A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugurou um novo paradigma de proteção social, fundado na universalização dos direitos fundamentais e na centralidade da dignidade da pessoa humana como vetor interpretativo e normativo do ordenamento jurídico (BARROSO, 2014).
No âmbito da assistência social, esse marco constitucional consolidou-se no art. 203, ao estabelecer o BPC - Benefício de Prestação Continuada como direito subjetivo, de caráter fundamental, a ser assegurado pelo Estado às pessoas idosas e às pessoas com deficiência que se encontrem em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
O BPC, em conjunto com o Programa Bolsa Família, configura uma das mais relevantes referências da rede de proteção social brasileira, representando não apenas a garantia de uma renda mínima, mas também a promoção da inclusão social e o acesso a outros direitos essenciais, como saúde e educação, assegurando, assim, a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana (IPEA, 2022).
A consolidação do SUAS - Sistema Único de Assistência Social representou significativo avanço na ampliação da cobertura do BPC - Benefício de Prestação Continuada, viabilizando o atendimento de milhões de cidadãos em situação de vulnerabilidade. Em 2019, mais de 4,7 milhões de brasileiros eram beneficiários, dentre os quais aproximadamente 2,5 milhões correspondiam a pessoas com deficiência, o que denota relevante progresso na concretização dos direitos sociais previstos constitucionalmente (IPEA, 2020; MESQUITA, 2024).
Não obstante, a expansão da política pública trouxe consigo novos desafios, especialmente no que concerne à fixação dos critérios de elegibilidade, à definição dos instrumentos de avaliação da deficiência e da condição socioeconômica, bem como ao constante tensionamento entre a norma legal e os regulamentos administrativos que disciplinam sua aplicação.
Nesse contexto, editou-se a portaria conjunta MDS/INSS 2, de 30 de março de 2015, com o objetivo de regulamentar o procedimento de avaliação da deficiência para fins de acesso ao Benefício de Prestação Continuada. Inspirada na CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde e na CDPD - Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a referida norma buscou operacionalizar o modelo biopsicossocial mediante a utilização de instrumentos padronizados de avaliação social e médica.
Entretanto, a literatura acadêmica e estudos técnicos têm evidenciado limitações relevantes desse instrumento normativo. Pesquisas conduzidas pela ENAP - Escola Nacional de Administração Pública demonstraram que a TCQ - Tabela Conclusiva de Qualificadores, prevista na portaria, confere peso praticamente irrelevante aos fatores ambientais, em flagrante contradição com o paradigma biopsicossocial que fundamenta a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15). Tal desproporção acaba por reforçar a preponderância da perícia médica em detrimento da análise social, comprometendo a efetividade do modelo integrado e interdisciplinar exigido pelo § 1º do art. 2º da LBI (ENAP/EvEx, 2021).
A doutrina especializada tem salientado que esse descompasso normativo vem fomentando a crescente judicialização dos requerimentos de Benefício de Prestação Continuada. Pesquisa desenvolvida por Brum Vaz (2021) evidencia que a primazia conferida à análise médico-pericial, aliada à insuficiente consideração das barreiras sociais, culmina em elevado índice de indeferimentos na esfera administrativa, muitos dos quais posteriormente revertidos pelo Poder Judiciário.
Os dados empíricos corroboram tal constatação. Segundo levantamento do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em 2022 aproximadamente 12% das concessões de BPC decorreram de decisões judiciais, o que denota a incapacidade da via administrativa de assegurar, de modo pleno, a observância das diretrizes constitucionais e internacionais de proteção às pessoas com deficiência (IPEA, 2022).
A jurisprudência contemporânea do STJ tem enfrentado de maneira consistente a temática, afastando interpretações restritivas que condicionam a concessão do Benefício de Prestação Continuada à demonstração de incapacidade absoluta. No julgamento do REsp 1.962.868/SP, a Corte reafirmou que o conceito de deficiência, para fins de acesso ao BPC, deve ser interpretado em conformidade com a CDPD - Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e com a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15). Assim, a deficiência deve ser compreendida como resultado da interação entre impedimentos de longo prazo e barreiras sociais, não se admitindo gradações de invalidez ou a exigência de incapacidade total como condição para a proteção social.
