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Filantrópicas: Atraso salarial por repasse SUS - Limites da responsabilidade

Atrasos do SUS afetam salários em filantrópicas: força maior ou não? Análise da Justiça do Trabalho para o equilíbrio entre direitos e a viabilidade das instituições

28/8/2025

As instituições filantrópicas desempenham um papel crucial no sistema de saúde brasileiro, complementando a atuação do Estado e oferecendo serviços essenciais à população, especialmente em áreas carentes. A relevância desses institutos, contudo, esbarra em desafios financeiros, notadamente a dependência - quase que exclusivamente - de repasses governamentais, que frequentemente sofrem atrasos, impactando diretamente a capacidade de honrar compromissos trabalhistas.

Diante desse cenário, surge um dilema complexo: como equilibrar a necessidade de proteger os direitos trabalhistas dos empregados dessas instituições com a realidade financeira precária e a dependência de repasses do SUS? Atrasos frequentes nesses repasses colocam em risco a sustentabilidade dos institutos e a manutenção dos serviços essenciais que prestam à sociedade. A responsabilização automática dessas entidades e fundações, sem considerar as peculiaridades de sua situação, pode levar ao fechamento de hospitais e clínicas, tendo como consequência ainda mais drástica - o evidente e inevitável acesso da população mais carente à saúde - público destinatário destes serviços.

Neste contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar os limites da responsabilização das entidades e fundações filantrópicas dependentes de repasses do SUS em casos de atraso no pagamento de salários.

É certo que na seara trabalhista o risco da atividade econômica é assumido exclusivamente pelas empresas, não cabendo a elas suscitar questões de cunho econômico-comercial, como por exemplo uma crise setorial, para se isentar das responsabilidades perante seus empregados.

Nesse sentido, embora a legislação, a doutrina e a jurisprudência caminhem em relativa harmonia acerca da responsabilização das empresas em casos de descumprimentos de obrigações trabalhistas, nas ações em que o empregador é uma entidade filantrópica dependente do repasse de verbas do SUS, a situação levanta questionamentos acerca do limite de sua responsabilização. Deve haver a mitigação dessa intepretação?

A CLT, em seu art.2, §1º1, prevê expressamente a equiparação de instituições de beneficência e sem fins lucrativos a empregador, o que, em uma análise sumária, possibilita a compreensão de que a mesma responsabilização recaída às empresas recairá sobre essas instituições.

Ocorre que, muitas dessas instituições, sobretudo as voltadas a serviços de saúde, possuem como receita quase que exclusivamente os valores recebidos pelos convênios públicos. Essa dependência de verbas públicos para satisfação de suas obrigações traz indícios à configuração de força maior. Ademais, empresas, em seu conceito strictu sensu, desenvolvem atividade empresarial e buscam, primordialmente, o lucro, sendo natural que assumam, portanto, o risco integral da atividade. Cenário diferente é o das entidades filantrópicas, notadamente aquelas que exercem a função de Gestores de unidades de saúde com atendimento voltado 100% ao público SUS.

Assim, em um contexto em que essas instituições (i) não possuem outra receita recorrente apta a satisfazer suas obrigações, (ii) não apenas não visam o lucro , como, tem como fim o atendimento à população carente, e, consequentemente, não distribuem resultados; bem como (iii) prestam serviços de notória relevância social; o descumprimento das obrigações trabalhistas de natureza pecuniária pelo atraso de verbas do SUS parece se revelar como um fato inevitável, sem a concorrência do empregador – Instituição – ao acontecimento, o que caracterizaria força maior, nos termos do art. 501 da CLT2.

Nesse sentido, aliás, o TRT-16, já reconheceu a força maior em caso de atraso de pagamento de salário, ante a morosidade no repasse de verbas pela União à Instituição Filantrópica. Na ementa, consignou-se que:

Restando comprovado nos autos que o atraso no pagamento dos salários ocorreram, exclusivamente, em decorrência de atraso no repasse de verbas pelo Governo Federal (SUS), fonte financeira principal da recorrente que, embora seja pessoa jurídica de direito privado, é considerada de utilidade pública, de fins filantrópicos e assistência social, aplicável o instituto da força maior, previsto no art. 501 da CLT, para indeferir o pedido de rescisão indireta e pagamento das verbas rescisórias correlatas.3

A situação é ainda mais grave quando o próprio Estado, responsável pelo atraso no repasse dos valores às Instituições, faz a inscrição em dívida ativa e, em seguida, executa autos de infração referentes à fiscalização do MPT, realizada no mesmo período em que os repasses de verbas oriundas do SUS se encontram em atraso.

Nessa seara, é possível identificar uma espécie de bis in idem reverso ao Estado, o qual é duplamente beneficiado de sua ingerência, em um primeiro momento, ao postergar o repasse de verbas às instituições beneficentes que dependem desses valores para manutenção de suas atividades, mantendo esses valores em caixa, sem haver qualquer sanção a esses atrasos e, após isso, executar multa em seu favor decorrente de seu próprio atraso.

