Migalhas de Peso

Conflitos possessórios em áreas da União: Competência jurisdicional em foco

Este artigo examina os conflitos possessórios envolvendo bens da União sob a perspectiva da competência jurisdicional.

11/9/2025

1. Introdução

A ocupação de áreas públicas federais, especialmente os terrenos de marinha, apresenta um conjunto de particularidades jurídicas que merecem atenção no âmbito do direito brasileiro. Trata-se de bens da União submetidos a um regime jurídico especial, regulado principalmente pelo Decreto-Lei nº 9.760, de 1946, e pela Constituição Federal de 1988, cuja gestão e destinação envolvem interesses patrimoniais e estratégicos do Estado.

Esses imóveis podem ser objeto de utilização por particulares por meio de dois regimes distintos: a ocupação e o aforamento. A ocupação configura uma autorização precária, fundada na mera tolerância da Administração Pública, sem a outorga de qualquer direito real ao ocupante. Já o aforamento, também conhecido como enfiteuse, atribui ao particular o domínio útil sobre o bem, por meio de contrato administrativo que impõe o pagamento de foro anual. Este último constitui direito real resolúvel, com maior estabilidade jurídica em relação ao primeiro.

A natureza precária da ocupação está expressamente prevista nos arts. 131 e 132 do decreto-lei 9.760, de 1946. O primeiro dispõe que o pagamento da taxa de ocupação não implica reconhecimento de propriedade, e o segundo assegura à União o direito de retomar a posse do imóvel a qualquer tempo, conforme o interesse público. Dessa forma, a ocupação não gera posse jurídica qualificada, sendo caracterizada como mera detenção, insuscetível de proteção possessória em face da União. Ademais, por força da vedação constitucional e da jurisprudência consolidada, não há possibilidade de aquisição da propriedade desses bens por usucapião, conforme estabelece a súmula 340 do STF.

Esse regime jurídico peculiar da ocupação de bens públicos traz implicações relevantes nos litígios possessórios que envolvem essas áreas. Em especial, surgem questões complexas acerca da definição da competência jurisdicional nos casos em que se discute a posse sobre imóveis da União. Nesses conflitos, a distinção entre detenção e posse efetiva, a existência ou não de interesse jurídico da União e a forma de sua manifestação processual são elementos essenciais para delimitar se a demanda deve tramitar perante a Justiça Estadual ou Federal.

Nesse cenário, a jurisprudência do STJ teve papel relevante na evolução do tema, com julgados paradigmáticos que revelam diferentes interpretações quanto à possibilidade de proteção possessória em bens públicos. Inicialmente, a 3ª turma, no julgamento do REsp 998.409/DF, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi entendeu que a ocupação de qualquer bem público por particular, desprovida de título, configura mera detenção. Nesse sentido, a súmula 619 do STJ pacificou o entendimento de que “A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias.” Neste julgado, se fixou ainda o entendimento pela inaplicabilidade do rito especial das ações possessórias em áreas públicas.

Por outro lado, a 4ª turma, ao julgar o REsp 1.296.964 do Distrito Federal, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, adotou critério funcional à luz da função social da propriedade. Conforme essa linha, a ocupação de bem dominical, desprovido de destinação pública específica, pode configurar posse, sendo suscetível de proteção possessória entre particulares, ainda que inoponível à União.

Apesar das diferenças quanto à caracterização jurídica da relação entre o particular e o bem público, ambos os entendimentos convergem em pontos fundamentais. Nenhuma forma de posse ou ocupação é oponível à União e não há possibilidade de aquisição de propriedade sobre bens públicos por meio de usucapião. Esses limites têm repercussão direta na definição da competência do juízo nas ações possessórias, sendo imprescindível a análise da presença ou não de interesse jurídico da União no caso concreto.

Diante disso, o presente artigo tem por objetivo analisar os critérios jurídicos que determinam a competência jurisdicional nos conflitos possessórios envolvendo imóveis da União. A partir do exame da legislação aplicável, da doutrina especializada e da jurisprudência dos tribunais superiores, busca-se compreender quando a presença da União, como parte, assistente ou oponente, impõe o deslocamento da causa para a Justiça Federal, conforme o art. 109, inciso I, da Constituição Federal. Pretende-se, com isso, contribuir para a delimitação precisa do alcance da atuação federal e para a consolidação de um entendimento coerente sobre a matéria.

