Nos últimos anos, o uso de criptomoedas deixou de ser exclusividade de um nicho de investidores e entusiastas de tecnologia e passou a fazer parte do dia a dia de diferentes setores da economia. A criptoeconomia evoluiu e hoje é possível utilizar esses ativos para comprar passagens aéreas, pagar por serviços de tecnologia e até adquirir imóveis. E não vai parar por aí: se entre janeiro e setembro do ano passado os brasileiros movimentaram R$ 247,8 bilhões em criptomoedas, o estudo "State of Digital Assets", da Mercado Bitcoin, projeta que o Brasil alcançará 120 milhões de investidores de cripto até 2030, praticamente metade da nossa população atual. Ao passo que essa nova economia avança e se consolida, lacunas jurídicas relevantes persistem, especialmente no Direito Penal.
Dois anos atrás, a sanção do marco legal dos criptoativos (lei 14.478/22) sem dúvidas representou um avanço na construção de um arcabouço regulatório para o setor de ativos digitais no Brasil. Com a delegação ao Banco Central da competência para disciplinar a atuação das PSAVs - prestadoras de serviços de ativos virtuais, o país passou a dar contornos institucionais a uma indústria que, até então, operava totalmente à margem das autoridades financeiras.
As consultas públicas BCB 109, 110 e 111/24 consolidaram a mudança. Elas definiram quais serviços precisam de autorização, como funciona o processo e as regras que valem para as PSAVs no mercado de câmbio - com atenção especial às stablecoins, criptoativos projetados para ter valor estável, mantendo paridade com moedas tradicionais como o dólar e o próprio real.
Do ponto de vista penal, no entanto, o terreno ainda é incerto. Por exemplo, a lei não tipifica condutas criminosas específicas associadas a elas. Em termos de política criminal, isso significa que a repressão a crimes financeiros com criptomoedas ainda segue apoiada em tipos penais genéricos - como estelionato, organização criminosa e lavagem de dinheiro - que foram pensados para outros contextos e que muitas vezes não dão conta das peculiaridades do ambiente digital.
Exemplo disso é a “autocustódia”, quando uma pessoa guarda suas criptomoedas em carteiras digitais (as chamadas wallets), sem depender de bancos ou corretoras. Quando os ativos saem de plataformas reguladas para as wallets, perde-se o rastro institucional das transações. Dessa forma, sem intermediários obrigados a seguir regras de identificação, registro e comunicação de operações, rastrear movimentações ilícitas se torna muito mais difícil para as autoridades.
A proibição da transferência de stablecoins para essas carteiras, presente na consulta BCB 111/23, aquece o debate: como garantir a privacidade dos usuários sem abrir mão do combate ao crime? O fato é que a autocustódia cria um vácuo penal. Sem um intermediário para responsabilizar (como uma exchange), é impossível enquadrar as condutas ilícitas nos tipos tradicionais de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, já que a própria natureza da tecnologia impede o monitoramento direto.
Esse dilema tem implicações diretas no campo penal. Embora as transações em blockchain fiquem registradas e visíveis, descobrir quem está por trás delas não é tarefa fácil. Para isso, são necessárias ferramentas técnicas avançadas, cooperação com outros países e uma estrutura que muitos órgãos ainda não têm.
Núcleos especializados do Ministério Público e da Polícia Federal têm avançado nesse terreno, mas a defasagem institucional ainda é evidente. Criminosos que operam com criptoativos frequentemente se valem de tecnologia de ponta, como mixers para embaralhar transações e ocultar a origem dos valores, tokens anônimos com alto grau de opacidade e esquemas complexos, com múltiplas carteiras envolvidas. Enquanto isso, o Estado ainda luta para formar quadros técnicos especializados, padronizar procedimentos investigativos e acessar as ferramentas adequadas. O resultado da equação é um descompasso estrutural: o setor público corre atrás, mas a diferença entre a sofisticação criminosa e a capacidade institucional é grande.
Apesar disso, operadores de pirâmides com criptomoedas já vêm sendo processados com base nos dispositivos penais tradicionais. É o caso da GAS Consultoria e de esquemas como o da Braiscompany, que captaram valores bilionários de investidores com promessas de rendimentos fixos. Porém, embora a jurisprudência admita esse enquadramento, a elasticidade interpretativa ainda dá margem para contestações, especialmente quando se trata de responsabilizar terceiros, como sócios minoritários ou prestadores de serviços ligados às operações.
O desafio, portanto, é duplo. De um lado, é preciso consolidar um marco regulatório que crie barreiras para prevenir a atuação de players oportunistas, como exige o Banco Central ao condicionar a autorização ao cumprimento de requisitos robustos de governança, capital mínimo, transparência, separação patrimonial e estrutura de conformidade. De outro, é necessário avançar na construção de um regime penal específico para condutas lesivas no ecossistema de criptomoedas, com previsões proporcionais, técnicas e respeitosas ao princípio da legalidade.
Acima de tudo, o avanço vai exigir cooperação entre reguladores, órgãos de investigação e a iniciativa privada, que precisarão trabalhar juntos para garantir que as regras acompanhem a evolução tecnológica. Os caminhos para isso são variados: aumentar o compartilhamento de dados entre autoridades e exchanges, promover capacitação técnica conjunta, intercâmbio internacional de informações, diálogo contínuo com o setor cripto para aprimorar as práticas de compliance, entre outros.
Enquanto isso ainda é teoria, empresas e investidores devem adotar medidas preventivas próprias, como exigir conformidade de seus prestadores de serviço, desconfiar de promessas de rentabilidade garantida, se atentar para a política de custódia dos ativos e manter mecanismos internos de controle de risco e auditoria. Vale lembrar que a empresa pode ser responsabilizada mesmo sem participação direta no crime, basta que tenha se omitido quando tinha o dever de fiscalizar e controlar suas operações.