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Incapacidade previdenciária e gênero, desafios da mulher do lar

Análise crítica da incapacidade previdenciária sob perspectiva de gênero, destacando desafios da mulher do lar, economia do cuidado e aplicação do protocolo CNJ.

3/10/2025

1. O conceito técnico-jurídico de incapacidade previdenciária

A incapacidade previdenciária, no contexto do Direito brasileiro, transcende a mera condição de doença, configurando-se como a impossibilidade de o segurado exercer sua atividade laboral habitual, ou qualquer outra, em decorrência de alterações morfopsicofisiológicas. Este conceito é a pedra angular para a concessão de benefícios como o auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença) e a aposentadoria por incapacidade permanente (antiga aposentadoria por invalidez), conforme delineado na lei 8.213/91. A distinção entre doença e incapacidade é crucial: enquanto a primeira é um estado patológico, a segunda é a repercussão funcional dessa patologia na capacidade de trabalho do indivíduo.

Há múltiplas definições de incapacidade no ordenamento comparado, dentre as quais se destaca aquela adotada pela Seguridade Social espanhola:

Situação do trabalhador que, após tratamento e alta clínica, apresenta reduções anatômicas ou funcionais graves previsivelmente definitivas que diminuem ou anulam sua capacidade laborativa, com gradações (parcial, total, absoluta, grande invalidez) definidas nos arts. 193 e 194 da Ley General de la Seguridad Social1.

À luz da Organização Mundial da Saúde, conforme a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, a incapacidade para o trabalho configura-se como restrição à participação no trabalho, em especial no emprego remunerado, resultante da interação entre limitações de atividade vinculadas à condição de saúde e fatores ambientais do contexto laboral.

No ordenamento brasileiro, o conceito técnico-normativo é delineado pela Previdência Social no Manual Técnico de Perícia Médica, que define a incapacidade laborativa como a impossibilidade de desempenho das funções específicas da atividade habitual em razão de alterações morfopsicofisiológicas:

Incapacidade laborativa é a impossibilidade de desempenho das funções específicas de uma atividade, função ou ocupação habitualmente exercida pelo segurado, em consequência de alterações morfopsicofisiológicas provocadas por doença ou acidente. Deverá estar implicitamente incluído no conceito de incapacidade, desde que palpável e indiscutível no caso concreto, o risco para si ou para terceiros, ou o agravamento da patologia sob análise, que a permanência em atividade possa acarretar. O conceito de incapacidade deve ser analisado quanto ao grau, à duração e à profissão desempenhada.

A avaliação dessas nuances não se restringe ao aspecto médico, mas considera também fatores sociais, profissionais e pessoais do segurado, como idade, grau de instrução, qualificação profissional e o ambiente em que o trabalho é desenvolvido, conforme entendimento consolidado na jurisprudência pátria.

É imperativo ressaltar que a incapacidade laboral não se confunde com a deficiência. A deficiência, nos termos da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), é uma condição de longo prazo que pode gerar barreiras à participação plena e efetiva na sociedade, mas não necessariamente impede o trabalho. A incapacidade, por sua vez, refere-se diretamente à aptidão para o labor. A compreensão precisa desses conceitos é fundamental para a correta aplicação da legislação previdenciária e para evitar a desproteção social de indivíduos que, embora doentes ou deficientes, não se enquadram nos critérios de incapacidade para o trabalho.

2. A perícia médica judicial: Obrigações e valor probatório no processo previdenciário

A prova pericial no processo está disciplinada na seção X do CPC, que a define, em termos iniciais, como exame, vistoria ou avaliação.

Em seguida, o legislador especifica, de forma minudente, os elementos que devem compor o documento técnico-científico a ser elaborado na perícia designada nos autos:

Art. 473. O laudo pericial deverá conter:

I - a exposição do objeto da perícia;

II - a análise técnica ou científica realizada pelo perito;

III - a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;

IV - resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.