Diante desse cenário, o presente artigo propõe uma análise crítica da portaria conjunta 2/15, examinando-a à luz da lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15), da CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde e da jurisprudência consolidada nos tribunais superiores. Busca-se identificar em que medida o referido instrumento administrativo contribui para a efetivação - ou, ao revés, para a restrição - do direito fundamental ao Benefício de Prestação Continuada.
A pesquisa adota metodologia qualitativa, de natureza documental e bibliográfica, valendo-se de dados empíricos, decisões judiciais e estudos técnicos como suporte analítico. O propósito consiste em oferecer reflexão acadêmica acerca da necessidade de revisão normativa e hermenêutica da Portaria, a fim de compatibilizá-la com o paradigma biopsicossocial e, assim, assegurar a plena observância da dignidade da pessoa humana das pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade social.
1. Fundamentação teórica
1.1 evolução do conceito de deficiência: do modelo médico ao modelo biopsicossocial
O tratamento destinado às pessoas com deficiência variou significativamente entre as civilizações antigas, notadamente no Egito, na Grécia e em Roma. No Egito Antigo, registros arqueológicos indicam que pessoas com impedimentos físicos eram integradas à vida social, podendo ocupar posições que iam desde a condição servil até cargos de destaque junto à nobreza e à corte faraônica (GUGEL).
Em contraposição, a Grécia Antiga, marcada pela exaltação da perfeição física e da aptidão militar, desenvolveu práticas excludentes e cruéis. Crianças com deformidades ou condições consideradas anormais eram frequentemente sacrificadas, prática descrita como abandono ou lançamento do Monte Taigeto. Já em Roma, a intolerância foi igualmente institucionalizada: a Lex Duodecim Tabularum previa expressamente o sacrifício de recém-nascidos com más-formações, refletindo um ideal de cidadania restritivo.
Na Idade Média, sob forte influência da religiosidade, iniciou-se uma transição: ainda que persistisse a marginalização, a prática do extermínio foi gradualmente substituída por concepções assistencialistas. Apenas na Idade Contemporânea consolidou-se o debate em torno da inclusão, inicialmente pautado pela perspectiva biomédica e pela necessidade de mão de obra no contexto da industrialização europeia, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, diante do número elevado de combatentes mutilados.
No plano internacional, a Organização das Nações Unidas desempenhou papel central ao editar documentos de proteção, como a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência Mental (1971) e a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência (1975), ambas precursoras na afirmação de garantias básicas, como acesso à saúde, igualdade de tratamento e proteção contra abusos.
A década de 1980 destacou-se pela proclamação do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981), que impulsionou a criação de planos de ação nacionais. No Brasil, a CNAIPD - Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes estruturou medidas voltadas à adaptação física e psicossocial, promoção de oportunidades de trabalho e melhoria da acessibilidade.
Durante o governo Sarney, o movimento político em defesa dos direitos das pessoas com deficiência obteve importante conquista ao impedir que tais direitos fossem tratados de forma segregada na Constituinte, sendo distribuídos em diversos capítulos da Constituição de 1988. Esse período também foi marcado pela criação da CORDE, pela fundação dos primeiros CVI - Centros de Vida Independente e pela promulgação da lei 7.853/1989, que estabeleceu medidas de apoio e proteção.
Nos anos seguintes, verificaram-se avanços institucionais e legislativos, como a inclusão das pessoas com deficiência nos censos nacionais (1991), a edição da convenção 159 da OIT sobre reabilitação profissional, e a promulgação das leis 8.213/1991 (Planos de Benefícios da Previdência Social) e 8.742/1993 (LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social).
O marco internacional, contudo, consolidou-se com a aprovação da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), em 2006, ratificada pelo Brasil com status de emenda constitucional por meio do decreto legislativo 186/08 e promulgada pelo decreto 6.949/09. A partir de então, a deficiência passou a ser compreendida como interação entre impedimentos de longo prazo e barreiras sociais, deslocando o foco do modelo biomédico para o paradigma biopsicossocial.