2. Interesse jurídico da União em ações possessórias sobre bens públicos federais

A definição da competência jurisdicional nas ações possessórias envolvendo bens da União depende, substancialmente, da verificação da presença de interesse jurídico direto e qualificado por parte do ente federal. Trata-se de um elemento central que, uma vez configurado, atrai a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inciso I, da Constituição Federal. Contudo, essa configuração não se presume, exigindo análise cuidadosa da natureza do bem, da controvérsia posta em juízo e da eventual repercussão da decisão sobre o domínio público federal.

2.1 Fundamentos doutrinários sobre o interesse da União em litígios possessórios

A doutrina distingue o interesse jurídico da União, que autoriza o deslocamento da competência, do mero interesse econômico ou reflexo, que, por si só, não justifica a federalização da demanda.

A doutrina especializada estabelece uma distinção fundamental entre o interesse jurídico da União, que autoriza o deslocamento da competência, e o mero interesse econômico ou patrimonial, que, por si só, não justifica a federalização da demanda. Nesse sentido, a obra de Joel de Menezes Niebuhr é elucidativa ao analisar a natureza dos terrenos de marinha. O autor ressalta que a titularidade federal sobre essas áreas, a faixa de 33 metros contados da linha da preamar média de 1831, conforme o art. 20, VII, da Constituição, não representa um simples direito de propriedade.

Essa titularidade, originada na necessidade histórica de defesa do território e hoje caracterizada pela importância estratégica e econômica desse patrimônio federal, confere à União um interesse jurídico qualificado que transcende a mera arrecadação de taxas. Trata-se de um interesse ligado à gestão soberana de um ativo muito importante na proteção ambiental e no ordenamento do litoral. Portanto, segundo essa perspectiva, qualquer litígio que possa afetar a gestão, a destinação ou a integridade desses bens toca diretamente na esfera de atribuições constitucionais da União, configurando o interesse jurídico necessário para a federalização da causa, e não um simples interesse patrimonial reflexo.

Essa titularidade especial confere à União prerrogativas específicas de proteção possessória, inclusive o direito de imissão na posse de tais imóveis sempre que houver risco à sua integridade ou comprometimento de sua destinação pública. A proteção do domínio federal, nesses casos, não se limita ao aspecto formal da propriedade, mas estende-se à preservação do interesse público vinculado à utilização adequada dos bens.

Não obstante, a doutrina e a jurisprudência convergem no sentido de que a simples presença de um bem público no contexto fático da lide não é suficiente para ensejar o deslocamento da competência à Justiça Federal. É indispensável que o conflito envolva uma ameaça concreta ao domínio ou à destinação pública do bem, ou interfira diretamente em políticas públicas ou questões ligadas ao interesse concreto federal. Em outras palavras, exige-se que o direito material discutido na demanda afete de modo relevante a esfera jurídica da União.

No entendimento da AGU, A simples titularidade da União sobre determinado imóvel não implica, por si só, interesse jurídico apto a justificar a competência da Justiça Federal, sendo imprescindível que a lide tenha o potencial de comprometer diretamente o domínio público federal ou a implementação de políticas públicas sob responsabilidade da União. Trata-se de critério objetivo que exige análise concreta do bem, da controvérsia e de sua repercussão no interesse público federal, não se presumindo a configuração do interesse jurídico.

Assim, em litígios em que a controvérsia possessória se dá exclusivamente entre particulares, sem qualquer reflexo sobre o domínio federal ou sobre a função pública do imóvel, não há interesse jurídico qualificado a justificar a intervenção da União. Nesses casos, mantém-se a competência da Justiça Estadual. Em contrapartida, quando se discute, por exemplo, a possibilidade de usucapião sobre bem público, a titularidade dominial da União ou a ocupação que comprometa a destinação pública da área, o interesse jurídico federal se revela inequívoco, legitimando a sua intervenção e atraindo a competência federal.

2.2 Atuação institucional (AGU, SPU, INCRA) e procedimentos de intervenção

No plano prático, a atuação da AGU - Advocacia-Geral da União e dos órgãos federais patrimoniais é decisiva na proteção possessória de bens da União, seja provocando o deslocamento da competência para o foro federal, seja intervindo nos processos judiciais em curso. A SPU - Secretaria do Patrimônio da União, responsável pela gestão dos imóveis federais, monitora ocupações e litígios envolvendo bens da União e usualmente aciona a AGU ao identificar que uma disputa possessória em trâmite na Justiça Estadual recai sobre imóvel federal. De igual modo, autarquias federais como o INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, no caso de terras destinadas à reforma agrária ou projetos federais, e a FUNAI - Fundação Nacional dos Povos Indígenas, em áreas indígenas, avaliam a necessidade de intervenção em conflitos possessórios que possam afetar interesses da União ou de comunidades sob tutela federal. 