§ 1º No laudo, o perito deve apresentar sua fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, indicando como alcançou suas conclusões.

§ 2º É vedado ao perito ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do objeto da perícia.

§ 3º Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia.

Nos processos que versam sobre benefícios por incapacidade, o objeto de prova é, precisamente, a incapacidade do segurado, razão pela qual o perito a ser nomeado deve ser profissional médico.

A perícia médica judicial assume um papel central e, por vezes, decisivo na comprovação da incapacidade previdenciária. Sua finalidade precípua é subsidiar o juízo com elementos técnicos e científicos acerca da condição de saúde do segurado e suas implicações na capacidade laboral.

O perito judicial, profissional médico nomeado pelo magistrado, tem a obrigação de atuar com imparcialidade e rigor técnico, analisando o histórico clínico do periciado, realizando exame físico e, quando necessário, solicitando exames complementares. A qualidade e a profundidade da análise pericial são cruciais para a justa resolução da lide, uma vez que o laudo pericial constitui a principal prova técnica nos processos que versam sobre benefícios por incapacidade.

O mesmo Manual Técnico de Perícias Médicas do INSS que nos proporciona o conceito de incapacidade determina o que compete ao perito médico no momento da análise pericial:

Compete ao Perito Médico o registro das informações declaradas pelo segurado, referentes à profissão ou ocupação do examinado, devendo ser realizado de forma a caracterizar adequadamente o tipo de atividade por ele exercida. Deve-se caracterizar inicialmente a função profissional do requerente e seu histórico laboral, evitando-se expressões vagas ou genéricas, como ajudante, operário, servente, bancário, comerciário. Salienta-se a importância da caracterização da atividade específica: tecelão, servente de serviços gerais, caixa de banco, vendedor balconista, etc. O Perito necessita investigar cuidadosamente o tipo de atividade, as condições em que é exercida, se em pé, se sentado, por quanto tempo, com qual grau de esforço físico e mental, atenção continuada, a mímica profissional (movimentos e gestos para realizar a atividade, etc.). As condições do ambiente em que o trabalho é exercido podem, também, fornecer subsídios importantes à avaliação. No caso do segurado estar desempregado, essa situação também deverá ser mencionada, bem como seu histórico laboral anterior.

A ausência de clareza ou a superficialidade do laudo podem comprometer sua força probatória e gerar a necessidade de complementação ou realização de nova perícia.

No processo civil previdenciário, o laudo pericial é considerado uma prova técnica de grande relevância, mas não vincula o magistrado. O CPC, em seu art. 479, estabelece o princípio do livre convencimento motivado, permitindo ao juiz formar sua convicção com base em todo o conjunto probatório, e não apenas na conclusão do perito. Isso significa que o juiz pode, e deve, considerar outras provas, como a documental (prontuários médicos, exames, atestados do médico assistente) e a testemunhal, bem como as condições socioeconômicas e culturais do segurado. Essa desvinculação é particularmente relevante em casos onde a realidade social do indivíduo, como a idade avançada, baixa escolaridade ou a impossibilidade de reabilitação profissional, pode influenciar a capacidade de trabalho, mesmo que o laudo pericial, isoladamente, não ateste uma incapacidade total ou permanente. A jurisprudência tem reiteradamente reconhecido a importância de uma análise holística, que vá além do aspecto puramente médico, para a concessão de benefícios por incapacidade.

3. A igualdade material e a necessidade de uma análise diferenciada no Direito Previdenciário

O art. 5º, inciso I, da CF/88, ao proclamar que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações", estabelece um marco fundamental para a igualdade de gênero no Brasil. No entanto, a aplicação literal desse dispositivo, sem considerar as profundas desigualdades sociais e históricas que permeiam a sociedade, pode resultar na perpetuação de injustiças.

