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Ringue e responsabilidade: Popó x Wanderlei Silva à luz do Direito

A prática de esportes de combate é juridicamente tolerada como “exercício regular de um direito” (art. 23, III, CP)?

3/10/2025

1. Introdução

A luta de exibição entre Acelino “Popó” Freitas e Wanderlei Silva extrapolou o script do entretenimento: desclassificação por faltas, invasão de ringue e uma briga pós-luta com nocaute fora do combate. O episódio reaquece um debate clássico: até onde a violência desportiva permanece juridicamente tolerada como exercício regular de um direito (art. 23, III, CP) e quando transborda para a ilicitude penal? A resposta pede método: separar (i) o que ocorreu durante a luta, (ii) o que justificou a desclassificação, e (iii) o que se passou após o término - cada recorte temporal aciona chaves dogmáticas distintas.

O ponto de partida é simples e decisivo: a ordem jurídica autoriza que atletas, dentro de regras técnicas, pratiquem condutas que, fora daquele contexto, seriam típicas (golpes, lesões). Trata-se do chamado risco permitido. Mas a autorização é condicional: submete-se a regulamentos, arbitragem, tempo, local, finalidade lúdico-desportiva e equivalência de forças. Quando a conduta sai desse perímetro - faltas graves, golpe proibido após a interrupção, agressões por terceiros - a cobertura da excludente esmorece ou desaparece.

Este resumo crítico oferece um roteiro didático e compacto com base normativa, aporte doutrinário e leitura aplicada do caso Popó x Wanderlei, sem pretensão de esgotar o tema, mas com densidade suficiente para orientar decisões e políticas internas de eventos de combate.

2. Marco normativo: O que é (e o que não é) exercício regular

O art. 23, III, do CP dispõe literalmente: “Não há crime quando o agente pratica o fato no exercício regular de um direito.” A fórmula sintetiza uma excludente de ilicitude: o fato permanece típico, mas é socialmente aceito porque se insere no âmbito de um direito reconhecido (p. ex., esportes de contato, intervenções médicas consentidas, atividades profissionais regulamentadas).

Na doutrina, há consenso sobre dois pilares: (a) autorização normativa prévia (lei, regulamento, costume institucional) e (b) conformidade estrita com os limites desse direito. Em termos práticos, não basta invocar “esporte”; é preciso demonstrar que o ato se manteve dentro das regras do jogo. Greco observa que a permissão é condicionada e cessa onde começa o abuso; fora da moldura normativa, recompõe-se a ilicitude. Nucci insiste na mesma linha: a autorização “não legitima condutas proibidas pelo ordenamento”. Bitencourt agrega a lente da adequação social: o que é tolerável no ringue pode ser intolerável segundos depois, diante de plateia, mídia e quebra de protocolo. Em linguagem de teoria do delito, trata-se de redução de risco: a sociedade aceita certo nível de perigo, mas não uma escalada incontrolada.

Esse enquadramento exige cautela probatória: imagens, laudos, relatórios do regulador e súmulas do árbitro são cruciais para definir se havia cobertura excludente no momento exato da ação. O tempo - round, gongo, ordem de separação - e o lugar - dentro ou fora do quadrilátero - não são detalhes; são as balizas da permissão.

3. Consentimento do atleta, risco permitido e “regra do jogo”

O consentimento dos atletas é necessário, mas não absoluto. Ele vale para o que as regras permitem: golpes lícitos, potência compatível, rounds e pausas, supervisão médica, árbitro e comitê regulador. Não há consentimento válido para golpes proibidos, agressões após a interrupção ou intervenções de terceiros. Aqui, a doutrina brasileira dialoga com a criminologia europeia (Roxin) e com a categoria dos programas de risco socialmente adequados: o boxe é um programa com fronteiras nítidas; fora delas, o dano deixa de ser “consentido”.

A jurisprudência e a doutrina convergem: a regra do jogo desenha a cerca do exercício regular. Enquanto o ato é finalisticamente esportivo e tecnicamente válido, a excludente opera. Se há quebra da regra com resultado lesivo relevante (por exemplo, cabeçada intencional reiterada), a proteção mingua. É possível ainda a incidência residual de outras excludentes, como legítima defesa (art. 25, CP) em tumultos, desde que comprovadas agressão injusta, atualidade e moderação dos meios - requisitos de difícil demonstração no caos uma briga coletiva.

Em resumo: (i) durante a luta e segundo as regras, há exercício regular; (ii) excesso ou falta grave podem romper a permissão; (iii) após o combate ou fora do perímetro desportivo, a cláusula permissiva não se presume.

4. O caso Popó x Wanderlei Silva: Três atos, três filtros

Ato I - Luta válida. Enquanto a disputa transcorreu conforme o regulamento do boxe, os golpes, ainda que contundentes, estavam sob o guarda-chuva do art. 23, III. É o núcleo duro do risco permitido: dano previsível, controlado, com árbitro, tempo e finalidade desportiva. A licitude aqui é a regra.