Os instrumentos processuais para essa intervenção variam conforme o caso concreto. Em muitas situações, opta-se pelo ingresso da União no processo original na qualidade de assistente simples da parte cujo interesse jurídico coincide com o do ente federal. Uma vez admitida a União como assistente, a competência desloca-se para a Justiça Federal, já que a Constituição inclui expressamente a União, ainda que intervenha como terceira interessada, entre as hipóteses do art. 109, I. A Corte Especial do STJ decidiu, em 2022 (embargos de divergência em REsp 1.265.625/SP), que mesmo o ingresso tardio da União como assistente simples impõe o envio do processo à Justiça Federal, dada a natureza absoluta da competência fixada constitucionalmente. Ressaltou-se, nessa decisão, que não se trata de anular atos da justiça estadual, mas de fazer prevalecer a competência ratione personae prevista na Constituição.

Outra modalidade de atuação é a intervenção como oponente, nos moldes da oposição de terceiro prevista na legislação processual. Nessa via, a União (ou o ente federal interessado) ajuíza uma ação autônoma de oposição, reivindicando para si a posse ou o domínio do bem litigioso, em face tanto do autor quanto do réu originários. Ao configurar-se a União como parte por meio dessa oposição, a competência passa a ser da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF. A jurisprudência do STJ reconhece essa possibilidade, ressaltando que a União pode deduzir em juízo qualquer matéria pertinente à defesa de seu patrimônio, inclusive relativa ao domínio do bem, mesmo quando intervém de forma incidental. Nesse sentido, o STJ editou a súmula 637 precisamente para consolidar o entendimento de que o ente público tem legitimidade e interesse em intervir em ação possessória entre particulares, podendo inclusive alegar o domínio do bem em disputa.

Sob o prisma da legitimidade e da fundamentação dessas intervenções, a União embasa seu ingresso demonstrando o nexo entre o resultado da lide possessória e o patrimônio ou interesse público federal. Por exemplo, em disputas envolvendo terrenos de marinha, a União destaca ser titular do domínio eminente desses imóveis e argumenta que a manutenção prolongada da posse por particulares, sem regularização, pode comprometer a gestão patrimonial ou a arrecadação de receitas públicas, caracterizando assim um interesse jurídico a tutelar. Em outras situações, o interesse jurídico é justificado pela destinação pública estratégica da área, como nos casos em que a área em litígio é necessária à execução de obras públicas ou à prestação de serviços federais concedidos, ou ainda quando envolve comunidades protegidas como terras quilombolas ou reservas indígenas. Nesses casos, sustenta-se que a ausência da União no feito poderia acarretar prejuízo direto a políticas públicas federais ou violar o princípio da supremacia do interesse público, sendo, portanto, indispensável a intervenção para resguardar a função pública do bem.

Em contrapartida, se a União ou o órgão federal competente avaliar que a disputa possessória não ameaça concretamente seu interesse, pode optar por não intervir. Essa decisão de não ingresso normalmente é formalizada nos autos por meio de manifestação. Foi o que ocorreu, por exemplo, em um caso de invasão em faixa de domínio de ferrovia federal: a concessionária ajuizara reintegração de posse e tanto o DNIT quanto a ANTT comunicaram não haver interesse federal na causa, por entenderem tratar-se de responsabilidade contratual da concessionária zelar pela área. Nesse caso, ausente a União ou qualquer ente federal como parte ou assistente, não se configurou o pressuposto constitucional da competência federal. A jurisprudência destaca que a mera obrigação administrativa de fiscalização ou o simples fato de a União ser proprietária mediata do bem não configura por si só interesse jurídico suficiente a deslocar a competência, notadamente quando se verifica que o direito de propriedade da União não será afetado pela decisão da ação possessória ou pelo exercício da posse. Ademais, já se decidiu que a simples manifestação de interesse pela União, sem assumir posição formal de autora, ré, assistente ou oponente, não desloca a competência para a Justiça Federal. Em síntese, exige-se a efetiva participação processual do ente federal para que se configure a hipótese do art. 109, I, da CF.