Constitucionalistas brasileiros, como Luís Roberto Barroso e Ingo Wolfgang Sarlet, têm enfatizado a distinção entre igualdade formal e igualdade material. Enquanto a primeira se refere à igualdade perante a lei, a segunda exige que o Estado atue de forma a promover a equiparação real, tratando desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades, a fim de alcançar a verdadeira isonomia.

No contexto previdenciário, a mulher, especialmente a mulher do lar e a mulher negra, enfrenta desafios estruturais que impactam diretamente sua vida contributiva e o acesso a benefícios. A mera aplicação da lei de forma idêntica a homens e mulheres, sem considerar suas realidades distintas, ignora as barreiras impostas por uma sociedade patriarcal e racista. A sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado, a informalidade no mercado de trabalho e a menor remuneração são fatores que dificultam a contribuição regular para a Previdência Social, comprometendo o acesso a direitos como aposentadorias e auxílios. Portanto, para que o Direito Previdenciário cumpra sua função social e protetiva, é imperativo que a análise dos casos seja feita sob uma perspectiva de gênero, que reconheça e compense essas desigualdades estruturais.

4. O trabalho da mulher do lar e a economia do cuidado: Uma análise da invisibilidade e seus impactos

A compreensão da incapacidade previdenciária da mulher do lar exige uma imersão na complexidade de suas atividades diárias, que, embora essenciais para a manutenção da família e da sociedade, são frequentemente invisibilizadas e desvalorizadas. O conceito de "mulher do lar" remete a um universo de responsabilidades que transcende a mera esfera doméstica, englobando o cuidado com crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência, além de todas as tarefas relacionadas à gestão do lar, como cozinhar, limpar, organizar e administrar as finanças. Este conjunto de atividades, muitas vezes não remunerado, constitui o cerne da economia do cuidado, um setor fundamental que sustenta a reprodução social e a força de trabalho remunerada, mas que raramente é reconhecido em sua plenitude.

A historiadora italiana Silvia Federici, uma das vozes mais proeminentes na defesa da remuneração do trabalho doméstico, cunhou a frase "Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado". Essa afirmação sintetiza a luta feminista pelo reconhecimento do valor econômico e social do trabalho de cuidado, que, por ser tradicionalmente associado ao afeto e à esfera privada, é desconsiderado nas contas nacionais e na formulação de políticas públicas. A OIT - Organização Internacional do Trabalho estima que 76% do trabalho de cuidado não remunerado é realizado por mulheres, e que essas jornadas valem quase 11 trilhões de dólares por ano, um valor que supera o PIB de muitas nações. Essa invisibilidade não apenas perpetua a desigualdade de gênero, mas também impede que as mulheres que se dedicam integralmente a essas atividades tenham acesso a direitos e proteções sociais, incluindo os previdenciários.

As atividades desempenhadas pela mulher do lar são múltiplas e exigem dedicação integral, sem horários definidos ou pausas regulares. Elas incluem a preparação de alimentos, a limpeza e organização da casa, o cuidado com a higiene e a saúde dos membros da família, o acompanhamento escolar dos filhos, e a assistência a idosos ou pessoas com deficiência. Esse trabalho contínuo e exaustivo, muitas vezes realizado em condições precárias e sem o devido reconhecimento, acarreta uma sobrecarga física e mental significativa. A ausência de tempo para o autocuidado, a falta de lazer e o isolamento social são fatores que contribuem para o adoecimento dessas mulheres, que podem desenvolver problemas de saúde como estresse crônico, ansiedade, depressão, dores musculoesqueléticas e outras condições que as tornam incapazes para o trabalho, mesmo que este não seja formalmente remunerado.

