A atuação estatal, no âmbito fiscal e penal, estrutura-se a partir de princípios como legalidade e anterioridade, considerados pilares do Estado de Direito. Contudo, a aplicação rigorosa desses princípios nem sempre se alinha à moralidade administrativa ou ao ideal de justiça social. Essa fricção entre a validade formal e a legitimidade substancial gera paradoxos que se manifestam, sobretudo, no campo da arrecadação tributária e da persecução penal, exigindo uma análise crítica sobre a coerência do sistema jurídico.
De um modo geral, pode-se dizer que toda pessoa, física ou jurídica, que, de alguma forma, contribua para o surgimento de um fato gerador é obrigada a pagar tributo.
Da mesma forma, toda pessoa que pratique uma determinada conduta considerada como infração penal deve ser responsabilizada penalmente.
À primeira vista, observa-se que o ponto de confluência entre o Direito Tributário e o Direito Penal é justamente os princípios da legalidade e da anterioridade, que são a essência da tipificação dos tributos e das infrações penais e de suas obrigações e sanções correspondentes.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o Estado, seja como órgão de persecução fiscal ou como órgão de persecução penal, tem suas condutas pautadas irremediavelmente por tais princípios. Não se deve esquecer, diga-se de passagem, do respeito ao princípio da moralidade e ao senso de justiça e paz social em todos os âmbitos da Administração Pública.
Todavia, importa destacar que a legalidade também produz paradoxos e injustiças que nem sempre correspondem à ideia de moralidade e de justiça social no trato da coisa pública.
Com efeito, o Estado arrecada tributos sobre bens e serviços, obviamente lícitos. Isso é legal. Entretanto, em certas circunstâncias - como quando incide o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa - também arrecada tributos sobre bens e serviços ilícitos. E isso é igualmente legal!
Diante disso, impõe-se a indagação: pode a legalidade criar a aparência de moralidade e de justiça? Ou, formulando de outra maneira, pode a imoralidade e a injustiça se esconder sob o manto da legalidade?
Para melhor ilustrar, tomemos como exemplo as leis 8.137/90 e 9.613/98, que tratam, dentre outros institutos jurídicos, da sonegação fiscal e da lavagem de dinheiro.
Um primeiro paradoxo acerca da legalidade da postura do Estado consiste no fato de que este, ao tributar consciente ou inconscientemente dinheiro lavado, se beneficia de uma atividade que simultaneamente condena. Ora, os crimes de lavagem se perpetuam pelo jogo das aparências, inculcando os agentes criminosos em terceiros a ideia de legalidade naquilo que é ilegal, enquanto o Estado, sob o manto da irretroatividade da lei penal mais gravosa (já que a lei 9.613 é de 1998), encobre a imoralidade de suas arrecadações tributárias sobre bens e serviços oriundos de patrimônios ilícitos adquiridos até aquele ano.
Em consequência, a legalidade travestida de irretroatividade da lei penal mais gravosa acentua o paradoxo estatal na medida em que a lei 9.613/98 transformou inúmeros criminosos em cidadãos de bem.
Daí o trocadilho que nos permite afirmar: na sonegação fiscal, o cidadão de bem torna-se criminoso por não pagar impostos - muitas vezes por não ter condições financeiras de fazê-lo -, enquanto, na lavagem de capital, o criminoso torna-se cidadão de bem pagando os impostos, caso não haja uma persecução penal eficaz contra este a partir de 1998.
Além disso, um segundo paradoxo da legalidade imposta pelo Estado merece destaque: trata-se da possível responsabilização penal, por participação omissiva, das pessoas arroladas no art. 9º da lei 9.613/98, nos crimes de lavagem, em contraste com a total irresponsabilidade penal do órgão fiscal que tributa ou pode tributar tais bens e serviços de origem ilícita. Assim, delega-se aos particulares o dever de prever e combater a lavagem de dinheiro, sob a forma do sistema de governança.
Corroborando essa lógica, vale lembrar que, recentemente, pela via administrativa, a Receita Federal, por meio da IN RFB 2.278/25, aplicou a mesma orientação funcional da lei 9.613/98 às fintechs, impondo-lhes um sistema igualmente rigoroso de compliance e delegando novamente aos particulares a obrigação de rastrear e identificar a lavagem de dinheiro.
Não obstante tais intenções, observa-se que o próprio Estado, por intermédio da Receita Federal, tributa patrimônio ilícito com base na declaração formal, sem rastrear sua origem antes da arrecadação. Mais grave ainda: mesmo quando há suspeita de ilicitude, o tributo pode ser exigido, e só posteriormente - se houver condenação penal - o patrimônio ilícito é confiscado. Assim, o Estado pode se beneficiar economicamente de recursos cuja origem é criminosa, sem que isso implique responsabilidade institucional.
