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STF e a discussão sobre a justiça gratuita na ADC 80: Nova oportunidade de recalibrar a litigiosidade trabalhista

A ADC 80 oferece ao STF a chance de redefinir requisitos da justiça gratuita, equilibrando acesso à Justiça e controle da litigância predatória.

26/9/2025

A reforma trabalhista (lei 13.467/17) buscou reduzir o número de processos na Justiça do Trabalho ao estabelecer o pagamento de custas e honorários de sucumbência pela parte que perder a ação, mesmo que tenha direito à justiça gratuita, além de prever a responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais.

Como esperado, com o início da vigência da reforma trabalhista no final de 2017, houve queda significativa no número de ações trabalhistas. De acordo com os dados estatísticos disponibilizados pelo TST, em 2017, a Justiça do Trabalho recebeu 3,9 milhões reclamatórias trabalhistas, enquanto em 2018, o número caiu para 3,2 milhões, quase 19% a menos. Nos anos subsequentes, os números seguiram em queda. Em 2021, por exemplo, o número de novas reclamatórias trabalhistas chegou a 2,8 milhões.

O cenário mudou em agosto de 2022, quando transitou em julgado decisão proferida nos autos da ADI 5.766, na qual o STF declarou a inconstitucionalidade de parte do que havia sido introduzido pela reforma trabalhista, estabelecendo que, uma vez concedido o benefício da justiça gratuita, os reclamantes não precisariam mais arcar com os honorários sucumbenciais, advocatícios ou periciais, tampouco com as custas processuais, se os pedidos reclamados forem indeferidos pela Justiça do Trabalho.

O efeito no número de processos foi imediato: no mesmo ano da decisão da ADI, os números de reclamações trabalhistas subiram para 3,1 milhões. Em 2023, o número foi para 3,5 milhões, e em 2024, alcançou o recorde histórico de 4 milhões, quase 39% a mais do que os números de 2021, algo nunca visto anteriormente, mesmo no período anterior à reforma.

Nova oportunidade na ADC 80

O STF terá uma nova oportunidade de analisar a constitucionalidade do que foi introduzido pela reforma trabalhista na ADC 80.

A ADC 80 foi ajuizada pela CONSIF - Confederação Nacional do Sistema Financeiro requerendo que o benefício da justiça gratuita na Justiça do Trabalho seja concedido somente quando for efetivamente comprovada a insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo.

Pela reforma trabalhista, a justiça gratuita pode ser concedida apenas àqueles que recebem salário mensal igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social (valor que, em 2025, totaliza R$ 3.262,96), ou que comprovem a insuficiência de recursos para pagamento das despesas processuais, não bastando a mera declaração de hipossuficiência.

Historicamente, na Justiça do Trabalho, a simples declaração de hipossuficiência era considerada suficiente para conceder a justiça gratuita, o que voltou a ser realidade depois do julgamento da ADI 5.766. Agora, por meio da ADC 80, o STF vai estabelecer o grau de comprovação necessário para que seja declarada a hipossuficiência da parte.

Na primeira sessão de julgamento, que ocorreu em 27 de junho de 2025, o ministro Edson Fachin, que é o relator do caso, apresentou voto no sentido de que as alterações trazidas pela reforma trabalhista seriam constitucionais. Contudo, em seu voto, a declaração de hipossuficiência seria prova suficiente de comprovação de insuficiência de recursos, por possuir presunção relativa de veracidade. O ministro Gilmar Mendes pediu vista e o julgamento foi suspenso, devendo ser retomado ainda esse ano.

Possíveis rumos no julgamento da ADC 80

Nesse sentido, verifica-se dois cenários possíveis decorrentes da ADC 80: mantido o julgamento na linha do voto do ministro Fachin, não se espera mudanças significativas no âmbito da Justiça do Trabalho, tendo em vista que o TST, ao julgar o Tema 21 da Tabela de Incidentes de recursos repetitivos, já firmou precedente vinculante no sentido de que a declaração de hipossuficiência é elemento de prova suficiente para fins de concessão da justiça gratuita.

Em um segundo cenário, acolhida a pretensão inicial da ADC 80 no sentido de que a declaração de hipossuficiência não seria suficiente para fins de comprovação de situação de miserabilidade, espera-se uma nova redução na litigiosidade, tendo em vista que o benefício deixaria de ser concedido quase que de forma "automática", passando a exigir uma análise real da situação econômica dos reclamantes.

Assim, o Tema 21 do TST logo perderia efeito prático, pouco tempo depois da sua definição, da mesma forma que ocorreria com a súmula 463 do TST. Isso implicaria em uma mudança significativa para a Justiça do Trabalho, diante da divergência entre eventual decisão do STF com a decisão já proferida pelo TST. Caso ocorra, o TST ficaria obrigado a rever o posicionamento sobre o tema.

O problema da litigiosidade excessiva

O cerne da discussão presente na ADC 80 é balancear o direito de ação, previsto constitucionalmente, que não pode ser prejudicado pela ausência de capacidade financeira, com a litigiosidade excessiva, que compromete o funcionamento eficiente da Justiça do Trabalho e prejudica a qualidade das decisões judiciais.

