A advocacia criminal no Brasil vive uma crise (quase) silenciosa. Enquanto a sociedade debate segurança pública e eficiência do sistema de justiça, práticas e tendências preocupantes corroem as bases do direito de defesa. Este artigo identifica (ao menos) dez questões críticas que todo jurista precisa conhecer e que toda a sociedade precisa se atentar.
1. Sustentação oral gravada: O fim do diálogo real
O problema: A resolução CNJ 591/24 permite sustentações orais gravadas em sessões virtuais, transformando o contraditório dinâmico em monólogos documentados.
Por que importa: A sustentação oral não é apenas formalidade. É o momento em que o advogado pode ajustar sua argumentação com base nas reações dos julgadores, usar linguagem corporal e criar conexão persuasiva. A modalidade gravada elimina essa interação humana essencial.
Na prática: Imagine tentar convencer alguém enviando um áudio pelo WhatsApp em vez de conversar pessoalmente. É exatamente isso que está acontecendo nos tribunais, sem contar com a possibilidade de sequer ser ouvido.
2. Juízes que ignoram provas da defesa
O problema: Tribunais superiores consolidaram que juízes não precisam analisar todas as provas quando já têm "motivo suficiente" para decidir.
Por que importa: No processo penal, onde a liberdade está em jogo, essa orientação pode ser devastadora. Provas cruciais e argumentos sólidos da defesa podem ser simplesmente ignorados.
Exemplo real: Defesas apresentam raciocínios e teses, amparados nos autos, que são descartados sem análise porque o juiz já se convenceu com as primeiras evidências da acusação.
3. Acesso negado: O sigilo que cega a defesa
O problema: Apesar de decisões do STF garantindo acesso integral às provas, a prática forense ainda impõe limitações sistemáticas, seletivas e qualitativas ao conteúdo das investigações.
Por que importa: Como defender alguém sem conhecer todas as evidências? É como iniciar um jogo já direcionando o resultado.
A realidade: Elementos digitais, perícias complexas e documentos investigativos frequentemente ficam inacessíveis à defesa, criando desequilíbrio fatal no processo. O acesso é franqueado de maneira seletiva, de acordo com a delimitação da acusação, e não sob a análise do interesse da defesa.
4. O desequilíbrio estrutural: Defesa técnica fragilizada
O problema: Ministério Público tem estrutura, recursos e prerrogativas muito superiores à Defensoria Pública e advocacia privada.
Por que importa: Como estruturar um devido processo legal, em que uma das partes tem uma superestrutura, frente a outra que está fragilizada?
Na prática: Enquanto a acusação conta com peritos, analistas e consultores, a defesa muitas vezes não consegue produzir contraprova técnica adequada, inclusive com dificuldades normativas e estruturais de fazer uma investigação.
5. Crimes-coringa: Organização criminosa e lavagem para tudo
O problema: Organização criminosa e lavagem de dinheiro viraram "crimes-coringa" aplicados genericamente, principalmente em denúncias vagas.
A distorção: É comum a inclusão de pelo menos um desses crimes, mesmo sem demonstrar seus elementos específicos, principalmente em operações criminais midiáticas.
Exemplo prático: Múltiplos réus automaticamente viram "organização criminosa"; qualquer movimentação financeira se transforma em "lavagem de dinheiro".
6. O juiz que investiga: Resquícios inquisitoriais
O problema: Apesar do sistema acusatório constitucional, juízes mantêm poderes investigativos que comprometem sua imparcialidade.
A consequência: O magistrado deixa de ser árbitro imparcial e se torna investigador, violando a separação de funções do sistema acusatório.
A solução: Basta o juiz ser parcial, parecer parcial e não ser protagonista da produção de provas – já é um bom começo.
7. Habeas corpus limitado: O remédio que perde força
O problema: Tribunais superiores criam restrições jurisprudenciais que limitam o acesso ao remédio constitucional.
Os números: STJ atingiu 1 milhão de habeas corpus, mas a solução tem sido limitar o acesso, não corrigir as causas.
A armadilha: Súmulas e "jurisprudência defensiva" criam obstáculos que podem deixar violações sem correção. Nariz está sangrando, e a solução é cortar a cabeça.
8. Colaboração premiada: Quando a delação vale mais que a verdade
O problema: Supervalorização dos acordos de colaboração cria distorções que privilegiam colaboradores em detrimento da justiça material.
A distorção: Pena deixa de ser baseada no crime praticado e passa a depender de "escolhas táticas" durante o processo.
O risco: Desigualdade entre colaboradores e não colaboradores compromete a isonomia processual, entre outros efeitos nocivos.
9. Advocacia em tempos de polarização: O desafio da neutralidade
O problema: Polarização política transformou Direito Penal em arma partidária, colocando advogados criminais na linha de fogo.
A realidade: Advogados que defendem casos politicamente sensíveis enfrentam pressão social, midiática e até ameaças pessoais.
O dilema: Como manter a legitimidade do devido processo penal quando a sociedade/judiciário identifica o advogado com as posições do cliente? Como fazer um julgamento justo, se a defesa técnica é desvalorizada a partir do momento que se identifica a coloração partidária do cliente do advogado?
10. Criminalização da advocacia: Quando defender vira crime
O problema: Advogados criminais enfrentam estigmatização social e até perseguição formal, especialmente através de investigações que acabam ferindo o sigilo profissional.
A confusão: Sociedade confunde o papel do advogado com a conduta do cliente, tratando a defesa como "benefício ao crime".
Por que isso compromete a democracia: Quando a advocacia criminal é criminalizada, o próprio sistema de justiça entra em colapso. Sem defesa técnica efetiva, não há contraditório real, não há descoberta da verdade processual e não há legitimidade nas decisões judiciais.
Uma nota final
As dez questões críticas analisadas neste artigo revelam uma realidade que transcende os interesses corporativos da advocacia criminal e alcança dimensões fundamentais da democracia brasileira. Esses problemas não afetam apenas advogados criminais, pois eles comprometem a qualidade da justiça que todos nós podemos precisar um dia, abalam a legitimidade do sistema penal brasileiro e ameaçam os próprios fundamentos da democracia e do Estado de Direito.
A advocacia criminal brasileira enfrenta hoje um duplo desafio sem precedentes: resistir às limitações técnicas e procedimentais que comprometem sistematicamente o exercício da defesa, ao mesmo tempo em que deve superar os preconceitos e subjetivismos existentes em um ambiente de extrema polarização política.
Este cenário exige não apenas competência técnica dos profissionais, mas uma compreensão mais ampla da sociedade sobre o papel essencial que a advocacia criminal desempenha na preservação das liberdades democráticas.
O futuro da justiça criminal no Brasil depende fundamentalmente da capacidade da sociedade de reconhecer que a defesa não é inimiga da justiça, mas sua condição de possibilidade.
Quando defendemos o direito de defesa, quando protegemos as prerrogativas da advocacia, quando resistimos à criminalização da atividade advocatícia, estamos defendendo não apenas uma profissão, mas os valores fundamentais que distinguem uma sociedade livre de um regime autoritário.
O desafio que se apresenta é, portanto, coletivo. Exige de todos os atores do Direito, da mídia, dos formadores de opinião e da sociedade civil um compromisso renovado com os princípios democráticos e uma compreensão mais madura sobre o papel que cada instituição desempenha na preservação da liberdade e da justiça. Somente através deste esforço conjunto será possível superar as questões críticas aqui analisadas e construir um sistema de justiça penal verdadeiramente democrático, legítimo e eficaz para o século XXI.