A economia do cuidado, portanto, não é apenas um conceito teórico, mas uma realidade que impacta diretamente a vida e a saúde de milhões de mulheres. A desvalorização desse trabalho e a ausência de políticas públicas que promovam a corresponsabilidade e a socialização do cuidado resultam em um ciclo vicioso de exploração e adoecimento. Muitas mulheres, ao se dedicarem integralmente ao lar, ficam privadas de oportunidades de desenvolvimento profissional e de autonomia financeira, tornando-se dependentes e vulneráveis. Essa situação se agrava quando a incapacidade para o trabalho se instala, pois a falta de contribuições previdenciárias formais dificulta o acesso a benefícios, expondo ainda mais essas mulheres à desproteção social. É nesse contexto que a perspectiva de gênero se torna indispensável para uma análise justa e equitativa da incapacidade previdenciária.

5. A interseccionalidade na análise da incapacidade da mulher do lar

A análise da incapacidade da mulher do lar, sob a ótica da perspectiva de gênero, ganha contornos ainda mais complexos e necessários quando se introduz o conceito de interseccionalidade. Cunhado pela jurista e professora Kimberlé Crenshaw, o termo refere-se ao entrecruzamento de diferentes eixos de opressão, como gênero, raça, classe, sexualidade, nacionalidade e deficiência, que produzem experiências únicas e multifacetadas de discriminação e vulnerabilidade. A interseccionalidade, portanto, nos convida a ir além de uma análise unidimensional da desigualdade, reconhecendo que as mulheres não são um grupo homogêneo e que suas vivências são moldadas pela interação de múltiplos fatores.

No contexto da incapacidade previdenciária, a interseccionalidade revela que a mulher do lar negra, indígena, periférica, com deficiência ou de baixa renda enfrenta desafios ainda mais acentuados do que a mulher branca de classe média. A sobreposição de opressões intensifica a invisibilidade do trabalho de cuidado, a precarização das condições de vida e o adoecimento. Uma mulher negra, por exemplo, além de arcar com a carga do trabalho doméstico e de cuidado, pode sofrer com o racismo estrutural, que se manifesta na dificuldade de acesso a serviços de saúde de qualidade, na maior exposição a condições de trabalho precárias e na desvalorização de sua palavra e de suas queixas de saúde. Como aponta Patricia Hill Collins, a interseccionalidade é uma ferramenta analítica que nos permite compreender como as estruturas de poder se articulam para produzir e reproduzir desigualdades.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, embora fundamental, precisa ser complementado por uma análise interseccional para que se alcance uma justiça verdadeiramente equitativa. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, também do CNJ, reforça essa necessidade, ao orientar magistrados a considerar o impacto do racismo nas decisões judiciais. A aplicação da interseccionalidade na análise da incapacidade da mulher do lar implica em um esforço consciente para identificar e compreender as múltiplas camadas de opressão que moldam sua realidade. Isso significa, por exemplo, questionar se a perícia médica considerou as especificidades da saúde da mulher negra, se a análise socioeconômica levou em conta as barreiras impostas pelo racismo e pela pobreza, e se a decisão judicial reconheceu a complexidade das experiências de vida da segurada. Apenas com uma análise interseccional é possível desvelar as nuances da desigualdade e garantir que a proteção previdenciária alcance todas as mulheres, em sua diversidade e complexidade.

O fenômeno do esgotamento feminino, ou burnout materno/do cuidador, é uma manifestação severa do adoecimento decorrente da sobrecarga do trabalho de cuidado. A pesquisa "Esgotadas" do Lab Think Olga revela que a sobrecarga de trabalho doméstico e a jornada de trabalho excessiva são o segundo fator de maior impacto na saúde emocional das mulheres, superado apenas por preocupações financeiras. Mães solo, em particular, sentem-se mais insatisfeitas com sua carga de responsabilidade, e essa sobrecarga está diretamente ligada a níveis mais altos de insatisfação com a situação financeira e o trabalho remunerado. O adoecimento psíquico, como a depressão e a ansiedade, é um resultado direto dessa equação desfavorável, pressionando de maneira desumana a saúde mental das mulheres.