O ajuizamento massivo de reclamações trabalhistas reduz a capacidade da Justiça do Trabalho de processar e julgar as demandas de forma célere e com a devida atenção que cada caso deveria receber. A conta não fecha: em 2024, a Justiça do Trabalho aprovou proposta orçamentária de cerca de R$ 27 bilhões, mas arrecadou apenas R$ 6,6 bilhões, resultando em um déficit de 75,56%. Já em 2025 a proposta orçamentária aprovada foi de R$ 28,5 bilhões, mas, até o momento, apenas R$ 3,9 bilhões foram arrecadados. Além disso, de acordo com o CNJ, as despesas com a Justiça do Trabalho em 2024 superaram R$ 23 milhões, incluindo força de trabalho e informática, valores oriundos dos cofres públicos, e que aumentam de forma diretamente proporcional a cada novo processo ajuizado.

O impacto não é somente financeiro: conforme dados do TST, em 2018, ano seguinte à Reforma, a Justiça do Trabalho julgou precisamente 3.794.364 processos, tendo recebido 3.222.260, ou seja, uma taxa de produtividade de 117,75%. Foram julgados mais processos do que os recebidos naquele ano, incluindo parte do estoque dos anos anteriores. Já em 2024, foram julgados 4.004.604 processos dos 4.025.105 recebidos, demonstrando uma queda na taxa de produtividade para 99,49%, abaixo da paridade. Até o momento, em 2025, foram recebidos 2.543.672 processos, tendo sido julgados 2.328.891, o que representa uma taxa de produtividade de 91,56%, evidenciando uma redução contínua na capacidade da Justiça do Trabalho.

O aumento de processos trabalhistas indica ainda o crescimento da prática conhecida como litigância abusiva ou predatória, que tem ganhado cada vez mais espaço nas discussões atuais. Segundo o CNJ, trata-se do uso excessivo ou desvirtuado do direito de acesso à Justiça, comprometendo a prestação jurisdicional. São exemplos dessa conduta: ações sem fundamento, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas ou fraudulentas, entre outras que, conforme sua gravidade, podem configurar litigância predatória.

Tamanha é a preocupação do Judiciário em coibir o aumento da litigiosidade causada pela litigância predatória que, em outubro de 2024, o CNJ aprovou a Recomendação nº 159, contendo medidas para identificação, tratamento e prevenção da prática. No documento, o órgão lista exemplificativamente condutas processuais potencialmente abusivas, dentre elas, o ajuizamento de ações com “requerimentos de justiça gratuita apresentados sem justificativa, comprovação ou evidências mínimas de necessidade econômica”.

A preocupação a respeito da litigância predatória vem sendo acompanhada pelos Tribunais Trabalhistas. O TRT da 2ª região (SP) aprovou uma resolução regulamentando o procedimento de enfrentamento da litigância predatória ou abusiva. Já o TRT da 6ª região (PE) aprovou a criação de uma ferramenta para acompanhamento e prevenção da prática, contendo um painel que expõe advogados que tenham ajuizado mais de 100 processos na localidade. Na mesma linha, o TRT da 1ª Região (RJ) aprovou nota técnica estabelecendo protocolos de detecção, prevenção e combate à conduta, procedimento acompanhado pelo TRT da 3ª região (MG), pelo TRT da 5ª região (BA), e pelo TRT da 15ª região (Campinas).

Esses elementos indicam que os efeitos da decisão do STF na ADI 5766 estimularam não só o ajuizamento de ações trabalhistas, mas também o aumento da litigância predatória, conduta contra a qual os Tribunais Trabalhistas e o CNJ vêm buscando medidas corretivas. Agora, com a ADC 80, a Suprema Corte tem a oportunidade de recalibrar esses números e mitigar esses efeitos, desonerando o Judiciário Trabalhista.

O que as empresas devem fazer

Seja qual for o caminho a ser tomado pelo STF na ADC 80, é imprescindível que as empresas, conjuntamente com seus advogados, realizem um trabalho detalhado e minucioso para que sejam colhidos elementos probatórios capazes de afastar os benefícios da justiça gratuita, e eventualmente com responsabilização legal, incluindo na esfera criminal, quando aplicável, daqueles que apresentem declaração inverídica de hipossuficiência econômica, especialmente quando evidenciada a prática de litigância predatória.

Isso inclui o monitoramento sistemático de ações ajuizadas por determinados escritórios ou reclamantes, a análise de padrões repetitivos de petições e documentos, bem como a coleta de informações públicas sobre o patrimônio dos autores, como registros de veículos, imóveis, empresas ativas e movimentações em redes sociais que revelem padrão de vida incompatível com a alegada hipossuficiência econômica.

Diante de elementos concretos, é possível requerer judicialmente a revogação da justiça gratuita, a aplicação de penalidades por litigância de má-fé e, quando cabível, encaminhar denúncias à OAB, ao Ministério Público, ao CNJ e às Corregedorias do Tribunais Trabalhistas, visando à responsabilização ética, civil e até criminal dos envolvidos.

Tais medidas são fundamentais para preservar a integridade do processo judicial e coibir práticas abusivas que visam comprometer a credibilidade da Justiça do Trabalho - ainda mais caso o STF não realize a necessária recalibragem de entendimento sobre os requisitos de deferimento da justiça gratuita ao final do julgamento da ADC 80.

José Daniel Gatti Vergna
Sócio do escritório Mattos Filho.

Eduardo Bach Bitencourt
Advogado do escritório Mattos Filho. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestrando em Economia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Gabriel Lucena
Advogado no escritório Mattos Filho.

Luísa Maria Corrêa Cardoso
Advogada do escritório Mattos Filho. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduanda em Direito do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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