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A IN RFB 2.278/25 entre a legalidade tributária e penal

A IN RFB 2.278/25 busca combater crimes tributários e lavagem, mas levanta debate sobre legalidade, sigilo e proporcionalidade, exigindo equilíbrio entre fiscalização e garantias constitucionais.

17/9/2025

Em meio ao fortalecimento das políticas de combate as infrações econômicas complexas e no contexto da recente reforma tributária (EC 132/23 e LC 214/25), a Receita Federal editou a IN 2.278, de 28/8/25, publicada no Diário Oficial da União. O ato estabelece medidas para o enfrentamento dos crimes contra a ordem tributária e, em especial, da lavagem de dinheiro e das fraudes relacionadas ao crime organizado, estando o objetivo legítimo e com respaldo constitucional, pois a criminalidade econômica sofisticada exige instrumentos modernos de fiscalização e comunicação de indícios de ilícitos. A Receita Federal, nesse sentido, atua como elo essencial entre a esfera administrativa tributária e os órgãos de persecução penal.

Apesar da finalidade legítima e constitucional, a análise jurídico-constitucional, tributária e penal revela pontos que merecem atenção crítica. A CF/88, em seu art. 5º, II, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e o art. 150, I, reforça o princípio da legalidade tributária, já o CTN em seu art. 97, dispõe que somente a lei pode instituir tributos e definir obrigações principais e acessórias. Nesse contexto, a equiparação, por ato infralegal, das instituições de pagamento às instituições financeiras para fins de apresentação da e-Financeira, embora compreensível em termos de política pública, pode ser vista como extrapolação do poder regulamentar. Trata-se de inovação normativa que não apenas detalha, mas amplia o rol de obrigados, o que gera questionamentos quanto à sua validade, lembrando que a legalidade é cláusula pétrea em matéria fiscal: qualquer obrigação acessória que imponha deveres ao contribuinte deve encontrar fundamento em lei formal, não em regulamentos administrativos.

Além da discussão sobre legalidade, é preciso lembrar que outro ponto igualmente sensível é o sigilo financeiro, garantido nos incisos X e XII do art. 5º da CF. É verdade que o STF, no RE 601.314/SP1 e na ADIn 2.390/DF2, já consolidou o entendimento de que o compartilhamento de dados financeiros com a Receita Federal dispensa autorização judicial, desde que amparado por lei. Ocorre que a ampliação da obrigação por instrução normativa suscita dúvidas sobre a proporcionalidade e o respeito ao devido processo legal (art. 5º, LIV) e ao contraditório (art. 5º, LV).

Essas tensões tornam-se ainda mais evidentes quando se ingressa no campo penal, especialmente na prevenção à lavagem de dinheiro. O parágrafo único do art. 1º da Instrução Normativa reafirma que indícios de crimes devem ser comunicados às autoridades competentes, em consonância com os arts. 10 e 11 da lei 9.613/19983. Essa previsão é positiva, pois fortalece a integração entre a fiscalização tributária e a repressão penal, entretanto, sua eficácia depende do equilíbrio: normas excessivamente amplas podem gerar insegurança jurídica, desestimular a cooperação dos agentes econômicos e, consequentemente, enfraquecer a efetividade do controle.

Contudo, é fundamental evitar que descumprimentos meramente formais de obrigações acessórias sejam automaticamente interpretados como indícios de dolo criminoso. Esse movimento representaria uma banalização do Direito Penal, em descompasso com os princípios da intervenção mínima e da presunção de inocência (art. 5º, LVII). Neste ponto, o Direito Penal deve permanecer como ultima ratio: sua expansão para punir falhas administrativas compromete a legitimidade da tutela criminal.

Como lembra Juarez Cirino dos Santos4: “Na verdade, o bem jurídico é critério de criminalização porque constitui objeto de proteção penal – afinal, existe um núcleo duro de bens jurídicos individuais, como a vida, o corpo, a liberdade e a sexualidade humanas, que configuram a base de um Direito Penal mínimo e dependem de proteção penal, ainda uma resposta legítima para certos problemas sociais – e poderia ser aflitivo imaginar o que aconteceria com a vida e a sexualidade humanas se não constituíssem objeto de proteção penal”, estando na mesma linha, Claus Roxin5 que já advertia: “A questão sobre a qualidade que deve ter um comportamento para que seja objeto de punição estatal será sempre um problema central não somente para o legislador, mas também para a ciência do Direito Penal”, e segue em outra passagem alertando que: “As leis penais simbólicas não buscam a proteção de bens jurídicos. Elas perseguem fins que estão fora do Direito Penal, como o apaziguamento do eleitor ou uma apresentação favorecedora do Estado”.