Essa realidade sublinha a urgência de políticas públicas que reconheçam e valorizem o trabalho de cuidado, promovendo a corresponsabilidade entre gêneros e a socialização dessas tarefas. A ausência de tempo e condições para se dedicar ao trabalho remunerado, em decorrência da sobrecarga de cuidado, precariza o meio de vida das mulheres e suas condições de cuidar de si e de suas famílias. A compreensão desse ciclo vicioso é fundamental para que o sistema previdenciário possa oferecer um amparo efetivo, considerando não apenas a doença em si, mas o contexto social e as múltiplas demandas que levam ao esgotamento e à incapacidade laboral feminina.

6. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ) e a análise da incapacidade da mulher do lar

Diante das complexidades e vieses de gênero que permeiam a análise da incapacidade previdenciária, o CNJ instituiu o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, por meio da resolução CNJ 492/23. Este documento representa um marco fundamental na busca por uma justiça mais equitativa, ao orientar magistrados e magistradas a considerar as desigualdades de gênero nas suas decisões, promovendo uma análise que vá além da mera aplicação formal da lei e que contemple as realidades sociais, econômicas e culturais das partes envolvidas, especialmente das mulheres.

Os objetivos do Protocolo são claros: combater a discriminação e os estereótipos de gênero, promover a igualdade material e garantir que o sistema de justiça seja um instrumento de transformação social. Para tanto, o documento estabelece diretrizes que impõem aos julgadores o dever de identificar e questionar as normas de gênero que podem influenciar a interpretação dos fatos e a aplicação do direito. Na análise da incapacidade da mulher do lar, isso significa ir além do laudo pericial meramente biológico, considerando o impacto da dupla jornada de trabalho (remunerado e não remunerado), a economia do cuidado, a precarização do trabalho feminino e as especificidades do adoecimento das mulheres, que muitas vezes são invisibilizadas ou subestimadas em avaliações tradicionais.

A experiência de outros países da América Latina, como México, Chile, Bolívia, Colômbia e Uruguai, que já editaram protocolos para julgamento com perspectiva de gênero, reforça a necessidade de o Poder Judiciário brasileiro adotar essa abordagem. O Protocolo Mexicano, por exemplo, destaca a importância de identificar situações de poder ou contextos de desigualdade estrutural e de violência, e de ordenar de ofício as provas necessárias para visibilizar essas situações. Tais diretrizes são cruciais para que o juiz não se limite à análise fria da lei, mas compreenda o contexto social e as vulnerabilidades que permeiam a vida das mulheres, especialmente no âmbito previdenciário, onde a comprovação de tempo de serviço e a contribuição podem ser dificultadas pela informalidade e pela dupla jornada.

A aplicação prática do Protocolo no Direito Previdenciário tem gerado decisões emblemáticas que reconhecem a necessidade de um olhar diferenciado para a mulher do lar. Jurisprudências recentes têm demonstrado que, mesmo diante de laudos periciais que não atestam incapacidade, o contexto social, o histórico profissional e as condições de vida da segurada podem ser determinantes para a concessão de benefícios.

Por exemplo, o TRF-2 concedeu aposentadoria por incapacidade a uma segurada, mesmo com laudo pericial desfavorável:

"Nesse sentido, divirjo do entendimento do magistrado sentenciante. Declarada a profissão de cozinheira pela autora, o perito judicial constatou a sua incapacidade total e temporária para exercer o seu labor. No entanto, afirmou que não se encontrava incapacitada para exercer trabalho doméstico (evento 39, LAUDO1 - quesito "i"). O presente caso, outrossim, deve ser enfrentado sob o olhar sensível preconizado pela Resolução nº 492/2023, do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece a diretriz de capacitação de magistrados para julgamentos com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário ( “As julgadoras e os julgadores, ao examinarem laudos atinentes a processos de benefícios por incapacidade, devem rechaçar conclusões que sugiram as atividades domésticas como improdutivas, inclusive quando se posicionam pela ausência de incapacidade supondo, implícita ou explicitamente, que essas tarefas não demandam esforço físico;”. (Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico] / Conselho Nacional de Justiça. — Brasília : Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021).). Ressalto uma das diretrizes trazidas pela referida resolução especificamente para a valoração da prova previdenciária: "1. As julgadoras e os julgadores de processos previdenciários não podem ignorar, quando da valoração da prova, a divisão sexual do trabalho por força da qual cabe, nos núcleos familiares, prioritariamente às mulheres a tarefa dos cuidados e afazeres domésticos;". No caso sob exame, não se pode questionar que a realização de afazeres domésticos demanda tanto ou mais esforços físicos que a atividade de cozinheira, uma vez que, além de cozinhar, a dona de casa também realiza a manutenção geral da casa e roupas da família, sem qualquer limitação de carga horária ou descanso semanal remunerado.” (TRF2 , Cumprimento de Sentença contra Fazenda Pública (JEF), 5000245-85.2023.4.02.5121, Rel. MICHELE MENEZES DA CUNHA , 12º Juizado Especial Federal do Rio de Janeiro , Rel. do Acordao - MICHELE MENEZES DA CUNHA, julgado em 04/04/2024, DJe 05/04/2024 13:37:33)

Outros precedentes relevantes podem ser identificados no Banco de Decisões que aplica o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Todavia, verifica-se a escassez de decisões especificamente voltadas à incapacidade da mulher dedicada ao trabalho doméstico não remunerado, circunstância que reforça a necessidade de atuação técnica e propositiva da advocacia previdenciária para a construção e o aperfeiçoamento desse entendimento jurisprudencial

Essas decisões judicias reforçam a importância de uma análise holística, que valorize o trabalho de cuidado e reconheça as vulnerabilidades específicas da mulher do lar, garantindo-lhe o acesso à proteção previdenciária a que faz jus. O CPC, ao prever a possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício (Art. 370), oferece um instrumento para que o magistrado, ao aplicar a perspectiva de gênero, busque ativamente elementos que comprovem a atividade laboral da mulher, mesmo que informal, ou que justifiquem a ausência de contribuições formais, garantindo assim o acesso a benefícios como aposentadorias e auxílios.

Conclusão

A análise da incapacidade previdenciária sob a perspectiva de gênero, com foco na mulher do lar, revela a urgência de uma abordagem jurídica que transcenda os paradigmas tradicionais. O conceito técnico-jurídico de incapacidade, embora fundamental, precisa ser interpretado à luz das realidades sociais e econômicas que moldam a vida das mulheres, especialmente aquelas que dedicam suas vidas ao trabalho de cuidado não remunerado. A perícia médica judicial, enquanto principal meio de prova, deve evoluir para incorporar uma visão mais ampla, que considere não apenas os aspectos biológicos da doença, mas também os fatores sociais, culturais e de gênero que impactam a capacidade laboral.

A invisibilidade do trabalho de cuidado, a sobrecarga e o consequente adoecimento feminino são questões que exigem uma resposta do sistema de justiça. A aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, aliada a uma interpretação material do princípio da igualdade, é essencial para que o Poder Judiciário brasileiro cumpra seu papel de garantidor da justiça social. Reconhecer as especificidades da mulher do lar, com um olhar interseccional que contemple as particularidades das mulheres negras, é fundamental para construir um sistema previdenciário mais equitativo, que promova a dignidade e a proteção social de todas as cidadãs.

______________

1 Real Decreto Legislativo 8/2015, de 30 de octubre, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley General de la Seguridad Social, BOE núm. 261, de 31 de octubre de 2015, págs. 103291-103519. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2015-11724. Acesso em 28 de set de 2025.

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Catarine Mulinari Nico
Advogada, especialista em Direito Previdenciário e em Direitos Humanos pela PUC/RS. Diretora científica Adjunta do IBDP.

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