No cenário interno, destacam-se o decreto 6.214/07, que regulamenta o Benefício de Prestação Continuada, a aprovação da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e a promulgação da lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15). A portaria conjunta MDS/INSS 2/15, como já exposto, instituiu instrumentos técnicos de avaliação biopsicossocial para fins de acesso ao BPC, alinhando-se ao novo paradigma normativo.
A ratificação da CDPD com equivalência constitucional fortaleceu a responsabilidade internacional do Brasil, em consonância com o princípio pacta sunt servanda (Convenção de Viena, 1969), obrigando o Estado a adotar medidas legislativas, administrativas e judiciais que assegurem a efetiva proteção às pessoas com deficiência.
A trajetória histórica que perpassa o modelo biomédico, o modelo social e culmina no modelo biopsicossocial evidencia um processo jurídico-social de progressiva ampliação da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da inclusão. Esse arcabouço teórico impõe a necessidade de que as normas e práticas administrativas - a exemplo da portaria conjunta 2/15 - sejam interpretadas e aplicadas em consonância com a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15) e com a CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, de modo a evitar reducionismos de natureza estritamente médica e insuficiências decorrentes da desconsideração dos fatores sociais.
Assim, a consolidação de uma abordagem genuinamente biopsicossocial apresenta-se como imperativo jurídico e ético, indispensável não apenas para a efetividade do direito fundamental ao BPC - Benefício de Prestação Continuada, mas, de forma mais ampla, para a plena realização do princípio da dignidade da pessoa com deficiência.
Conforme destaca Hannah Arendt, “os direitos humanos emergem quando podem e quando devem emergir”, sendo fruto de reivindicações específicas de cada época e contexto histórico. Nesse sentido, a evolução normativa demonstra que a proteção às pessoas com deficiência é resultado de um processo histórico contínuo de lutas e conquistas, que deslocou a compreensão da deficiência como incapacidade para um paradigma de dignidade, cidadania e inclusão social.
1.2. A Importância LBI - Lei Brasileira de Inclusão
Como exposto no contexto histórico, a lei 13.146, de 6 de julho de 2015, denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), constitui marco normativo de grande relevância no ordenamento jurídico brasileiro, ao consolidar o paradigma dos direitos humanos e da inclusão social. Inspirada e alinhada à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), a LBI materializa os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e promove uma transformação paradigmática: da concepção estritamente biomédica para a compreensão biopsicossocial da deficiência.
O art. 2º da lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15) conceitua a pessoa com deficiência como aquela que apresenta impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, possa restringir ou obstar sua participação plena e efetiva na sociedade, em condições de igualdade com as demais pessoas.
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Tal definição representa uma ruptura com a concepção reducionista que tratava a deficiência como mera condição clínica. A deficiência passa a ser compreendida como resultado da interação entre impedimentos de longo prazo e barreiras sociais, em conformidade com o modelo biopsicossocial consagrado pela CIF/OMS - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde e pela CDPD - Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (DINIZ, 2007; OLIVEIRA, 2019). O reconhecimento das barreiras como elemento constitutivo da deficiência é de fundamental importância, pois desloca o eixo da responsabilidade do indivíduo para a coletividade, impondo à sociedade o dever jurídico de se estruturar para assegurar condições de inclusão e acessibilidade.
O §1º do art. 2º da LBI estabelece que a avaliação da deficiência será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar:
§1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:
I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III - a limitação no desempenho de atividades; e
IV - a restrição de participação.
Esse comando normativo vincula tanto a atuação administrativa quanto a judicial, vedando que a avaliação da deficiência se limite a um exame de natureza exclusivamente médico-pericial. Configura, assim, um avanço jurídico ao positivizar a superação do modelo biomédico, assegurando que a análise considere as condições concretas de vida da pessoa com deficiência, suas interações sociais e as barreiras que efetivamente enfrenta no exercício de sua cidadania (GUGEL, 2016).