Esse desafio conecta-se também ao elemento subjetivo da lavagem de dinheiro, Capez e Puglisi6 são categóricos ao afirmar: “O crime de lavagem de dinheiro exige dolo direto. É inadmissível interpretação extensiva para alcançar o dolo eventual, sob pena de violação ao princípio da legalidade e da criação de responsabilidade penal objetiva”, em complemento a jurisprudência do STJ7  reforça que a teoria da cegueira deliberada só pode ser aplicada quando houver intenção consciente do agente de não investigar a origem ilícita, e não por mera negligência.

A edição dessa IN insere-se na trajetória de ampliação da e-Financeira, criada pela IN RFB 1.571/15, e também dialoga com recomendações internacionais do GAFI - Grupo de Ação Financeira Internacional, que impõem aos Estados a obrigação de adotar mecanismos mais rígidos de prevenção à lavagem de dinheiro. Nesse sentido, a medida alinha o Brasil às práticas globais de controle fiscal-financeiro, mas deve sempre observar a moldura constitucional.

No plano nacional, esse movimento dialoga diretamente com a reforma tributária representada pela EC 132/23 e LC 214/25, que fortalece os mecanismos de centralização e fiscalização. Assim, pode ser lida como um passo preparatório da Receita Federal para atuar de forma integrada no novo modelo de tributação sobre o consumo, ampliando sua capacidade de monitoramento das operações financeiras.

Ainda assim, sob a ótica da política criminal, persistem riscos de expansão desmedida do Direito Penal. A aproximação entre ilícito tributário e ilícito penal não pode resultar na criminalização de meras falhas formais, e caso isso ocorra, há o perigo de enfraquecimento do princípio da intervenção mínima e de uma expansão desmedida do poder punitivo estatal.

É nesse ponto que a contabilidade e o compliance assumem papel estratégico, pois a IN 2.278/25 reforça sua função como mecanismo de prevenção e defesa ao exigir que as empresas mantenham registros fidedignos não apenas para cumprir a obrigação acessória, mas também como prova em eventual persecução penal. Boas práticas de governança e controles internos sólidos atuam como barreiras contra ilícitos e instrumentos de proteção jurídica, de modo que empresas com controles consistentes ficam mais protegidas contra presunções de fraude, enquanto as que não se adaptarem enfrentarão riscos que vão além de simples multas administrativas.

Do ponto de vista prático, a norma impacta tanto grandes instituições quanto fintechs8 e startups9 de menor porte, que terão de enfrentar custos elevados de adaptação tecnológica e contábil. Sem uma estrutura robusta, essas empresas podem ser obrigadas a investir pesadamente em sistemas de reporte e auditoria, o que compromete sua competitividade frente a grandes bancos. Embora a transparência seja necessária, há o risco de impor um ônus desproporcional a esses agentes, reduzindo a inovação no setor e, em última instância, estimulando a informalidade - resultado contrário ao pretendido.

Assim, o caminho mais adequado para conferir legitimidade plena à medida seria a edição de lei formal que estenda expressamente às instituições de pagamento as obrigações da e-Financeira. Com isso, reforçar-se-ia a eficiência fiscalizatória sem abrir margem a questionamentos constitucionais, garantindo equilíbrio entre o combate à criminalidade econômica e a preservação da segurança jurídica.

Portanto, a IN RFB 2.278/25 deve ser compreendida como um ato que busca finalidade legítima e necessária, mas que levanta dúvidas jurídicas relevantes. O combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro é um dever do Estado e uma exigência da sociedade, mas a sua efetividade depende de que seja realizado dentro dos limites constitucionais e legais, não podendo a legalidade (art. 5º, II, e art. 150, I, da CF), a proporcionalidade e a segurança jurídica serem relativizadas em nome da eficiência fiscalizatória. Em última análise, a autoridade do Estado Democrático de Direito não se mede pela extensão do seu poder de punir, mas pela fidelidade com que subordina esse poder às garantias fundamentais.

________________

1 Tema 225. Relator Ministro Edson Fachin. DJe 16.9.2016

2 Julgadas conjuntamente, as ADIs 2386, 2397 e 2859.

3 Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências

4 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 6. ed. Curitiba: ICPC, 2014, p. 5/6

5 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 11 e 24

6 CAPEZ, Fernando; PUGLISI, Rogério. Lavagem de dinheiro, dolo e a teoria da cegueira deliberada. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 31, n. 180, p. 345-370, 2023.

7 AgRg no REsp nº 1.793.377/PR, 5ª. Turma do STJ, Relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Julgado em 15.3.2022, DJe de 31.3.2022.

8 Empresas de base tecnológica voltadas ao setor financeiro, oferecendo soluções digitais como meios de pagamento, crédito, investimentos e carteiras virtuais.

9 Organizações inovadoras em fase inicial, geralmente com modelos de negócio escaláveis e crescimento acelerado, podendo atuar em diferentes setores, inclusive no mercado financeiro.

Juarez Arnaldo Fernandes
Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro. Contador. Perito Contábil Judicial. Adm. Judicial. Parecerista.

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