Em outras palavras, não havendo repreensão pelo Judiciário de tais práticas, o Estado ganha ao manter no erário por mais tempo os valores que deveriam ser repassados às instituições, como também ao aplicar e executar multas decorrente desse atraso.

Esse cenário parece ir na contramão da eficiência da máquina estatal, uma vez que essa acaba sendo economicamente beneficiada pela sua própria morosidade e ingerência.

Todavia muitos dos tribunais regionais já vêm identificando essa atuação e entendendo pela ausência de responsabilidade dos institutos em casos dessa natureza. Nesse sentido, vale destacar, também, julgado do TRT-23 sobre o tema:

AGRAVO DE PETIÇÃO. ENTIDADE FILANTRÓPICA. ATRASOS NOS REPASSES DE VALORES PROVENIENTES DO SUS. FORÇA MAIOR. ART. 501 DA CLT. AUTUAÇÃO ADMINISTRATIVA. INEXIGIBILIDADE DA CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA. Nos termos dos arts. 501 da CLT e 4º da Lei n. 7.855/89 c/c art. 393 do CC, não são devidas as multas administrativas impostas pelo órgão fiscalizador, na medida em que os atrasos objetos do auto de infração decorreram de força maior - originários de ato omissivo do ente federativo que atrasou no repasse de verbas. Logo, não tendo a associação Agravante concorrido, seja direta ou indiretamente, para tal situação, o recurso por ela interposto merece ser provido para retirar a exigibilidade das CDAs que tiveram como fato gerador não só constatação de violação a atrasos no pagamento de salário em sentido amplo e seus consectários legais, como também a violação dos dispositivos que determinam a implementação de normas de segurança e medicina do trabalho, pois, ainda que sem guardar pertinência com os atrasos nos repasses, não retira a unicidade monetária da autuação.(TRT-23 - AP: 00001794820205230007 MT, relator: PAULO ROBERTO RAMOS BARRIONUEVO, gab. des. Paulo Barrionuevo, data de publicação: 11/10/2021)

Em que pese haver uma evolução jurisprudencial no sentido de observar as peculiaridades da responsabilidade desse tipo de empregador, a fim de afastá-la em casos de morosidade no repasse de verbas públicas, muitos magistrados ainda seguem com uma análise dialética em processos dessa natureza, norteando-se, quase que exclusivamente, pela relação empresário-empregado, o que - em muitos casos - faz com que cheguem a conclusão que houve a imprevidência dos institutos filantrópicos, sem adentrar, contudo, em uma análise acerca de sua natureza social e de sua situação financeira.

De tal modo, percebe-se a existência de dois elementos opostos que podem vir a serem aplicados nesses casos: (i) força maior e (ii) imprevidência.

Embora nas linhas acima tenham sido levantadas questões que demonstram a presença de requisitos à configuração da força maior em ações dessa natureza, parece que ela não deve ser absoluta. Explica-se.

Caso os juízos, para afastar a responsabilidade das instituições, observassem tão somente o atraso no repasse de verbas do SUS, isso, de igual modo, desequilibraria a relação Institutos-Estado, haja vista tal entendimento servir como uma “carta branca” às entidades sequer medirem esforços para honrar com suas obrigações pecuniárias trabalhistas, o que estimularia um comportamento de alheamento das instituições, trazendo prejuízo aos empregados.

É certo que o atraso no repasse da verbas é elemento fundamental à discussão, todavia também deve ser considerado em decisão: (i) se os recursos repassados representam percentual da receita capaz de inviabilizar o cumprimento das obrigações trabalhistas; (ii) se a situação financeira do instituto é desfavorável (havendo déficit, por exemplo); além de, (iii) caso haja caixa capaz de satisfazer as obrigações, analisar se parte dessa receita não é oriunda de doação e destinada a compra ou manutenção de algum equipamento ou serviço específico.

Logo, não aparenta ser razoável afastar a responsabilidade das entidades e fundações nas situações em que se evidencia uma robusta situação econômica na qual o atraso de verbas públicas não é capaz de afetar, significativamente o pagamento dos salários e encargos trabalhistas. De igual modo, não parece sensato, tampouco justo, responsabilizar uma instituição em delicada situação financeira - e que dependa quase que exclusivamente dos convênios públicos - pelos atrasos no pagamento de verbas trabalhistas decorrente da morosidade do Estado.

Se a Justiça do Trabalho analisar casos dessa natureza com a peculiaridade que merecem - sobretudo pelo interesse social envolvido a esses institutos -, caminhar-se-á para consolidação de uma jurisprudência que garantirá maior segurança jurídica e reprimirá atos estatais de ingerência, preservando o positivo impacto social dessas instituições.

________

1 Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

§ 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.

2 Art. 501 - Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

3 (TRT-16 00162592120215160016, Relator: MARCIA ANDREA FARIAS DA SILVA, Data de Publicação: 21/12/2021)

João Pedro Omena Belfort Lustosa
Advogado, sócio do Magalhães Advogados. Pós-graduado em Direito Societário pelo Instituto Luiz Mário Moutinho. Pós-graduando em Direito Imobiliário.

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