A família, no ordenamento jurídico brasileiro, é a base da sociedade. A CF/88, norma de hierarquia superior, tutela todas as formas de entidades familiares baseadas no afeto. Porém, a própria Carta Magna, apesar de proteger essa imprescindível instituição, dá direito ao divórcio.
Outrossim, ressalta-se que nas ações de divórcio, em que não haja filhos ou partilha de bens, o fim do matrimônio passa pelo contraditório no sentido tradicional, ou seja: pedido, citação, contestação e decisão. No entanto, sendo o divórcio um direito potestativo, encaixando-se nos requisitos da tutela de evidência, nos termos do CPC, por qual motivo ele não pode ser concedido liminarmente por meio do julgamento parcial antecipado do mérito?
A tutela da família e o divórcio e a dissolução da sociedade conjugal enquanto Direito Potestativo
Urge destacar, em primeiro plano, que a família é tutelada pela CF em seu art. 226, caput:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
Considerada como base da sociedade, visto que é o primeiro contato a sociedade e com o afeto, sua tutela pelo Estado é imprescindível.
Entretanto, menciona-se que em alguns casos, perdida a afetividade entre os cônjuges, pode o matrimônio ser dissolvido. É o que diz § 6º, do art. 226, do mesmo diploma legal (redação dada pela EC 66/10):
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio (Grifo meu).
Anteriormente à EC 66/10, o Estado, regido por uma sociedade mais tradicional e conservadora, buscava dificultar o divórcio. Devia ele passar primeiro pela separação judicial, envolvendo a separação de corpos por dois anos, para, depois, ingressar com a ação de divórcio.
Todavia, registre-se que, segundo a Teoria Tridimensional do Direito de Reale (adotada pelo vigente CC), os valores de uma sociedade se alteram de acordo com os fatos, o que ocasiona a mudança e a forma de interpretar a norma. Sob essa ótica, a sociedade contemporânea passou por alterações significativas em relação aos costumes. Desse modo, o legislador decidiu explicitar que o divórcio é um ato unilateral (um direito potestativo), que pode ser requerido por qualquer cônjuge.
Entende-se por direito potestativo um direito exigível unilateralmente por uma das partes, sem que a outra, no entanto, possa exigir uma contraprestação, devendo a parte contrária se sujeitar ao direito exercido pela que possui o referido direito.
Portanto, é possível concluir neste tópico que o divórcio é um direito potestativo, ou seja, um direito unilateral imposto por uma das partes sem que a outra possa contestar e devendo se sujeitar.
Divórcio e a tutela de evidência: O julgamento parcial antecipado do mérito
Conforme a doutrina, a tutela de evidência é uma técnica processual para uma situação evidente, concedida em cognição sumária, que necessita o autor demonstrar a probabilidade do direito, não necessitando a comprovação do perigo de dano ou do resultado útil do processo (DIDIER, 2025, p. 805-806).
Sob esse viés, o art. 311, II, e parágrafo único, do CPC, disciplina que o pedido de tutela provisória de evidência será concedida quando as alegações de fato puderem ser comprovadas exclusivamente documentalmente e houver tese firmada em IRDR ou SV:
Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando:
II - as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante;
Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente (Grifos do autor).
Ademais, adentrando no seio do Direito de Família, a certidão de registro do casamento é prova inconteste do matrimônio, porquanto ela possui fé pública, conforme, o CC/02, em seu art. 1.543:
Art. 1.543. O casamento celebrado no Brasil prova-se pela certidão do registro (Grifo meu).
Também, vale ressaltar que há um precedente do STJ acerca do tema, qual seja:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DIVÓRCIO CUMULADA COM GUARDA, ALIMENTOS E PARTILHA DE BENS. INCLUSÃO DOS FILHOS NO POLO ATIVO DA AÇÃO. DESNECESSIDADE. SÚMULA 283/STF. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. INSTITUTO DE DIREITO SUCESSÓRIO. APLICAÇÃO POR ANALOGIA AO DIVÓRCIO. IMPOSSIBILIDADE. DIVÓRCIO LIMINAR. DIREITO POTESTATIVO. DESNECESSIDADE DE CONTRADITÓRIO. TUTELA DE EVIDÊNCIA. APLICAÇÃO DA TÉCNICA PROCESSUAL MAIS ADEQUADA. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO PARCIAL DE MÉRITO EM CARÁTER LIMINAR.
1. Ação de divórcio cumulada com guarda, alimentos e partilha de bens da qual foi extraído o recurso especial, interposto em 25/03/2024 e concluso ao gabinete em 17/12/2024.
2. O propósito recursal consiste em decidir se é possível a decretação de divórcio em julgamento antecipado de mérito em caráter liminar.
3. O direito real de habitação é um instituto específico do direito sucessório, que tem por finalidade preservar o direito de moradia ao cônjuge sobrevivente, não havendo a possibilidade de sua aplicação, por analogia, ao direito de família, mais especificamente ao momento da dissolução do vínculo conjugal pelo divórcio.
Precedentes
5. Considerando-se que: (I) após a Emenda Constitucional 66/2010 o divórcio é compreendido como direito potestativo; (II) a decretação do divórcio independe de contraditório, pois se trata de direito do cônjuge que o pleiteia, bastando que o outro sujeite-se a tanto;
(III) basta a apresentação de certidão de casamento atualizada e a manifestação de vontade da parte para que se comprove o vínculo conjugal e a vontade de desfazê-lo; e (IV) a decisão que decreta o divórcio é definitiva, não podendo ser alterada em sentença;
verifica-se possível a decretação do divórcio liminar, mediante o emprego da técnica do julgamento parcial antecipado de mérito, nos termos dos arts. 355 e 356 do Código de Processo Civil.
6. No recurso sob julgamento, viável a decretação do divórcio em caráter liminar.
7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido para decretar o divórcio das partes, devendo o processo prosseguir quanto aos seus consectários, mediante instrução probatória a ser realizada a critério do julgador de origem.
(REsp n. 2.189.143/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/3/2025, DJEN de 21/3/2025.) - (Grifos do autor).
Portanto, o divórcio pode ser concedido liminarmente, visto que: a) é um direito potestativo; b) a prova da certidão de casamento é inconteste por ser detentora de fé pública; c) pode ser concedido por tutela de evidência, por ser o matrimônio fato evidente e haver precedente sob essa interpretação da norma, por intermédio da técnica mais adequada, qual seja: o julgamento parcial antecipado do mérito, pois a decisão que põe fim ao matrimônio possui cunho extintivo, sendo tal técnica para julgar a mais adequada.
Conclusão
Ante o exposto, conclui-se que:
- O divórcio é um direito potestativo, logo unilateral, devendo as partes se sujeitarem ao direito exercido pela que pediu o fim do matrimônio
- A certidão de registro (ou certidão de casamento) faz prova inequívoca da existência do matrimônio por possuir fé pública, e, portanto, amolda-se aos requisitos da tutela de evidência, necessitando unicamente da prova documental sem a comprovação do perigo de dano e do resultado útil do processo, além de possui precedente nesse sentido;
- Por isso, o divórcio pode ser decretado liminarmente via julgamento parcial antecipado do mérito, visto que a sentença que põe fim ao matrimônio é extintiva de uma situação jurídica.
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BRASIL. LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002 (Código Civil). Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 09 de setembro de 2025.
BRASIL. LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015 (Código de Processo Civil). Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 09 de setembro de 2025.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 09 de setembro de 2025.
DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil Volume 2. 20ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2025.