Ato II - Desclassificação por faltas. A notícia de faltas reiteradas (inclusive cabeçada) levou à desclassificação. A sanção é desportiva, mas possui reflexo dogmático: sinaliza que a conduta viola a regra do jogo. Penalmente, abre-se a porta para discutir excesso. Houve dolo de lesionar fora do espectro competitivo? Houve resultado lesivo relevante? Há nexo causal entre a falta e eventual dano grave? A resposta depende de prova técnica (vídeos, laudos). Nem toda falta é crime; mas faltas graves reiteradas podem descaracterizar a excludente.

Ato III - Briga pós-luta. Após a interrupção e com invasão de terceiros, instala-se um fato novo. Já não há “luta” sob arbitragem: há tumulto. A excludente do exercício regular não se projeta para esse cenário; cada ato passa a ser avaliado como conduta autônoma (lesão corporal, vias de fato, concurso de pessoas), salvo se cabível legítima defesa estrita (e provada). Suspensões administrativas aplicadas por entidades reguladoras não substituem juízo penal, mas reforçam que, sob a ótica do próprio esporte, houve extra-regra.

Essa leitura em “três atos” organiza a subsunção: protege-se fortemente o combate regular; examina-se com lupa o excesso durante a luta; nega-se, em regra, a cobertura após o gongo final.

5. Terceiros em cena: Cantos, staff e convidados

O exercício regular no esporte é uma permissão funcional: vale para os protagonistas (atletas) e para oficiais (árbitro, equipe médica) no estrito desempenho de suas funções. Terceiros que ingressam no ringue para agredir não estão abrigados pela excludente. Sua responsabilização segue os tipos comuns (lesão, ameaça, dano), com possível concurso de pessoas e circunstâncias agravantes se houver emprego de meios insidiosos ou perigo comum.

Há, por vezes, a alegação de legítima defesa putativa em tumultos (“pensei que seria agredido”). O instituto é excepcional e exige verossimilhança concreta; vídeos, ângulos, distância, intensidade e direção dos golpes são determinantes. Em termos de política disciplinar, faz sentido que federações e promotores tenham protocolos de corredor seguro, barreiras físicas e credenciamento rígido para reduzir o risco de “contágio” da violência.

6. Sanções administrativas x responsabilização penal

Medidas de comissões e federações - advertências, multas, suspensões - cumprem função para regulatória: preservam a integridade do espetáculo e a saúde dos atletas. Contudo, tais sanções não impedem a atuação penal quando houver justa causa. Em muitos casos, as punições desportivas servem como indício de quebra da regra do jogo, mas o crivo penal exige prova autônoma. O ideal institucional é a cooperação: compartilhamento de imagens, relatórios e prontuários (com proteção de dados), para que a verdade material prevaleça sem espetacularização.

Para as partes, há impactos cíveis (indenização por danos) e contratuais (cláusulas de moralidade, seguros, “no crowd fighting”). Contratos bem redigidos não descriminalizam condutas, mas desincentivam comportamentos de risco ao prever multas, cobertura securitária e treinamento de desescalada para equipes.

7. Boas práticas e lições regulatórias

Três lições emergem. Primeira: cronologia é dogmática - o mesmo soco tem valoração distinta antes, durante e depois da luta. Segunda: terceiros não herdam a excludente - a permissão é fechada e territorializada. Terceira: governança importa - barreiras físicas, “cooldown” pós-gongo, rotas separadas de saída, presença ostensiva de oficiais e treinamento de staff reduzem a probabilidade de que o espetáculo migre para o CP.

Em termos de política criminal, o norte é proporcionalidade: prestigiar o esporte de contato e seu papel social, sem tolerar abusos mascarados de “animosidade competitiva”. A aplicação clara do art. 23, III, combinada com o art. 25 (legítima defesa) em hipóteses estritas, dá respostas coerentes e previsíveis.

8. Conclusão

No caso Popó x Wanderlei, o Ato I (luta válida) está, em princípio, protegido pelo exercício regular. O Ato II (faltas com desclassificação) acende alerta para excesso eventualmente penalmente relevante, a depender da prova. O Ato III (briga pós-luta) configura novo fato fora da regra do jogo, em que a excludente não incide, restando apenas excludentes residuais - notadamente, legítima defesa - se e somente se seus requisitos forem demonstrados com rigor.

A mensagem é simples e útil: a excludente do art. 23, III, protege o esporte, não o descontrole. Se o espetáculo termina, a permissão também termina. Dali em diante, valem as mesmas regras para todos.

______________

Normativa e jurisprudência

Brasil. Código Penal, arts. 23 e 25.

TJDFT. Materiais de apoio sobre excludentes de ilicitude (exercício regular de direito; legítima defesa).

Doutrina brasileira

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - Parte Geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 23. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

Doutrina estrangeira (apoio teórico)

ROXIN, Claus. Derecho Penal - Parte General. Madrid: Civitas, 2000 (trad. esp.).

Álvaro Augusto Diniz Queiroz Carvalho
Advogado; professor; escritor; palestrante; mentor.

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