I - Introdução
O avanço das discussões sobre diversidade e inclusão no ambiente corporativo tem trazido novos desafios jurídicos, especialmente quando se trata da utilização, por pessoas trans, de espaços tradicionalmente segregados por sexo. Um dos pontos mais delicados diz respeito ao uso de alojamentos e banheiros por trabalhadores transgêneros.
Neste artigo, analisamos duas situações práticas envolvendo colaboradores trans e as obrigações jurídicas da empresa frente a essas demandas, com base na legislação vigente e nas boas práticas já consolidadas no meio jurídico e institucional.
Dois foram os cenários descritos na consulta que deu origem a este artigo:
1. Homem trans
Embora tenha sido registrado com nome feminino, o colaborador passou por transição de gênero e hoje se identifica como homem. Ele reside no alojamento masculino, compartilhando o espaço com outros trabalhadores cisgêneros do mesmo gênero.
Dúvidas apresentadas:
- É necessário oferecer alojamento individual?
- A empresa pode mantê-lo no dormitório coletivo masculino?
2. Mulher trans
A colaboradora, registrada com nome masculino, atualmente se identifica como mulher trans. Ocupa função de liderança e, por logística interna, permanece no alojamento compartilhado com homens. Essa escolha parte da própria trabalhadora, que expressa preferência por permanecer junto à equipe.
O que diz a legislação trabalhista?
A NR 24 trata dos alojamentos de trabalhadores. Segundo essa norma, "os dormitórios dos alojamentos devem ser separados por sexo." (NR 24.7.2, alínea “d”)
O critério, portanto, é o sexo, e não a identidade de gênero. Mas aqui reside justamente o ponto de tensão: como aplicar essa norma diante da realidade de pessoas trans?
Homem trans em alojamento masculino: pode?
Sim. Se o colaborador se identifica como homem, deve ser tratado juridicamente como tal. Ainda que biologicamente tenha sido registrado como do sexo feminino ao nascer, sua identidade de gênero masculina prevalece. Assim, é legítimo e adequado que ele permaneça no alojamento masculino, não sendo necessária a oferta de espaço individualizado - inclusive porque isso poderia configurar segregação.
Mulher trans em alojamento masculino: deve ser transferida?
Sim. Ainda que a colaboradora deseje permanecer no dormitório masculino, a empresa não pode permitir essa permanência, pois isso violaria diretamente a NR 24.7.2, que impõe a separação por sexo.
Neste ponto, vale destacar que, embora a vontade da trabalhadora deva ser ouvida e respeitada, não pode se sobrepor às obrigações legais da empresa. A permanência de uma mulher trans em alojamento masculino configura risco não só de autuação administrativa, mas também de responsabilidade civil por dano moral, caso ela venha a se sentir exposta ou constrangida - mesmo que inicialmente tenha optado por ficar ali.
A identidade de gênero como referência
Embora a CLT e as normas regulamentadoras não tragam regras específicas sobre pessoas trans, portarias internas de órgãos públicos e a jurisprudência trabalhista caminham no sentido de que o uso de espaços segregados (banheiros, vestiários, dormitórios) deve respeitar a identidade de gênero, e não o sexo biológico.
Nesse sentido, temos a portaria 1.036/15, do Ministério Público do Trabalho, que garante o uso de banheiros conforme o nome social e a identidade de gênero, vedando a criação de espaços exclusivos para pessoas trans. Igualmente, a portaria PGR/MPU 104/18, que reforça a proteção da identidade de gênero no uso de espaços coletivos.
Além disso, decisões judiciais têm reconhecido o direito de pessoas trans utilizarem o banheiro de acordo com sua identidade, com indenizações por danos morais em casos de violação, como já decidiu por exemplo, o TRT da 9ª região, no julgamento do RO 97520245090088, em 10 de dezembro de 2024.
Nesse caso, foi reconhecido o assédio moral praticado contra uma trabalhadora trans impedida de usar o banheiro feminino e tratada de forma vexatória no ambiente de trabalho. O tribunal confirmou a condenação da empresa ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 15.000,00.
Transfobia como crime e risco institucional
Vale lembrar que o STF equiparou a transfobia ao crime de racismo. Isso impõe às empresas um padrão de conduta ainda mais rigoroso, pois eventuais denúncias de tratamento discriminatório podem gerar não apenas responsabilidade trabalhista, mas também impactos reputacionais e criminais.
Conclusão: o que a empresa deve fazer?
No cenário jurídico atual, incluir não é só uma escolha institucional: é uma exigência legal e um compromisso com a dignidade de todos os trabalhadores. Assim, conclui-se que:
- O trabalhador trans (homem) pode e deve ser mantido no alojamento masculino, conforme sua identidade de gênero.
- A trabalhadora trans (mulher) deve ser realocada para o alojamento feminino, ainda que manifeste vontade de permanecer no alojamento masculino, sob pena de infração legal.
- A empresa deve investir em políticas claras de diversidade e inclusão, com treinamentos, canais de escuta e respeito à identidade de gênero, prevenindo qualquer tipo de discriminação.
- Sempre que possível, é recomendável documentar as medidas adotadas e as decisões tomadas com base em critérios objetivos, para garantir segurança jurídica.