O conceito de “folha de salários” para fins de incidência das contribuições previdenciárias e de terceiros, tradicionalmente, tem sido objeto de recorrentes debates doutrinários e jurisprudenciais, considerando-se o regramento dado pelos arts. 195, I, “a” e 201, §11, da Constituição Federal.
Os dispositivos constitucionais trazem o desenho da competência para a União instituir contribuições sobre a remuneração e a sua correta interpretação permite a conclusão de que a competência constitucional se refere à remuneração habitual e contraprestativa do trabalho.
A atual redação do art. 195, I, “a”, da Constituição Federal, é expressa no sentido de que a competência da União para instituir contribuição, devida pelo empregador se limita à “folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício.”
Ou seja, a materialidade de incidência se refere à “folha de salários”, conceito do Direito do Trabalho e positivado nos arts. 457 e 458 da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, e aos “demais rendimentos do trabalho”, que ainda não tem uma interpretação consolidada na jurisprudência1.
Já a vinculação ao conceito de habitualidade decorre diretamente do disposto no §11, do art. 201, da Constituição, de que “os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.”
O STF, instado a se manifestar sobre o conceito de “folha de salários”, no julgamento do Tema 20 da repercussão geral, decidiu que a contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, sejam eles anteriores ou posteriores à EC 20/1998, consoante dispõe o §11, do art. 201, da Constituição Federal, com o consequente reconhecimento da constitucionalidade do art. 22, I, da lei 8.212/1991.
Contudo, além do STF não ter trazido critérios para definição do que é ou não habitual, preferindo a análise casuística, não foi abordada a definição de “demais rendimentos do trabalho.”
Um limite reconhecido pela jurisprudência é de que a base material de incidência “folha de salários” e “demais rendimentos do trabalho” estabelece um comando negativo ao legislador para que este não institua contribuição sobre verbas indenizatórias.2 (PAULSEN, 2019, p.139)
O que implica incidência das contribuições previdenciárias sobre “todas as verbas pagas ao empregado (pelo empregador) a título de contraprestação decorrente da relação empregatícia (“contraprestação pelo trabalho”)”3
Por conseguinte, as verbas que não decorrem da remuneração do empregado, quer não sejam habituais ou tenham natureza indenizatória (aquelas pagas para ressarcir/ compensar o empregado) não estão abrangidas no conceito de remuneração, sendo inconstitucional qualquer tentativa de fazer incidir sobre estas as contribuições previdenciárias.
O STJ, por sua vez, julgou em recurso repetitivo a mesma controvérsia, tendo feito a análise casuística se determinadas verbas estavam ou não inclusas na incidência das contribuições previdenciárias, considerando o disposto no art. 22, I da lei 8.212/1991.
No julgamento do chamado caso Hidrojet, REsp 1.230.9574, o STJ definiu que não incide contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias, o aviso prévio indenizado e os auxílios-doença e acidente, por não serem consideradas verbas remuneratórias e, portanto, não se enquadrarem no conceito de salário-de-contribuição. Já o salário-maternidade, na ótica da Corte, foi definido como verba tributável.
Posteriormente, o STF consolidou entendimento contrário ao do STJ no que se refere ao terço constitucional de férias (Tema RG 985)5 e salário-maternidade (Tema RG 72)6.
Outras verbas ainda não tem o tratamento previdenciário consolidado, com a avaliação da sua tributação ou não estando em discussão nos Tribunais. É o caso das folgas não gozadas.
A discussão sobre essa verba ainda não tem entendimento vinculante (julgamento na sistemática dos recursos repetitivos), mas já é possível se extrair um posicionamento dos julgamentos do STJ a respeito. Existem diversas decisões da Corte Superior no sentido de que contribuições previdenciárias não incidem sobre folgas não gozadas convertidas em pecúnia em razão do caráter indenizatório dessa verba (AgInt no REsp 1.867.829/RS, relator ministro Francisco Falcão, 2ª turma, julgado em 16/11/2021, DJe de 18/11/2021; REsp 1.660.784/RS, relator ministro Herman Benjamin, 2ª turma, julgado em 18/5/2017, DJe 20/6/2017). Dessa forma, a Corte Superior compreende que os pagamentos referentes às folgas não gozadas não possuem caráter remuneratório, mas sim visam indenizar o empregado pelo descanso não usufruído.
A visão de que há entendimento pacificado, nos termos do art. 926 do CPC, é reforçada pelo fato de que tem sido decidido de maneira monocrática os recursos da matéria, com a confirmação do entendimento pela não tributação previdenciária. Cite-se os julgados do REsp 2055003 (Relator(a) ministro Humberto Martins, Data da Decisão, 3/4/2023) e REsp 1.956.866 (Relator(a) ministro Gurgel de Faria, Decisão monocrática, Data da Decisão 22/11/2022). Destaque-se:
PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. QUOTA PATRONAL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE DELIMITAÇÃO PRECISA DO DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL VIOLADO. SÚMULA 284 STF. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. CONTROVÉRSIA QUE NÃO FOI OBJETO DE MANIFESTAÇÃO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REQUISITO DE PREQUESTIONAMENTO NÃO CUMPRIDO. SÚMULA N. 211 DO STJ. NECESSIDADE DE REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULA N. 7 DO STJ. AGRAVO INTERNO. DECISÃO MANTIDA. [...] IV - A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento no mesmo sentido do acórdão recorrido, pela não incidência da contribuição previdenciária sobre o abono assiduidade, folgas não gozadas convertidas em pecúnia e valores pagos a título de auxílio-educação e creche. Nesse sentido: AgInt no REsp n. 1.602.619/SE, relator ministro Francisco Falcão, 2ª turma, julgado em 19/3/2019, DJe 26/3/2019; REsp 1.660.784/RS, relator ministro Herman Benjamin, 2ª turma, julgado em 18/5/2017, DJe 20/6/2017. [...] VII - Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.867.829/RS, relator ministro Francisco Falcão, 2ª turma, julgado em 16/11/2021, DJe de 18/11/2021)
TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA.ABONO-ASSIDUIDADE. FOLGAS NÃO GOZADAS. NÃO-INCIDÊNCIA.PRAZO DE RECOLHIMENTO. MÊS SEGUINTE AO EFETIVAMENTE TRABALHADO. FATO GERADOR. RELAÇÃO LABORAL. 1. Não incide Contribuição Previdenciária sobre abono-assiduidade, folgas não gozadas e prêmio pecúnia por dispensa incentivada, dada a natureza indenizatória dessas verbas. Precedentes do STJ. 2. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que as Contribuições Previdenciárias incidentes sobre remuneração dos empregados, em razão dos serviços prestados, devem ser recolhidas pelas empresas no mês seguinte ao efetivamente trabalhado, e não no mês subsequente ao pagamento. 3. Recursos Especiais não providos. (REsp 712.185/RS, rel. ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, DJe 8/9/2009).
