Em excelente palestra realizada no dia 28/8/25 no 31º Seminário Internacional de Ciências Penais (IBCCRIM) o criminólogo Salo de Carvalho - no painel dedicado aos “Aspectos contemporâneos da desumanidade das penas” -, lembrou que neste ano de 2025 completa 50 (cinquenta) anos da publicação da clássica obra de Michel Foucault, originalmente em francês em 1975, Surveiller et Punir (Vigiar e Punir). Destaca-se que a obra tem um segundo título: “História da violência das prisões” ou o “Nascimento da Prisão” (Naissance de la prison), ”significando que o livro não é uma “história das prisões”, mas sim uma análise, um estudo deste instrumento e do seu papel social, e do novo poder nascido através do sistema prisional”.1
Vigiar e Punir2 divide-se em quatro partes:
Primeira parte: Suplício
Capítulo I - O corpo dos condenados
Capítulo II - A ostentação dos suplícios
Segunda parte: Punição
Capítulo I - A punição generalizada
Capítulo II - A mitigação das penas
Terceira parte: Disciplina
Capítulo I - Os corpos dóceis
Capítulo II - Os recursos para o bom adestramento
Capítulo III - O panoptismo
Quarta parte: Prisão
Capítulo I - Instituições completas e austeras
Capítulo II - Ilegalidade e delinquência
Capítulo III - O carcerário
A obra histórica e filosófica sobre “a evolução do sistema penal” em que Foucault analisa a transição das punições públicas e torturantes (suplício) para formas mais perversas e sutis de vigilância e controle nas atuais prisões (recursos para o bom adestramento), diferentemente do que muitos imaginam não demonstra que essa mudança implicou em maior humanidade das penas, mas sim uma forma mais eficiente e produtiva de controle através do poder disciplinar.
Importante destacar que para Foucault a prisão, é uma entre outras instituições que incorporavam a nova forma de poder, tais como escola, hospital, fábrica e quartel por exemplos. Para o pensador e filósofo francês,
O poder disciplinar ou as relações de poder levadas a efeito pela disciplina são a verdadeira característica das sociedades modernas, isto é, das sociedades disciplinares. Disciplina aparece, então, como a palavra-chave no diagnóstico que Foucault faz da sociedade moderna. Por outro lado, ele concebe disciplina como uma técnica que substitui as velhas formas de relações de poder.3
Ao se referir aos “recursos para o bom adestramento” Foucault observa que
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura liga-las para multiplica-las e utilizá-las num todo [...] A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma o os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.4
As punições para aqueles que não se “adaptam”, ou melhor, para os que se rebelam contra o sistema são inúmeras. Por outro lado, aqueles que de algum modo “colaboram” e se mostram “dóceis”5 para com a direção e com a administração penitenciária são premiados com “recompensas” que, em verdade, já constituem direitos dos presos.6
O presente artigo não tem aqui, neste valioso espaço, qualquer pretensão de aprofundar no estudo obra de Michel Foucault, que deve ser lida e relida. Objetiva-se neste modesto opúsculo tão somente registrar o cinquentenário da publicação da imortal obra Vigiar e Punir.
Sobre a prisão como “fábrica de delinquentes” e como uma “monstruosa opção”, valiosas são as palavras do saudoso ministro Evandro Lins e Silva:
Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, com uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, com sonham os nossos antepassados? Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que entrou. E o estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime considerado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma ou outra terrível condenação: o desemprego. Pior que tudo, são atirados a uma obrigatória marginalização. Legalmente, dentro dos padrões convencionais não podem viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou, sob o pretexto hipócrita de reinseri-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, só o ex-condenado tem uma solução: incorporar-se ao crime organizado. Não é demais martelar: a cadeia fábrica de delinquentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de condenados.7
Importante salientar, como fez com toda propriedade Salo de Carvalho - no painel ao lado da igualmente brilhante professora Helena Lobo da Costa e do magistrado Luis Carlos Valois -, que no Brasil vários autores se dedicaram e se dedicam ao estudo dos males, das contradições e da desumanidade das penas.
