constitui apenas expressão de um direito social, mas integra o núcleo essencial da dignidade, concebida como condição de possibilidade para o exercício de todos os demais direitos fundamentais. O acesso a medicamentos e insumos indispensáveis ao tratamento de enfermidades graves traduz, nesse contexto, a garantia de um mínimo existencial, categoria que opera como limite infranqueável à discricionariedade estatal na implementação de políticas públicas.
O mínimo existencial corresponde ao patamar de prestações materiais indispensáveis para a sobrevivência digna do indivíduo, funcionando como cláusula de contenção contra decisões administrativas que, sob o pretexto da reserva do possível, neguem a efetividade de direitos fundamentais básicos. Ao Estado não é dado, em nome de restrições orçamentárias ou da conveniência administrativa, recusar o fornecimento de insumos e medicamentos que assegurem a preservação da vida. Como ensina Daniel Sarmento, a eficácia dos direitos fundamentais se projeta sobre a própria atuação do Poder Judiciário, de modo que “em casos de omissão do Estado, a judicialização pode ser um instrumento legítimo para garantir o acesso a tratamentos e medicamentos necessários para a preservação da vida e da dignidade humana”.5
De outra parte, a crítica ao excesso de judicialização sustenta que a intervenção judicial ilimitada pode comprometer a equidade e a racionalidade distributiva do sistema de saúde. Lenio Streck, ao problematizar o ativismo judicial, alerta que “o Judiciário deve atuar com cautela, respeitando a discricionariedade do Executivo e as escolhas políticas em matéria de saúde pública, para evitar decisões que comprometam a sustentabilidade do sistema”.6 Aqui se percebe a tensão entre a concretização imediata do direito à saúde, como expressão da dignidade, e a necessidade de preservar a integridade das políticas públicas universais.
O STF, em mais de uma oportunidade, tratou dessa tensão. No julgamento do RE 566.471 (Tema 6 da repercussão geral, plenário, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. p/ o acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 6-13/9/24, DJe 10/10/24), a Corte firmou entendimento no sentido de que, embora a regra seja a impossibilidade de fornecimento de medicamentos não incorporados às listas do SUS, admite-se, em caráter excepcional, a concessão judicial quando presentes requisitos cumulativos, entre os quais a demonstração da imprescindibilidade do tratamento para a preservação da vida e a inexistência de alternativa terapêutica eficaz.7 O mínimo existencial funciona, portanto, como cláusula que permite, em hipóteses excepcionais, afastar a discricionariedade administrativa.
Também o STJ, no julgamento do REsp 1.657.156/RJ (Tema 106, 1ª seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 25/4/18, DJe 4/5/18), enfatizou a necessidade de se verificar, cumulativamente, a imprescindibilidade clínica, a hipossuficiência econômica e a existência de registro sanitário na Anvisa como condições para a intervenção judicial.8 A jurisprudência revela, assim, um movimento de racionalização: não se nega a centralidade da dignidade e do mínimo existencial, mas se estabelece uma moldura de critérios objetivos que permitem harmonizar a tutela individual com a sustentabilidade do sistema.
A dignidade da pessoa humana, portanto, não é apenas um princípio retórico, mas o fundamento normativo que legitima a intervenção judicial quando a omissão estatal coloca em risco a sobrevivência ou a integridade do indivíduo. O mínimo existencial atua como núcleo duro desse princípio, impondo ao Estado prestações irredutíveis que não podem ser condicionadas pela reserva do possível. Contudo, a efetivação dessa garantia exige balizas objetivas, sob pena de transformar a judicialização em instrumento de privilégio, em detrimento da universalidade do sistema público de saúde.
1.3 A reserva do possível e os limites orçamentários
O reconhecimento do direito à saúde como direito fundamental não elimina a necessidade de considerar os limites materiais e orçamentários impostos ao Estado. É nesse cenário que surge a problemática da chamada reserva do possível, expressão que designa a limitação fática e financeira da atuação estatal em face da escassez de recursos. Em termos jurídicos, a reserva do possível reflete o dever de compatibilizar a concretização dos direitos fundamentais com a disponibilidade orçamentária e com as escolhas públicas previamente legitimadas pelos órgãos de formulação de políticas de saúde.
Ocorre, todavia, que a invocação da reserva do possível não pode ser manejada como um argumento absoluto de denegação do direito à saúde. A jurisprudência dos tribunais superiores, ao enfrentar demandas por medicamentos e insumos não incorporados ao SUS, tem rejeitado o uso indiscriminado da limitação orçamentária como obstáculo intransponível. O STF, ao fixar a tese do Tema 793 da repercussão geral (RE 855.178/SE, plenário, Rel. Min. Luiz Fux, Red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, j. 23/5/19, DJe 16/4/20), reafirmou a responsabilidade solidária dos entes federativos no fornecimento de tratamentos de saúde, ressaltando que cabe ao Judiciário direcionar o cumprimento da obrigação conforme as regras de repartição de competências, sem que a alegação de falta de recursos constitua causa legítima de exclusão de responsabilidade.9
No mesmo sentido, o STJ, ao consolidar os requisitos para a concessão de medicamentos não incorporados (Tema 106, REsp 1.657.156/RJ, 1ª seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 25/4/18, DJe 4/5/18), deixou claro que o exame judicial não pode ser reduzido a uma análise financeira abstrata, mas deve considerar a imprescindibilidade clínica do medicamento, a incapacidade econômica do paciente e a existência de registro sanitário. Trata-se de impor critérios objetivos que, de um lado, resguardem o direito fundamental, e, de outro, mitiguem a utilização indiscriminada da reserva do possível como cláusula de denegação.10
A doutrina, de igual modo, problematiza a utilização da reserva do possível como argumento de bloqueio absoluto. Para Luiz Eduardo Fernandes Pantaleão, o aumento das demandas judiciais por prestações de saúde revela a necessidade de critérios de racionalização, que evitem tanto a concessão irrestrita de tratamentos de alto custo quanto a negativa genérica fundada em restrições financeiras.11 Em outra perspectiva, Luiz Henrique da Silva observa que, mesmo diante de restrições orçamentárias, “a decisão do STF no Tema 6 manteve a possibilidade de concessão judicial em situações excepcionais”, de modo a preservar a saúde como núcleo essencial do mínimo existencial.12
A reserva do possível, portanto, deve ser compreendida em chave de ponderação: embora a escassez de recursos seja um dado inescapável da realidade, não pode converter-se em subterfúgio para negar direitos fundamentais. Cabe ao Judiciário, valendo-se de critérios intersubjetivamente controláveis - como os parâmetros fixados pelo STF e pelo STJ -, estabelecer uma linha de equilíbrio entre a proteção da vida e da dignidade do indivíduo e a manutenção da sustentabilidade do sistema público de saúde. O desafio consiste em impedir que o discurso da limitação financeira se torne uma justificativa automática para a omissão estatal, sem, contudo, permitir que a judicialização solape por completo a racionalidade distributiva das políticas públicas.
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