1. Introdução
O exame de corpo de delito, previsto no art. 158 do CPP, é tradicionalmente considerado prova indispensável para a condenação em crimes que deixam vestígios. No entanto, no contexto das ações penais por violência doméstica, essa exigência tem sido relativizada por parte da jurisprudência, que passou a admitir a substituição do laudo pericial por outros meios de prova - inclusive a palavra isolada da suposta vítima, muitas vezes amparada por diretrizes como o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Este ensaio analisa criticamente essa flexibilização, apontando seus riscos à legalidade, ao contraditório e à presunção de inocência do acusado.
2. O papel do exame de corpo de delito nos crimes com vestígio
De acordo com o art. 158 do CPP, “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. Trata-se de norma de ordem pública, cujo objetivo é impedir condenações baseadas apenas em narrativas ou impressões subjetivas. O laudo pericial é, portanto, o instrumento técnico que dá suporte à verificação da materialidade do delito.
3. A realidade prática: Ausência de laudo e flexibilização das garantias
Na prática forense, é comum que a suposta vítima de violência doméstica alegue agressões, mas não se submeta ao exame pericial no IML - Instituto Médico Legal. Muitas vezes, isso se dá por escolha pessoal ou orientação de terceiros. Diante dessa omissão, o Judiciário, apoiado em doutrina e jurisprudência feminista, tem aceitado outras formas de prova, como fotos, relatórios médicos particulares, e até mesmo apenas a versão da vítima. Essa tendência se intensificou com a difusão do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que preconiza a valorização da palavra da mulher, especialmente nos crimes de violência doméstica praticados em contexto íntimo e privado.
4. O risco da condenação sem perícia
A substituição do exame técnico por testemunhos subjetivos ou documentos unilaterais coloca em xeque o direito fundamental à prova. Não se trata de descredibilizar a palavra da mulher, mas sim de evitar que ela, sozinha, tenha força probatória plena em crimes que, por definição legal, exigem prova técnica da materialidade. Quando o exame não é realizado - mesmo sendo possível - e o Judiciário admite sua substituição por outros meios frágeis, corre-se o risco de condenações injustas, e amesquinhamento do direito fundamental à prova.
5. A inversão do ônus da prova
A situação se agrava quando a ausência da perícia decorre da própria escolha da suposta vítima, que, mesmo tendo condições de se submeter ao exame, opta por não o fazer. Nesses casos, admitir a condenação com base apenas em sua versão implica transferir o ônus da prova ao acusado, que passa a ter que provar que não agrediu, contrariando frontalmente o princípio da presunção de inocência. Isso representa uma distorção grave do devido processo legal, onde, por lógica, cabe à acusação comprovar os fatos imputados.
6. A crítica à jurisprudência permissiva
A jurisprudência que relativiza o art. 158 do CPP sob o argumento de proteção à mulher ignora o limite entre proteção e violação de garantias processuais. A lógica do “em caso de dúvida, a palavra da vítima prevalece” não pode justificar o afastamento de regras processuais e fundamentais claras. O discurso de gênero não pode servir como licença para exceções perigosas que, se aceitas, corroem a imparcialidade do sistema penal e desestimulam o cumprimento das obrigações probatórias por parte do Estado.
7. A proteção não pode justificar o desequilíbrio
A proteção da mulher em situação de violência é um dever do Estado, mas não pode ser exercida à custa da integridade das garantias penais. O uso do protocolo de gênero deve respeitar os limites legais e constitucionais e não pode ser invocado como substituto de provas técnicas. A defesa não pode ser fragilizada por uma presunção de culpa travestida de sensibilidade institucional. Justiça com parcialidade não é justiça - é ativismo judicial contra legem.
8. Conclusão
Condenar alguém por crime com vestígio sem exame de corpo de delito representa grave violação ao devido processo legal. A ausência dessa prova não pode ser suprida pela palavra isolada da suposta vítima, ainda que embasada por discursos de gênero. A justiça deve ser equilibrada, técnica e baseada em provas consistentes. Proteger a mulher é essencial, mas condenar sem perícia é romper com a legalidade, com o contraditório e com a própria ideia de justiça penal garantista. O verdadeiro enfrentamento à violência doméstica deve ocorrer com rigor, mas também com respeito às garantias fundamentais do acusado, pois proteger à mulher é também proteger a lei, a Constituição e os direitos humanos.