Neste sentido, Roberto Lyra assevera que:
A prisão é causa de doenças e vícios. Não é o lugar que vicia ou enlouquece é a condição, é a vida do preso. Doenças físicas e não somente morais e mentais. Ninguém contesta que a prisão enriqueceu o elenco psiquiátrico com a chamada psicose carcerária, psicose de situação, hoje redistribuída e rebatizada, e que propicia outras doenças e perturbações mentais, além de novos capítulos da patologia sexual. Pretende-se até generalizar o anexo penitenciário junto às prisões. O são fica meio louco. O meio louco fica louco por inteiro. E o louco? É preciso recorrer ao superlativo. O ótimo torna-se péssimo e aprende a dissimular a maldade. A prisão fábrica e escola de reincidência, habitualidade, profissionaliade, produz e reproduz criminosos, causa crimes e contravenções [...] A prisão é o meio criminal por excelência.8
Outro relevante aspecto a ser considerado diz respeito à finalidade contraditória atribuída à pena de prisão. Também lembrado por Salo de Carvalho, 9Augusto Thompson, em sua indispensável obra “A questão penitenciária” refere-se ao fenômeno da “prisionização”, que reside na assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos, precipuamente, pelos internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propenso a melhoras. Adaptar-se à cadeia, destarte, significa, em regra, adquirir as qualificações a atitudes do criminoso habitual. Na prisão, pois, o interno mais desenvolverá a tendência criminosa que trouxe de fora do que anulará ou suavizará...”10
Deste modo, Thompson nota com precisão o antagonismo e as divergências inconciliáveis entre as formas de vida dentro e fora da prisão. Realmente, trata-se e um grande equívoco imaginar que aquele que se submeteu às rígidas e desumanas regras intramuros e que, apesar de tudo, manteve um comportamento “satisfatório” para os padrões do sistema penitenciário estará, por isso, apto ao convívio social.
É insustentável, como bem asseveram Eugenio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista et. al., a pretensão de melhorar mediante um poder que impõe a assunção de papéis conflitivos e que os fixa através de uma instituição deteriorante, na qual durante prolongado tempo toda a respectiva população é treinada reciprocamente em meio ao contínuo reclamo de papéis. Eis uma impossibilidade estrutural não-solucionada pelo leque de ideologias re: ressocialização, reeducação, reinserção, repersonalização, reinvidualização, reincorporação. Estas ideologias encontram-se tão deslegitimadas, frente aos dados da ciência social, que utilizam como argumento em seu favor a necessidade de serem sustentadas apenas para que não se caia num retribucionismo irracional, que legitime a conversão dos cárceres em campos de concentração.11
Diante das mazelas do sistema penitenciário e da desumanidade das penas, necessário rememorar que, em 2015, no julgamento da “ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental” 347, o STF considerou a situação prisional no país um “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do poder público.
Ao reconhecer o “estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional o STF deu um importante passo para o enfrentamento do problema. Contudo, urge que sejam colocadas em práticas medidas capazes, desde logo, de combater as inúmeras violações perpetradas contra à dignidade das pessoas encarceradas e, pelo menos, amenizar o sofrimento daqueles que estão privados da liberdade, sendo necessário, ainda, a adoção de medidas de desencarceramento, como por exemplo, uma revisão na política de drogas que tem levado inúmeras pessoas ao cárcere, notadamente, jovens, negros, pobres e periféricos com baixa escolaridade.
Porém, enquanto o Estado, consciente ou inconscientemente, insistir em uma política criminal que privilegia a pena privativa de liberdade, em detrimento de medidas alternativas e de políticas sociais, a sociedade continuará a conviver com o caos e o colapso do sistema prisional.12
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1 Gaulia, Cristina Tereza. Vigiar e punir - história da violência nas prisões (Michel Foucault). R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 62, p. 37 - 64, abr. - set. 2013.
2 Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 40 . ed. Petrópolos, RJ: Vozes, 2012.
3 Silva, Josué Pereira da. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-6445139-171/97 Acesso em 30/9/20025.
4 Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 40. ed. Petrópolos, RJ: Vozes, 2012, p. 164.
5 Para Foucault, “a disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A desiciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) ”. Vigiar e punir, ob. cit. p. 133.
6 Segundo Karam, “os regulamentos, aos quais o preso deve obedecer sem explicações, nem possibilidades de questionamentos, a permanente vigilância, a aplicação de punições por quaisquer transgressões àqueles regulamentos, o sistema de regalias, em que direitos básicos se transformam em recompensas por comportamentos que a administração define como bons, sufocam as melhores qualidades da pessoa e incentivam a dissimulação, a delação, a falta de iniciativa, a passividade, a dissimulação e a covardia”. (Karam, Maria Lúcia. Dos crimes, penas e fantasia. Niterói: Luam, 1991, p. 182-183.
7 Lins e Silva, Evandro. De Beccaria a Filippo Gramatica. Sistema penal para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p 40.
8 Lyra, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: José Konfino, 1975, p. 184-185.
9 Salo de Carvalho refere-se também a socióloga crítica do sistema penal Julita Lemgruber, bem como a especialista em direito penitenciário e igualmente crítica Arminda Bergamini Miotto.
10 Thompson, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 95-95.
11 Zaffaroni, Eugenio Raúl, Batista, Nilo, Alagia, Alejandro e Slokar, Alejandro. Direito penal brasileiro. Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, v. I, p.126,
12 Yarochewsky, Leonardo Isaac. Segurança pública, criminalidade e sistema penal. São Paulo: Editora Dialética, 2025, p.82-83.