1.3 Conjunta MDS/INSS 2/15
1.3.1. Estrutura e objetivos
A portaria conjunta MDS/INSS 2, de 30 de março de 2015, foi editada com a finalidade de “dispor sobre critérios, procedimentos e instrumentos para a avaliação social e médica da pessoa com deficiência para acesso ao BPC - Benefício de Prestação Continuada”. Seu desenho normativo concretiza-se por meio de formulários e tabelas padronizadas, concebidos para operacionalizar, em sede administrativa, o conceito legal de deficiência e a avaliação biopsicossocial prevista na lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15).
Do ponto de vista instrumental, a Portaria estrutura-se em dois módulos - avaliação social e avaliação médica - acompanhados de anexos que: (i) descrevem os domínios e itens a serem pontuados; (ii) estabelecem qualificadores relativos às Funções do Corpo, Atividades e Participação e Fatores Ambientais; e (iii) consolidam a decisão administrativa por meio da TCQ - Tabela Conclusiva de Qualificadores, a qual cruza os escores obtidos para indicar resultado “favorável” ou “não favorável” à concessão do benefício.
Sob o prisma procedimental, a portaria conjunta MDS/INSS 2/15 estabelece um fluxo bifásico de avaliação, no qual a etapa social precede a etapa médica, ambas de realização obrigatória e conduzidas por profissionais distintos - assistentes sociais e peritos médicos federais. Na fase decisória, a TCQ - Tabela Conclusiva de Qualificadores constitui o instrumento de consolidação dos resultados, traduzindo-os em deferimento ou indeferimento do benefício.
Estudo conduzido pela ENAP – EvEx - Escola Nacional de Administração Pública, com base em dados extraídos do Sistema de Benefícios do INSS (SIBE/INSS), confirma que o modelo contempla os três qualificadores - Funções do Corpo, Atividades e Participação e Fatores Ambientais - e que a decisão final encontra-se “completamente determinada” pela TCQ, após a confirmação da existência de impedimento de longo prazo.
No âmbito de seu desenho normativo, a portaria conjunta MDS/INSS 2/15 incorpora exigências operacionais de relevo, dentre as quais se destaca a previsão de reavaliação bienal. Ademais, prevê campos objetivos tanto na avaliação social quanto na avaliação médica, destinados a funcionar como gatilhos de qualificação ou de reclassificação, a exemplo da presença de ajudas técnicas, da necessidade de cuidadores e da identificação de barreiras de natureza ambiental.
1.3.2. Ênfase no laudo médico-pericial
Embora a portaria conjunta 2/15 proclame a adoção de uma avaliação fundamentada no paradigma biopsicossocial, sua lógica decisória atribui centralidade ao laudo médico-pericial em dois momentos distintos: (a) na confirmação do impedimento de longo prazo - requisito de entrada previsto na LBI - Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, sem o qual não se aciona a TCQ - Tabela Conclusiva de Qualificadores; e (b) na atribuição de escores relativos às “Funções do Corpo” e a parte das “Atividades e Participação”, dimensões às quais é conferido peso preponderante na regra de concessão.
Relatórios oficiais de análise de políticas públicas elaborados pela ENAP demonstram empiricamente que, a priori, as regras da TCQ conferem “importância praticamente nula” aos Fatores Ambientais, atribuindo peso equivalente apenas às dimensões Atividades/Participação e Funções do Corpo. A posteriori, os dados revelam que a avaliação médica desempenha o papel de verdadeiro gatekeeper do acesso ao benefício, elevando de forma significativa a probabilidade de concessão à medida que os escores médicos aumentam.
Essa centralidade decorre, ainda, de perguntas-chave constantes do formulário médico, as quais condicionam a própria continuidade do exame pela TCQ - Tabela Conclusiva de Qualificadores. A Portaria indaga expressamente acerca da “perspectiva de recuperação completa em até dois anos” e da existência de “prognóstico desfavorável”, parâmetros que influenciam diretamente a qualificação e podem acionar regras específicas de majoração ou rebaixamento no resultado final da TCQ.