2.3 Deslocamento de competência

A jurisprudência pátria vem consolidando critérios objetivos para identificar o interesse da União em ações possessórias e, consequentemente, determinar o deslocamento da competência para a Justiça Federal. O Supremo Tribunal Federal já assentou, em sede de repercussão geral, que cabe ao Juízo Federal apreciar a existência, ou não, de interesse jurídico da União na demanda. Esse entendimento inspirou a Súmula 150 do STJ, segundo a qual compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença da União no processo. O juiz estadual, portanto, não detém competência para impedir o ingresso da União sob alegação de ausência de interesse, sob pena de usurpar atribuição reservada ao juiz federal.

Diversos precedentes ilustram as situações em que se afirmam ou afastam o interesse federal. No âmbito do STF, o RE 232.465/PR reconheceu a incompetência da Justiça Estadual para julgar ação demarcatória entre particulares relativa a terreno de marinha. Entendeu-se que tal litígio, embora formalmente entre particulares, incidia sobre bem de domínio da União, caracterizando interesse federal e atraindo a competência da Justiça Federal. Por sua vez, o STJ já decidiu, em conflito de competência, que o simples fato de o imóvel ser terreno de marinha não basta para deslocar a competência se a disputa limitar-se à posse privada, sem contestação do domínio da União. Nessas circunstâncias, ausente interesse jurídico real, mantém-se a competência da Justiça Estadual. Em consonância, o TRF da 5ª Região decidiu que, se a lide tratar apenas da posse entre particulares sem repercussão sobre a titularidade da União, deve permanecer na Justiça Estadual.

A jurisprudência mais recente do STJ reforça a tendência de afirmar a competência federal sempre que o interesse da União se manifeste de forma plausível. No REsp 1.265.625/SP, de 2022, a Corte assentou que, mesmo após concluída a fase de conhecimento na Justiça Estadual, o ingresso da União como assistente simples impõe a remessa do feito à Justiça Federal. Entendeu-se que a regra da perpetuatio jurisdictionis cede diante da competência constitucional. Em paralelo, quando a União renuncia a intervir e não há risco para o domínio público, a competência permanece na Justiça Estadual.

Por fim, destacam-se enunciados sumulares que reforçam a necessidade de participação formal da União para deslocamento da competência. Além das Súmulas 150 e 637 do STJ, a Súmula 517 do STF dispõe que sociedades de economia mista só têm foro na Justiça Federal quando a União intervém como assistente ou oponente. Em repercussão geral, o Supremo reconheceu que disputas possessórias em áreas quilombolas e terras indígenas, bens da União por disposição constitucional, devem tramitar na Justiça Federal em razão do interesse jurídico federal na proteção desses territórios.

3. Posse e ocupação de bens da União como elemento de interesse federal

3.1 Distinção entre Posse e Ocupação em áreas da União

A existência de posse ou ocupação em bens da União pode ou não acionar o interesse federal, pois envolve patrimônio público sob domínio da União e desencadeia a competência de gestão e fiscalização pela esfera federal. Nesse sentido, é importante refletir que diferentemente de situações de posse em áreas privadas, nos bens imóveis da União há um regime jurídico especial: qualquer reivindicação ou uso desses imóveis insere a União como parte interessada, sujeitando o caso à atuação da SPU - Secretaria do Patrimônio da União e, nesse caso, deve-se refletir sobre a necessidade dessa discussão ser levada à jurisdição federal.

No ordenamento brasileiro, a utilização privada de um imóvel da União é formalizada por meio de em ato de destinação de imóveis, como, por exemplo, a inscrição de ocupação, ato administrativo precário outorgado pela SPU. Essa inscrição de ocupação não se confunde com a mera posse civil: ao contrário da posse comum, que poderia levar a direitos possessórios ou usucapião em bens particulares, nos bens da União a ocupação é uma forma de autorização, sem conferir qualquer direito real ao particular. O ocupante é inscrito apenas como detentor precário, obrigado ao pagamento da taxa anual de ocupação, enquanto a União permanece titular do domínio pleno do imóvel. Assim, a ocupação reconhecida pela SPU não gera direito de propriedade nem tampouco o chamado domínio útil (como ocorre no aforamento); a União pode, a qualquer tempo, retomá-lo administrativamente se o interesse público assim exigir. Essa distinção realça que a posse em terras da União está subordinada a um regime especial de direito público, pautado pelo interesse federal e pela supremacia do patrimônio público sobre interesses individuais.

