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A BR do Mar e a responsabilidade dos P&I Clubs: Reflexões a partir do decreto 12.555/25

O decreto 12.555/25 consolida o P\&I Club como responsável civil no BR do Mar, reforçando seguro obrigatório e alinhamento ao padrão internacional.

22/8/2025

O decreto 12.555, de 6 de junho de 2025, que regulamenta o Programa BR do Mar, instituído pela lei 14.301, de 7 de janeiro de 2022, constitui um marco relevante para a cabotagem no Brasil e, possivelmente, para o transporte marítimo em geral. Entre as várias razões que justificam essa importância, interessa aqui destacar uma: a possibilidade, cada vez mais evidente, de enquadrar os P&I Clubs no regime de responsabilidade civil vigente em nosso país.

Já previa o inciso IV do art. 9º da lei 14.301/22 que as embarcações afretadas no âmbito do Programa deveriam “ter as operações de cabotagem amparadas em cobertura de seguro e resseguro de cascos, máquinas e responsabilidade civil, por meio da qual o segurador ficará obrigado a indenizar as perdas e os danos previstos no contrato de seguro”. O § 4º do mesmo art. remetia a um decreto a definição dessas especificações, o que se concretizou com a edição do decreto 12.555/25.  Entre suas disposições, destaca-se o art. 13, que condiciona a entrada e a permanência no País das embarcações afretadas, no âmbito do Programa, à contratação de seguro e resseguro com as seguintes coberturas mínimas:

Art. 13.  A entrada e a permanência no País das embarcações afretadas com base no Programa BR do Mar estarão condicionadas à cobertura de seguro e resseguro de cascos e máquinas e responsabilidade civil, observadas as seguintes coberturas mínimas:

I - cascos, máquinas, carga e materiais de bordo, remoção e demolição de destroços e de embarcação;

II - indenizações por acidentes e fatos da navegação que gerem prejuízo a terceiros, inclusive decorrentes de prejuízos à navegação e à operação portuária;

III - indenizações por danos ambientais;

IV - garantia de pagamento de verbas salariais, outras indenizações de natureza trabalhista e promoção de repatriação de tripulante estrangeiro, quando cabível; e

V - garantia de reparação por doenças, lesões e acidentes relacionados ao trabalho, e sequelas deles decorrentes, inclusive perda de salários, custos médicos, invalidez e morte

Parágrafo único. Os seguros e os resseguros de que trata o caput poderão ser contratados no País ou no exterior.

Ao especificar tais exigências, o Decreto alinha o ordenamento jurídico brasileiro ao padrão internacional de segurança e responsabilidade, não apenas cumprindo obrigação já prevista em lei, mas também abrindo espaço para a inserção dos P&I Clubs na legislação nacional.

E não sem motivo: eles devem responder como seguradoras; e já não é de hoje.

Esses arranjos mutualistas de responsabilidade civil marítima, tradicionalmente organizados por armadores, sustentam-se em um fundo comum, formado pelas contribuições periódicas de seus membros e destinado à reparação de danos. Costuma-se afirmar que os clubes não se enquadram formalmente na categoria das seguradoras; contudo, a forma como repartem riscos e asseguram indenizações evidencia que, em substância, exercem a mesma função que a lei atribui a estas.

Se a atividade é equivalente, também a responsabilidade deve ser. Diferenças meramente formais não alteram a natureza do que oferecem: a contribuição anual dos associados corresponde ao prêmio pago às companhias seguradoras e constitui o alicerce econômico da garantia prestada. Na prática, essa garantia se traduz em coberturas típicas do seguro: perdas e avarias de cargas transportadas, colisões e danos a navios ou instalações portuárias, poluição por óleo e substâncias perigosas, além de indenizações por morte ou lesão de tripulantes e terceiros.

Embora conservem feição semelhante à de uma cooperativa, os P&I Clubs desempenham todas as funções essenciais de um contrato de seguro de responsabilidade civil. É o que se extrai do art. 757 do CC, reafirmado pela lei 15.040/24 (Marco Legal dos Seguros), com vigência a partir de dezembro de 2025: há prêmio, interesse legítimo e risco predeterminado. Nessa medida, o clube integra o regime que admitiria a denunciação à lide, nos termos do art. 125, II, do CPC, podendo ser chamado a responder pelos danos ocasionados por seus associados.