A própria TCQ - Tabela Conclusiva de Qualificadores contempla combinações nas quais, ainda que os Fatores Ambientais e as dimensões de Atividades e Participação estejam classificados nos níveis “Nenhum” ou “Leve”, a atribuição de “Funções do Corpo: Completo” resulta automaticamente em “Não favorável” (indeferimento). Tal configuração evidencia como a preponderância do critério biomédico pode neutralizar a relevância de variáveis de natureza social e ambiental, reduzindo a efetividade do modelo biopsicossocial.
1.3.3. Críticas doutrinárias e institucionais
Três eixos críticos têm sido recorrente e consistentemente identificados por pesquisas acadêmicas, relatórios governamentais e pela própria comunidade jurídica no que se refere à portaria conjunta MDS/INSS 2/15:
i. Desalinhamento parcial com o paradigma biopsicossocial e com a LBI.
O Relatório do Grupo de Trabalho da Avaliação Biopsicossocial Unificada (MDHC, 2024) enfatiza que a avaliação da deficiência no Brasil deve “ir além do modelo médico tradicional”, adotando um instrumento unificado - o IFBrM - Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBrM) - capaz de equilibrar, de forma efetiva, impedimentos corporais com barreiras sociais e ambientais, assegurando governança intersetorial e atuação de equipes multiprofissionais. A crítica que se extrai é clara: a portaria 2, embora constitua um avanço operacional, mostra-se insuficientemente alinhada à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e ao disposto no art. 2º, §1º, da lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15), justamente por conferir centralidade e peso decisivo à perícia médica e por não atribuir, na prática, simetria de influência aos fatores ambientais e de participação.
ii. Assimetria de pesos e risco de invisibilização das barreiras.
Estudos técnicos conduzidos pela ENAP – EvEx - Escola Nacional de Administração Pública demonstram que, a priori, a TCQ - Tabela Conclusiva de Qualificadores praticamente desconsidera o papel dos Fatores Ambientais, relegando-os a importância residual no processo decisório. A posteriori, a influência de elementos sociais emerge nos dados mais como reflexo da distribuição empírica dos casos do que como resultado do desenho normativo do instrumento. Essa assimetria metodológica tende a invisibilizar situações de vulnerabilidade, como pobreza extrema, ausência de redes de apoio, barreiras arquitetônicas e comunicacionais, além de contextos territoriais de exclusão social, o que contraria a teleologia da LBI e o núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal):
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
iii. Obsolescência relativa e incremento da judicialização.
Relatórios governamentais recentes - produzidos em sede de análise ex ante para a implementação do sistema unificado de avaliação - reconhecem que, até que se conclua a regulamentação e a efetiva adoção do novo instrumento, o BPC - Benefício de Prestação Continuada permanece disciplinado pela portaria conjunta 2/15, com repercussões distributivas e operacionais de relevo. Dentre tais impactos, destacam-se o aumento dos tempos de tramitação e a manutenção de critérios assimétricos de aferição da deficiência, que comprometem a isonomia material entre os requerentes.
Esse quadro revela um potencial acentuado de judicialização, especialmente no período de transição normativa, caso não se estabeleça uma coordenação institucional eficaz, acompanhada de adequada comunicação tanto com o Poder Judiciário quanto com os próprios destinatários da política pública, a fim de evitar insegurança jurídica e entraves na concretização do direito fundamental à assistência social.