Importante destacar que a inscrição de ocupação só é concedida se o ocupante cumprir uma série de requisitos legais, os quais se aproximam dos requisitos de uma posse legítima, mas com critérios adicionais voltados ao interesse público. Por exigência da lei 9.636/1998, a SPU apenas admite a ocupação quando há comprovação de “efetivo aproveitamento” do imóvel pelo interessado, de ocupações cuja origem tenha se dado anterior à 10 de junho de 2014. Esse efetivo aproveitamento, de acordo com a IN 04 de 2018 da SPU, significa que o ocupante utiliza de fato o terreno em extensão compatível com a finalidade declarada (residencial, comercial, agrícola etc.), não sendo tolerada a mera especulação ou o abandono da área. Ademais, mesmo diante do efetivo uso, a União analisa a conveniência e oportunidade administrativas antes de outorgar a inscrição de ocupação, assegurando que a ocupação atenda ao interesse público.

Outra condição fundamental, que conecta a inscrição de ocupação cadastrada na SPU à função pública dos bens públicos, é o respeito a normas ambientais e urbanísticas. A legislação patrimonial veda a ocupação em áreas preservadas ou de uso incompatível com planos urbanísticos, justamente para resguardar a função socioambiental dessas propriedades públicas. Normativos da SPU, como a IN 04 de 2018, preveem que a inscrição de ocupação poderá ser cancelada se o ocupante praticar dano ambiental no terreno, fizer uso do imóvel em desconformidade com as posturas municipais (zoneamento, uso do solo, código de obras etc.) ou impedir o acesso a bens de uso comum do povo (por exemplo, bloqueando acesso a praias). Tais vedações evidenciam que não basta estar na posse física do imóvel para ter a anuência da União, é necessário que a ocupação se coadune com a finalidade pública do bem, observando-se a proteção ao meio ambiente e o ordenamento territorial. Em síntese, os requisitos legais da ocupação em terras federais não se resumem aos elementos tradicionais da posse civil (como animus domini e continuidade), mas englobam critérios de interesse público que asseguram que o uso privado não desvirtue o caráter público do imóvel.

Por fim, vale ressaltar que a gestão dessas ocupações e posses em bens federais compete exclusivamente à SPU, conforme disposição expressa do regime jurídico do patrimônio da União. A SPU, no exercício das atribuições conferidas por sua estrutura regimental (por exemplo, pelo decreto 9.745/2019, Anexo I), é responsável por identificar e delimitar as áreas de domínio ou posse da União, cadastrar os imóveis federais, proceder à discriminação dessas terras públicas, além de controlar e fiscalizar sua utilização. Também lhe cabe manter atualizadas as informações nos cadastros federais (como o SPIUnet, que emite o Registro Imobiliário Patrimonial, RIP de cada bem) e adotar medidas para regularizar ou retomar imóveis indevidamente ocupados. Essa atuação centralizada garante a presença do interesse federal em todas as etapas: desde a definição dos limites do bem público, passando pelo reconhecimento de um ocupante legítimo, até a eventual desocupação forçada de invasores ou irregulares, tudo é conduzido pelo ente federal competente. Em suma, a posse/ocupação à luz da legislação patrimonial da União é indissociável do interesse federal, pois envolve não só o domínio da União, mas também a necessidade de que o uso da propriedade pública atenda aos objetivos tutelados pela União. Essa é uma importante distinção entre a ocupação regular em áreas da União, que exige a observância do interesse público-federal e reforça a legitimidade da União em intervir e regular tais posses/ocupações, distinguindo-as do regime privado das posses protegidas e tuteladas pelos arts. 1196 e demais do CC.

3.2 Competência federal em disputas possessórias em áreas com pedido de regularização e processo administrativo pendente na SPU.

A existência de um processo administrativo de regularização fundiária em curso na Secretaria do Patrimônio da União, como um pedido de inscrição de ocupação apresentado por um dos litigantes, revela interesse jurídico direto da União na disputa possessória. Nessa situação, a controvérsia deixa de ser um mero conflito fático de posse entre particulares e passa a envolver o direito de ocupação de um bem público federal, cuja outorga depende de decisão administrativa de órgão da União. Salvo melhor juízo, configura-se, hipótese de deslocamento da causa para a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal. Quando se discute judicialmente qual das partes tem a melhor prerrogativa para obter a regularização da ocupação perante a SPU, a matéria afeta diretamente o domínio da União sobre o imóvel e a destinação pública a ele atribuída. A demanda deve, por isso, ser apreciada no foro federal com a presença da União, prevenindo decisões judiciais conflitantes com o processo administrativo federal.

