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10 questões atuais (e críticas) da advocacia criminal no Brasil

O artigo expõe 10 ameaças atuais ao direito de defesa no Brasil, revelando a crise estrutural e política da advocacia criminal no sistema penal.

2/9/2025
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A advocacia criminal no Brasil vive uma crise (quase) silenciosa. Enquanto a sociedade debate segurança pública e eficiência do sistema de justiça, práticas e tendências preocupantes corroem as bases do direito de defesa. Este artigo identifica (ao menos) dez questões críticas que todo jurista precisa conhecer e que toda a sociedade precisa se atentar.

1. Sustentação oral gravada: O fim do diálogo real

O problema: A resolução CNJ 591/24 permite sustentações orais gravadas em sessões virtuais, transformando o contraditório dinâmico em monólogos documentados.

Por que importa: A sustentação oral não é apenas formalidade. É o momento em que o advogado pode ajustar sua argumentação com base nas reações dos julgadores, usar linguagem corporal e criar conexão persuasiva. A modalidade gravada elimina essa interação humana essencial.

Na prática: Imagine tentar convencer alguém enviando um áudio pelo WhatsApp em vez de conversar pessoalmente. É exatamente isso que está acontecendo nos tribunais, sem contar com a possibilidade de sequer ser ouvido.

2. Juízes que ignoram provas da defesa

O problema: Tribunais superiores consolidaram que juízes não precisam analisar todas as provas quando já têm "motivo suficiente" para decidir.

Por que importa: No processo penal, onde a liberdade está em jogo, essa orientação pode ser devastadora. Provas cruciais e argumentos sólidos da defesa podem ser simplesmente ignorados.

Exemplo real: Defesas apresentam raciocínios e teses, amparados nos autos, que são descartados sem análise porque o juiz já se convenceu com as primeiras evidências da acusação.

3. Acesso negado: O sigilo que cega a defesa

O problema: Apesar de decisões do STF garantindo acesso integral às provas, a prática forense ainda impõe limitações sistemáticas, seletivas e qualitativas ao conteúdo das investigações.

Por que importa: Como defender alguém sem conhecer todas as evidências? É como iniciar um jogo já direcionando o resultado.

A realidade: Elementos digitais, perícias complexas e documentos investigativos frequentemente ficam inacessíveis à defesa, criando desequilíbrio fatal no processo. O acesso é franqueado de maneira seletiva, de acordo com a delimitação da acusação, e não sob a análise do interesse da defesa.

4. O desequilíbrio estrutural: Defesa técnica fragilizada

O problema: Ministério Público tem estrutura, recursos e prerrogativas muito superiores à Defensoria Pública e advocacia privada.

Por que importa: Como estruturar um devido processo legal, em que uma das partes tem uma superestrutura, frente a outra que está fragilizada?

Na prática: Enquanto a acusação conta com peritos, analistas e consultores, a defesa muitas vezes não consegue produzir contraprova técnica adequada, inclusive com dificuldades normativas e estruturais de fazer uma investigação.

5. Crimes-coringa: Organização criminosa e lavagem para tudo

O problema: Organização criminosa e lavagem de dinheiro viraram "crimes-coringa" aplicados genericamente, principalmente em denúncias vagas.

A distorção: É comum a inclusão de pelo menos um desses crimes, mesmo sem demonstrar seus elementos específicos, principalmente em operações criminais midiáticas.

Exemplo prático: Múltiplos réus automaticamente viram "organização criminosa"; qualquer movimentação financeira se transforma em "lavagem de dinheiro".

6. O juiz que investiga: Resquícios inquisitoriais

O problema: Apesar do sistema acusatório constitucional, juízes mantêm poderes investigativos que comprometem sua imparcialidade.

A consequência: O magistrado deixa de ser árbitro imparcial e se torna investigador, violando a separação de funções do sistema acusatório.

A solução: Basta o juiz ser parcial, parecer parcial e não ser protagonista da produção de provas – já é um bom começo.

7. Habeas corpus limitado: O remédio que perde força

O problema: Tribunais superiores criam restrições jurisprudenciais que limitam o acesso ao remédio constitucional.