Esse entendimento já encontrava respaldo na súmula 529 do STJ, ainda que condicionado ao reconhecimento judicial da equiparação (entre seguradoras e clubes). Com a entrada em vigor da nova lei, a possibilidade de ações diretas se robustece, conferindo base normativa mais sólida para a responsabilização solidária ou subsidiária do P&I. A vítima e o segurador sub-rogado passam a dispor de instrumentos processuais mais consistentes para buscar a reparação.

Por sua vez, a inovação central da BR do Mar, regulamentada pelo decreto 12.555/25, reforça essa leitura: ao consolidar o papel do P&I como seguradora de responsabilidade civil, amplia-se o espaço de sua responsabilização nos litígios de transporte marítimo, viabilizando tanto a denunciação à lide quanto o ajuizamento direto, de forma concomitante, facilitando o ressarcimento de vítimas e seguradores sub-rogados.

Essa interpretação apoia-se em três pontos: a obrigatoriedade da contratação, o caráter de garantia que o P&I exerce em relação à responsabilidade civil perante terceiros e a sua compatibilidade com o mecanismo processual da denunciação à lide. Nessa perspectiva, o clube passa a ocupar posição equivalente à das seguradoras convencionais, ainda que conserve estrutura organizacional própria.

Embora voltada à cabotagem, a regra do art. 13 do decreto - que especifica o comando do inciso IV do art. 9º da lei 14.301/22 - comporta extensão natural ao transporte marítimo internacional. Justifica-se essa ampliação por uma necessidade lógica do ordenamento jurídico, que, enquanto sistema, impõe tratamento uniforme aos seguros e à responsabilidade civil do transportador. Com efeito, grande parte dos sinistros mais graves, como danos à carga e desastres ambientais, ocorre justamente nessas rotas e, na ausência de garantias mínimas, importadores e seguradoras brasileiras acabam arcando com riscos desproporcionais.

A exigência de seguro marítimo obrigatório nesses moldes tampouco constitui inovação exclusivamente brasileira. Em diversos países, a apresentação de apólice válida já é condição para atracação, em termos bastante semelhantes. Ao adotar essa prática, o Brasil apenas se ajusta ao padrão internacional, reforçando a tutela dos direitos das vítimas de dano. Para além da equiparação formal, trata-se de uma exigência coerente com a posição do Brasil como grande player do comércio exterior. A imposição do mesmo nível de segurança e responsabilidade praticado em portos estrangeiros promove equilíbrio entre os agentes do tráfego marítimo e fortalece a proteção dos interesses nacionais.

A obrigatoriedade do seguro citado, ademais, projeta reflexos da maior relevância: consolida a responsabilidade objetiva do transportador e reforça a segurança jurídica; amplia a efetividade processual, ao viabilizar a denunciação do P&I e assegurar reparação mais célere; fortalece a proteção ambiental, ao prevenir danos de difícil reversão; e reduz custos sociais, ao transferir para o mercado segurador internacional parte do risco que, hoje, recai de modo mais pesado sobre seguradoras locais e sobre o próprio Estado.

Assim, muito mais do que mera formalidade, o seguro se converte em verdadeiro instrumento de viabilização da responsabilidade civil. Com isso, o país não apenas transporta cargas, mas projeta segurança e inspira confiança no tráfego marítimo. A consolidação desse modelo sinaliza um caminho de maior integração entre a prática internacional e o ordenamento nacional.

Cabe, doravante, à doutrina e à jurisprudência aprofundar o debate, definindo com precisão o espaço reservado aos P&I Clubs no Brasil e assegurando, em última instância, tanto a reparação dos danos quanto a estabilidade do transporte marítimo.

Rubens Walter Machado Filho
Sócio de Machado e Cremoneze - Advogados associados, administrador de empresas, membro efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo, da ILA - Internacional Law Association (Londres), do IIDM - Instituto Ibero-Americano de Direito Marítimo e da AIDA - Associação Internacional de Direito dos Seguros e CEO da MACHADO Consulting and Claims Recovery (EUA).

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