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Entre remendos e memória: Como envelhece a Constituição de 1988

A Constituição de 1988 completa 37 anos entre reformas e desafios. O artigo reflete sobre seu envelhecimento, o esquecimento cívico e a força democrática que ainda sustenta o Brasil.

27/10/2025

A Constituição Federal de 1988 completou no último dia 5/10/2025 trinta e sete anos. Se fosse uma pessoa, já teria rugas, lembranças e cicatrizes, mas também maturidade para reconhecer em si mesma as marcas de um tempo que não passou em vão. Promulgada sob o símbolo da “Constituição Cidadã”, ela representou um gesto de reencontro nacional: um país que, após duas décadas de silêncio autoritário, reaprendia a falar em liberdade.

Décadas depois, o desafio já não é conquistar direitos, mas preservá-los em meio à desconfiança e à fadiga institucional. A pergunta que se impõe neste aniversário é, portanto, menos histórica e mais existencial: a Constituição de 1988 envelheceu bem?

Desde sua promulgação, o texto foi emendado mais de cento e quarenta vezes. O dado é mais simbólico do que técnico: traduz a tensão entre permanência e urgência que caracteriza o constitucionalismo brasileiro. O texto original desejava estabilidade, mas o país quis velocidade. Em cada emenda há o vestígio de uma tentativa de adaptação e, talvez, também de impaciência.

O constitucionalista Paulo Bonavides via na Constituição de 1988 um modelo “dirigente”, capaz de conduzir o país rumo à justiça social. José Afonso da Silva, por sua vez, ressaltava sua “força normativa”, lembrando que o valor de uma Constituição reside na capacidade de inspirar, e não apenas limitar, o exercício do poder. Contudo, entre o ideal dirigente e a prática política, o texto foi se tornando uma colcha de remendos, costurada conforme os ventos de cada legislatura. O problema, no entanto, talvez não esteja nos remendos, mas na pressa com que os costuramos e, sobretudo, no esquecimento de quem deveria ser o costureiro: o próprio povo.

“Todo o poder emana do povo.” Assim começa o art. 1º, talvez o mais esquecido de todos. O povo que um dia lotou as praças clamando por diretas hoje se dispersa em bolhas digitais. O grito cívico que ecoava nas ruas foi substituído por murmúrios virtuais, fragmentados em curtidas, cancelamentos e algoritmos. A Constituição Cidadã previa um cidadão participativo, consciente de seus direitos e deveres. O tempo digital, porém, transformou o sujeito de direitos em influenciador de convicções, e a política em espetáculo.

A democracia representativa, quando reduzida à performance, enfraquece o próprio princípio de soberania popular. Em 1988, acreditávamos que a cidadania se fortaleceria pela educação e pela política; hoje, ela depende também de uma alfabetização digital, emocional e institucional, de reaprender a dialogar, a ouvir e a confiar.

Ainda assim, a Constituição de 1988 sobreviveu a impeachments, crises econômicas, polarizações e ondas autoritárias. Resiste porque é mais que um texto jurídico: é um retrato moral de uma geração que decidiu não mais aceitar o medo como método de governo. Envelhecer bem, para uma Constituição, não é permanecer igual, mas mudar sem trair a própria essência.

A Carta de 1988 talvez já não tenha o vigor da juventude, mas carrega a dignidade de quem atravessou tempos turbulentos sem abdicar de seus princípios fundamentais, a dignidade humana, a liberdade, a igualdade e a busca pela justiça social. Ela é a mais longeva das Constituições democráticas brasileiras, e sobrevive justamente porque foi escrita não apenas com técnica, mas com esperança.

Talvez, portanto, a Constituição de 1988 não tenha envelhecido mal. Nós é que envelhecemos mal com ela, quando esquecemos o poder que temos e remendamos o texto sem cuidar do tecido cívico que o sustenta. Em vez de perguntar se a Constituição ainda serve ao país, talvez devêssemos indagar se o país ainda serve à Constituição. Celebrar seu aniversário é mais que um ato de memória: é um exercício de responsabilidade cívica.

A Constituição é um espelho do Brasil. Se há rachaduras, são nossas. Cuidar dela é, no fundo, cuidar de nós mesmos. E talvez esse seja o verdadeiro sentido de envelhecer bem, não perder a fé naquilo que nos constituiu como Nação.

Rudyard Rios
Juiz de Paz pelo TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Formado em Direito e Filosofia, pós em Ciência Politica, Mestrando em Direito pela UNB com foco em Direito de Familia.

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