Migalhas de Peso

O efeito Felca e os limites do poder

Do combate à exploração infantil ao risco da censura prévia: como legislar sem ultrapassar a linha da separação de poderes.

22/8/2025

Proteger crianças e adolescentes na internet é urgente, mas não pode ser pretexto para atalhos jurídicos que fragilizam a democracia. O “efeito Felca”, onda de indignação e mobilização após a denúncia do youtuber Felipe Bressanim sobre a exploração de crianças e adolescentes nas redes, mostrou que o Congresso sabe agir quando pressionado pela sociedade. Em dois dias, foram apresentados na Câmara dos Deputados, nada menos que 32 projetos de lei para coibir crimes e abusos no ambiente digital.

Trata-se de um avanço importante em relação à regulamentação das redes sociais, principalmente porque é no Legislativo que essa discussão precisa ocorrer, com debate público, pluralidade e legitimidade democrática - e não no improviso de gabinetes, como fez o STF ao alterar o art. 19 do MCI - Marco Civil da Internet, um dos pilares da liberdade de expressão no Brasil.

Embora muitas vezes moroso, o processo legislativo é a arena onde representantes eleitos debatem, negociam e deliberam à luz de diferentes perspectivas e interesses da sociedade. É justamente a característica de representar a pluralidade de vozes que lhe confere legitimidade para regular temas de tamanha relevância.

Aproveitar casos de repercussão midiática para discutir e propor leis que coíbam crimes e outras práticas indevidas é um impulso legítimo que já virou tradição nacional - e não há nada de errado nisso, ainda mais levando em conta a inércia do Congresso frente a tantas questões caras à sociedade.

Diante dessa realidade, o Brasil tem histórico de legislar sob o impacto de comoções públicas. Foi assim com a lei Carolina Dieckmann, que entrou em vigor em 2013, após o vazamento de fotos íntimas da atriz e que significou um avanço para o combate de crimes cibernéticos no País. Outro exemplo recente? A recente lei Larissa Manoela, que está em tramitação no Senado, para proteger o patrimônio de crianças e adolescentes de abusos por parte dos pais, e que só foi proposta após a polêmica relação comercial entre a atriz e seus genitores virar notícia no Brasil e no mundo.

Esse “calor do momento”, entretanto, não pode servir como atalho para debates rasos e apoio acrítico a decisões controversas, principalmente em relação à regulamentação das redes sociais.

Embora seja difícil contestar a legitimidade de coibir conteúdos como terrorismo, incitação ao suicídio ou crimes sexuais contra pessoas vulneráveis (quem seria contra?), o ponto central é a forma como a mudança do art. 19 do MCI ocorreu: ministros reunidos num almoço de quatro horas decidiram alterar um marco legal aprovado em 2014 após anos de debate democrático no Congresso.

Se antes era preciso uma ordem judicial para responsabilizar plataformas por conteúdo de terceiros, agora, a retirada passa a ser obrigatória em certos casos mediante simples notificação, além de prever a exclusão imediata, sem qualquer aviso prévio, para um rol de crimes graves.

Parece detalhe, mas não é. Ao assumir o papel do Legislativo, porque este é “lento demais”, o Judiciário criou um precedente institucional arriscado. Não quero dizer que o Marco Civil da Internet seja perfeito e não mereça ser revisado, mas como dizem por aí “os fins não justificam os meios”. Não existem salvadores da pátria intitulados a se sobrepor a estrutura do nosso sistema de tripartição dos poderes.

Agora, com o “efeito Felca”, a boa notícia é que o Congresso acordou para o tema e tem a oportunidade (e a responsabilidade) de conduzir esse debate de forma ampla e democrática, examinando os 32 projetos apresentados e construindo um marco legal que proteja a infância. O desafio é garantir que, nessa corrida repleto de propósito, não se caia na tentação de simplesmente acatar o STF, mas sem entender os anseios verdadeiros da sociedade brasileira para as redes sociais, caso contrário pode deixar um amargo de censura e insegurança jurídica que fragilizam direitos fundamentais e criam instabilidade institucional.

Crianças merecem proteção. E o Brasil é repleto de bons exemplos, o ECA - Estatuto da Criança e Adolescente foi um marco histórico na proteção das crianças e adolescentes. Democracias merecem limites claros entre os poderes. Que sejamos instigados a encontrar o equilíbrio - e fazê-lo no foro certo, pelo caminho certo.

Helio Ferreira Moraes
Coordenador da Comissão de Tecnologia do CCBC. Sócio do PK - Pinhão & Koiffman Advogados.

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