No plano jurisprudencial, o STJ (REsp 1.962.868/SP, 2023) reafirmou a compreensão de que o reconhecimento da deficiência para fins de BPC não se confunde com incapacidade laboral nem com “graus” apriorísticos, exigindo aderência ao conceito legal (impedimento de longo prazo em interação com barreiras), o que reforça a necessidade de leitura crítica e conforme-LBI da portaria 2 na prática decisória administrativa e judicial:
PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ALEGADA NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA A PESSOA DEFICIENTE. ART. 20, §§ 2º E 3º, DA LEI 8.742/93. DISTINÇÃO QUANTO AO GRAU DA DEFICIÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE O INTÉRPRETE ACRESCER REQUISITOS NÃO PREVISTOS EM LEI, PARA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. [...]O Juízo de 1º Grau julgou o pedido procedente, para determinar a implantação, em favor da parte autora, do benefício assistencial requerido, concluindo que, "segundo o laudo de fls.154, a autora é portadora de desenvolvimento mental retardado em grau leve (Olifogrenia leve), concluindo que sua incapacidade é parcial e permanente. Ocorre que o caso da autora implica grave barreira à participação social, apesar de ter algum acesso a tratamento médico e uso de medicamentos para sua doença". O Tribunal a quo, dando provimento ao recurso de Apelação do INSS, decidiu pela improcedência do pedido, por considerar não preenchido o requisito da deficiência, para fins de concessão do benefício pleiteado, em virtude de ausência de incapacidade absoluta da autora, tendo em vista ser ela portadora de desenvolvimento mental retardado em grau leve, possuindo limitação apenas para atividades que demandam habilidades acadêmicas. [...]VIII. Embora o acórdão recorrido tenha reconhecido a deficiência e as limitações da parte autora, considerou que a incapacidade era parcial e permanente e que a sua deficiência não impedia o trabalho em atividades que demandam habilidades práticas, ao invés de acadêmica, pelo que não haveria impedimento apto a obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade.IX. A jurisprudência do STJ firmou entendimento segundo o qual, para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, a legislação que disciplina a matéria não elenca o grau de incapacidade para fins de configuração da deficiência, não cabendo ao intérprete da lei a imposição de requisitos mais rígidos do que aqueles previstos para a sua concessão. Nesse sentido os seguintes precedentes desta Corte: REsp 1.770.876/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/12/2018; AgInt no AREsp 1.263.382/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 19/12/2018; REsp 1.404.019/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 03/08/2017.X. Recurso Especial conhecido e parcialmente provido, para reconhecer, nos termos do § 2º do art. 20 da Lei 8.742/93, que a parte autora é portadora de deficiência, para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, bem como para determinar o retorno dos autos à instância de origem, para que prossiga no julgamento da Apelação do INSS, como entender de direito, de vez que a autarquia, na Apelação, sustentou inexistente o requisito da hipossuficiência, cujo exame o acórdão recorrido não efetuou, por entendê-lo prejudicado, à míngua de prova da deficiência. (STJ - REsp: 1962868 SP 2021/0310043-3, Relator: ministra ASSUSETE MAGALHÃES, Data de Julgamento: 21/3/2023, T2 - 2ª TURMA, Data de Publicação: DJe 28/3/2023)
A portaria conjunta 2/15 consolidou um framework padronizado para a avaliação do BPC - Benefício de Prestação Continuada, promovendo ganhos relevantes de uniformidade procedimental e previsibilidade decisória. Não obstante, sua racionalidade permanece fortemente biomédico-centrada, uma vez que: (a) condiciona o processamento do requerimento à confirmação médico-pericial da existência de impedimento de longo prazo - mediante, por exemplo, a indagação acerca da “recuperação completa em até dois anos”; (b) atribui ao prognóstico clínico a função de variável estruturante do processo decisório; e (c) distribui pesos que, ex ante, reduzem significativamente a influência dos Fatores Ambientais.
Esse arranjo normativo gera tensionamentos em relação ao paradigma biopsicossocial e ao princípio da dignidade da pessoa humana, núcleo axiológico da lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15), sobretudo nos casos em que barreiras contextuais severas - como pobreza extrema, exclusão territorial ou ausência de acessibilidade - não se convertem, por desenho do instrumento, em decisão administrativa favorável.
Relatórios oficiais indicam como caminho necessário a substituição ou atualização do modelo atual por uma avaliação biopsicossocial unificada (IFBrM), pautada em governança intersetorial e em uma redistribuição equitativa dos pesos atribuídos aos diversos domínios de análise. Trata-se de assegurar que a avaliação social deixe de ocupar papel meramente coadjuvante e passe a integrar, em condição de paridade com a perícia médica, a decisão administrativa, garantindo efetividade ao paradigma da interação pessoa-barreiras.
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