Nesse contexto, surge a pergunta incômoda: por que o Estado pode tributar sem saber, enquanto as pessoas físicas ou jurídicas de direito privado não podem operar sem saber? Em outras palavras, por que o Estado se permite agir com base na aparência (da legalidade), enquanto exige dos particulares a essência?
De fato, verifica-se nos arts. 9, 10 e 11 da lei 9.613/98 (e na referida Instrução Normativa) um rígido sistema de compliance que impõe obrigações de controle, registro, vigilância e comunicação, pressupondo uma capacidade quase absoluta dessas pessoas de identificar operações suspeitas. Ou seja, tais indivíduos, sobretudo aqueles de natureza física, correm sério risco de serem responsabilizados penalmente caso se entenda, a posteriori, que as operações financeiras não relatadas eram de origem ilícita.
Convém sublinhar que, no campo penal, a exigência de dolo para responsabilização por lavagem é clara: o agente precisa ter consciência da origem ilícita dos bens e vontade de ocultá-la. Contudo, no campo regulatório, essa exigência se dilui. O sistema de compliance impõe uma presunção de vigilância absoluta, que transforma um possível erro de tipo em negligência punível administrativamente. Em consequência, o risco de responsabilização objetiva infiltra-se nas regras da governança.
É certo que, no âmbito da jurisdição penal, é inadmissível a punição a título de culpa. Entretanto, as formas dolosas, incluindo o dolo eventual na condição de garante, são admitidas.
A partir disso, levanta-se uma questão relevante: será que a mesma dúvida - afinal, meras suspeitas não se traduzem em certezas - que induz as pessoas mencionadas nos arts. 9, 10 e 11 da referida lei (e, mais recentemente, as fintechs) a beneficiar aplicadores de ativos financeiros será também suficiente para convencer os órgãos de persecução penal ao rastrearem a origem dos bens declarados?
A resposta, claramente, é negativa. A rastreabilidade do dinheiro sujo é extremamente complexa. E, quando inserida no universo das tecnologias da Informação, torna-se ainda mais desafiadora, já que os criminosos, como os hackers black hat, estão muito à frente das atuais técnicas de persecução penal do Estado. Se tais agentes conseguem dificultar o rastreamento até para o próprio Estado, que dirá para os gestores de contas e contratos das instituições financeiras privadas! De modo que, quando o Estado descobre como a lavagem ocorreu (como no caso recente das fintechs), os hackers já migraram para outras práticas ilícitas, inclusive desenvolvendo softwares para novas formas de ocultação de ativos.
Por essa razão, tende a imperar - como tem imperado nas persecuções penais conhecidas - a subjetividade das análises dos documentos contábil-financeiros pelo Estado, que nem sempre se traduzem em exatidão e justiça. O resultado, infelizmente, é a penalização fria e cruel de pessoas inocentes que não têm, e continuam não tendo, condições técnicas para enfrentar sozinhas, sobretudo no mundo digital, tais práticas criminosas sofisticadas.
Em verdade, o Estado é tão vítima quanto os particulares da ação dos criminosos. No entanto, apenas os particulares, pessoas físicas e jurídicas de Direito Privado, são responsabilizados por não prever as condutas criminosas de lavagem de dinheiro.
E por que consideramos paradoxal a postura do Estado neste ponto? Ora, porque o sistema de governança imposto aos sujeitos mencionados no art. 9º da lei 9.613/98 constrói uma ilusão: a de que tais pessoas devem sempre saber quando o dinheiro é sujo, quando, na realidade, nem sempre é possível executar tal tarefa. Essa presunção de vigilância absoluta contrasta com a prática do próprio Estado arrecadador, que tributa com base na declaração formal e na aparência de legalidade, sem investigar previamente a origem dos recursos.
Essa lógica se repete também na esfera administrativa, já que a Receita Federal, apesar de ser órgão de persecução fiscal, delega às pessoas jurídicas privadas a obrigação de rastrear e identificar a origem ilícita do dinheiro. O paradoxo, portanto, revela uma assimetria institucional: o Estado exige dos particulares uma diligência, incorporada pelo sistema de compliance, que ele mesmo não pratica no exercício de sua atividade arrecadadora.
À guisa de conclusão, ao analisar os paradoxos da postura estatal frente ao combate à lavagem de dinheiro, evidencia-se que essa assimetria institucional se mostra injusta e ineficaz diante da sofisticação das práticas criminosas e das limitações técnicas enfrentadas por particulares e pelo próprio Estado.
Para que se alcance maior justiça fiscal e penal, é fundamental que o Estado não se limite a criar leis, mas invista em inteligência, tecnologia, recursos humanos qualificados, infraestrutura e integração entre órgãos de controle, compartilhando de modo equitativo o dever de rastrear a origem dos recursos. Mais do que exigir vigilância absoluta dos particulares, é necessário repensar o modelo vigente e promover uma atuação colaborativa, ética e inovadora, na qual legalidade, moralidade, punição e arrecadação deixem de ser antagônicas.