Contudo, apesar o entendimento do STJ, a matéria continua controvertida, tendo em vista o posicionamento em sentido contrário da Receita Federal.
Com efeito, na solução de consulta COSIT 857, disponibilizada em 06 de junho de 2025, a Receita Federal foi consultada por empresa do ramo petrolífero, acerca da incidência de contribuições sociais previdenciárias e do IRPF - Imposto de Renda de Pessoa Física sobre os valores pagos aos empregados embarcados offshore quando estes não gozam os dias de folga que fazem jus, e que nos termos do Acordo Coletivo de Trabalho firmado junto ao respectivo sindicato, implica no direito ao recebimento de uma indenização correspondente ao dobro do valor devido.
A Consulente consignou que a “folga não gozada” teria natureza indenizatória, haja vista que busca reparar os empregados que não usufruem do seu direito a folga, em razão da de permanecerem trabalhando ou realizando outras atividades (como treinamento) na plataforma. Arguiu, também, a aplicação do entendimento firmado na Nota PGFN/CRJ/ 101/2016 e Nota SEI 24/2018/CRJ/PGACET/PGFN-MF que dispensam a PGFN de recorrer nos casos que versam sobre abono assiduidade.
A Receita Federal, entretanto, entendeu que o referido entendimento da PGFN não se aplicaria ao caso, pela inexistência de natureza indenizatória no pagamento em dobro da folga não gozada. Isso por considerar que se trata de valor adicional pago em múltiplos casos, sendo que nesse há o trabalho efetivo, configurando a natureza remuneratória. É ver o trecho de sua fundamentação:
17. A verba objeto da consulta consiste em remuneração adicional decorrente do trabalho prestado em dias destinados à folga (já remuneradas). Conforme Acordo Coletivo de Trabalho, esta remuneração adicional é devida em múltiplos, no caso de “continuidade operacional por força maior” (haverá trabalho efetivo), ou devida de forma simples, caso o empregado seja “requisitado para fazer curso ou treinamento em dia destinado à sua folga” (haverá tempo à disposição do empregador).
18. Tal situação se enquadra na lei 8.212, de 24 de julho de 1991, cujo art. 21 diz que a contribuição a cargo da empresa é de vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa.
A Receita Federal destacou, ainda, o entendimento do TST, de que o tempo gasto na participação de cursos de aperfeiçoamento profissional de caráter obrigatório constitui tempo à disposição do empregador. Assim, nos termos do art. 4º da CLT, considera-se serviço efeito o período à disposição do empregador. Conclui que considerando que as folgas não gozadas remuneradas se trata de tempo à disposição do empregador, caracterizando como trabalho efetivo.
Entendemos que a Receita Federal, na solução COSIT 85/25, caracterizou indevidamente a verba pagas em razão das folgas não gozadas como remuneratória. É patente, no caso, a existência de uma relação jurídica que gerava determinado direito aos empregados, a ser suportado pelo empregador. Não tendo sido esse direito satisfeito na forma, modo e tempo estabelecidos, os valores que fazem contrapartida a essa situação destinam-se a reparar esse dando sofrido pelos empregados.
O caráter indenizatório dessa verba é nítido, vez que objetiva indenizar o descanso não usufruído.
O posicionamento da Receita desconsidera, ainda, a iterativa e uniforme jurisprudência do STJ, vinculada ao entendimento de que as verbas referentes as folgas não gozadas possuem caráter indenizatório.
Embora esse posicionamento fiscal não seja surpresa, espera-se que a matéria se torne no futuro incontroversa através de aprovação de tese repetitiva no STJ ou advento de parecer de dispensa em não recorrer da PGFN.
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1 O STF reconheceu a repercussão geral no Tema 1415, referente à discussão da incidência de contribuição previdenciária patronal sobre valores de vale-transporte e auxílio-alimentação descontados da folha salarial do empregado. Nesse julgamento, a Corte irá fazer a avaliação do enquadramento ou não dessas rubricas no conceito de “demais rendimentos do trabalho.”
2 PAULSEN, Leandro; VELLOSO, Andrei Pitten. Contribuições no sistema tributário brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pg 139.
3 BATISTA JUNIR, Onofre; SILVA, Paulo Coimbra. Contribuição previdenciária sobre descontos na folha de salário: uma interpretação à luz da “eficácia irradiante” dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021, pg 35.
4 REsp n. 1.230.957/RS, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 26/2/2014, DJe de 18/3/2014
5 RE 1072485, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 31/8/2020.
6 RE 576967, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 5/8/2020.
7 https://normasinternet2.receita.fazenda.gov.br/#/consulta/externa/144581