No STJ, a súmula 637 consolidou que o ente público tem legitimidade e interesse para intervir em ação possessória entre particulares, podendo inclusive suscitar questões de domínio. No Conflito de Competência 190.297/AP, julgado em 27/9/2023, a Corte analisou reintegração de posse em área quilombola onde o INCRA havia expedido licença de ocupação. Entendeu-se que o ato administrativo federal modificou a natureza da lide, pois passou a discutir-se a validade da posse reconhecida pela União. Concluiu-se pela competência da Justiça Federal, em razão do interesse jurídico federal. Nesses casos, a súmula 150 do STJ reforça que compete ao juiz federal decidir sobre a existência desse interesse.

O TRF da 1ª região igualmente já reconheceu que a existência de requerimento administrativo de regularização fundiária em tramitação no órgão competente configura interesse jurídico da União. A corte afirmou que tal processo administrativo prova o interesse federal, pois qualquer decisão judicial sobre a posse influenciaria diretamente o resultado da regularização. Em razão disso, determinou-se a competência federal. O TRF da 4ª região firmou entendimento de que, havendo processos de regularização em curso na SPU, a União detém interesse jurídico na causa. Ressaltou que a Justiça Estadual não pode decidir sobre a posse sem considerar a prerrogativa da União de definir a ocupação, sob pena de proferir decisão inconciliável com a do órgão federal. Assim, para evitar decisões contraditórias e assegurar segurança jurídica, declarou-se a competência da Justiça Federal.

Nesses casos, para definição da competência para a Justiça Federal deve-se analisar: (i) a natureza do bem, por se tratar de imóvel da União sujeito ao regime jurídico público; (ii) a natureza da disputa, que envolve direito de ocupação do particular em relação ao bem público federal; (iii) a existência de processo administrativo pendente na SPU, prova de interesse jurídico atual e direto da União; (iv) o risco de decisões conflitantes entre Justiça Estadual e SPU; (v) a usurpação de competência administrativa caso o juízo estadual decida sobre a destinação do bem; e (vi) o respaldo legal e jurisprudencial no art. 109, I, da CF, e nas súmulas 150 e 637 do STJ.

Conclusão

A análise permite concluir que a definição do juízo competente em conflitos possessórios envolvendo bens da União está diretamente vinculada ao interesse jurídico do ente federal. A Constituição, no art. 109, I, estabelece critério ratione personae para fixação da competência, atribuindo à Justiça Federal o julgamento das causas em que a União figure como parte, assistente ou oponente. Litígios puramente privados permanecem na Justiça Estadual. Por outro lado, sempre que o patrimônio da União ou uma finalidade pública relevante possa ser afetada, a União tem o dever de intervir, atraindo a competência federal.

O regime peculiar dos bens federais, como os terrenos de marinha, demonstra que muitas disputas de posse nessas áreas envolvem não apenas interesses particulares, mas também a preservação do domínio público e a implementação de políticas estatais. Nessas hipóteses, cabe à União defender seus bens em juízo, sob pena de decisões contraditórias e insegurança jurídica. A jurisprudência do STF, STJ e TRFs tem delineado critérios objetivos para identificar tais situações, assegurando que sejam processadas no foro federal. A distinção entre disputas possessórias meramente privadas e aquelas que repercutem sobre o patrimônio público federal é essencial para garantir segurança jurídica, respeito ao pacto federativo e a adequada tutela do patrimônio da União.

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Referências bibliográficas

ARAÚJO, Fábio Caldas de. Posse. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 457 p.

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NIEBUHR, Joel de Menezes. Terrenos de marinha: aspectos destacados. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 2, ago. 2004. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao002/joel_niebuhr02.htm. Acesso em: 08 setembro 2025.

Victor Ponte
Advogado formado pela Universidade Estadual Vale do Acaraú, com especialização pela ESMAFE RS, mestre pela Universidade de Lisboa, autor do e-book "Regularização de Imóveis em Terrenos de Marinha"

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