Os números: STJ atingiu 1 milhão de habeas corpus, mas a solução tem sido limitar o acesso, não corrigir as causas.

A armadilha: Súmulas e "jurisprudência defensiva" criam obstáculos que podem deixar violações sem correção. Nariz está sangrando, e a solução é cortar a cabeça.

8. Colaboração premiada: Quando a delação vale mais que a verdade

O problema: Supervalorização dos acordos de colaboração cria distorções que privilegiam colaboradores em detrimento da justiça material.

A distorção: Pena deixa de ser baseada no crime praticado e passa a depender de "escolhas táticas" durante o processo.

O risco: Desigualdade entre colaboradores e não colaboradores compromete a isonomia processual, entre outros efeitos nocivos.

9. Advocacia em tempos de polarização: O desafio da neutralidade

O problema: Polarização política transformou Direito Penal em arma partidária, colocando advogados criminais na linha de fogo.

A realidade: Advogados que defendem casos politicamente sensíveis enfrentam pressão social, midiática e até ameaças pessoais.

O dilema: Como manter a legitimidade do devido processo penal quando a sociedade/judiciário identifica o advogado com as posições do cliente? Como fazer um julgamento justo, se a defesa técnica é desvalorizada a partir do momento que se identifica a coloração partidária do cliente do advogado?

10. Criminalização da advocacia: Quando defender vira crime

O problema: Advogados criminais enfrentam estigmatização social e até perseguição formal, especialmente através de investigações que acabam ferindo o sigilo profissional.

A confusão: Sociedade confunde o papel do advogado com a conduta do cliente, tratando a defesa como "benefício ao crime".

Por que isso compromete a democracia: Quando a advocacia criminal é criminalizada, o próprio sistema de justiça entra em colapso. Sem defesa técnica efetiva, não há contraditório real, não há descoberta da verdade processual e não há legitimidade nas decisões judiciais.

Uma nota final

As dez questões críticas analisadas neste artigo revelam uma realidade que transcende os interesses corporativos da advocacia criminal e alcança dimensões fundamentais da democracia brasileira. Esses problemas não afetam apenas advogados criminais, pois eles comprometem a qualidade da justiça que todos nós podemos precisar um dia, abalam a legitimidade do sistema penal brasileiro e ameaçam os próprios fundamentos da democracia e do Estado de Direito.

A advocacia criminal brasileira enfrenta hoje um duplo desafio sem precedentes: resistir às limitações técnicas e procedimentais que comprometem sistematicamente o exercício da defesa, ao mesmo tempo em que deve superar os preconceitos e subjetivismos existentes em um ambiente de extrema polarização política. 

Este cenário exige não apenas competência técnica dos profissionais, mas uma compreensão mais ampla da sociedade sobre o papel essencial que a advocacia criminal desempenha na preservação das liberdades democráticas.

O futuro da justiça criminal no Brasil depende fundamentalmente da capacidade da sociedade de reconhecer que a defesa não é inimiga da justiça, mas sua condição de possibilidade. 

Quando defendemos o direito de defesa, quando protegemos as prerrogativas da advocacia, quando resistimos à criminalização da atividade advocatícia, estamos defendendo não apenas uma profissão, mas os valores fundamentais que distinguem uma sociedade livre de um regime autoritário.

O desafio que se apresenta é, portanto, coletivo. Exige de todos os atores do Direito, da mídia, dos formadores de opinião e da sociedade civil um compromisso renovado com os princípios democráticos e uma compreensão mais madura sobre o papel que cada instituição desempenha na preservação da liberdade e da justiça. Somente através deste esforço conjunto será possível superar as questões críticas aqui analisadas e construir um sistema de justiça penal verdadeiramente democrático, legítimo e eficaz para o século XXI.

Autor

Clovis Volpe Sócio-diretor do Moisés Volpe e Del Bianco Advogados. Professor universitário. Mestre e doutor em Direito Constitucional. Especialista em Ciências Criminais. MBA em Direito Empresarial.

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