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Saneamento e organização: Expressões do dever de cooperação processual

Como o dever de cooperação processual (art. 6º do CPC) deve orientar a aplicação das técnicas de saneamento e organização do processo, especialmente as atribuições previstas no art. 357 do CPC.

9/10/2025

O sistema de Justiça brasileiro lida com um número expressivo de demandas judiciais em contraste com as limitações de estrutura e de tempo disponíveis para julgá-las1. O relatório “Justiça em Números 2025”2, que analisa os dados do ano de 2024, atesta que cada magistrado recebeu, em média, 1.823 novos processos ao longo do ano. A produtividade exigida pelas circunstâncias é vertiginosa, correspondendo a aproximadamente 11 processos baixados por dia útil.

Uma das consequências desse cenário é que o processo de conhecimento tende a ser conduzido de forma automatizada: postulações iniciais das partes, produção de provas, alegações finais e sentença. Com frequência, esse encadeamento ocorre sem a devida pausa para examinar detidamente o que está sendo pedido, por que se pede e o que já foi suscitado até então. O saneamento e a organização acabam reduzidos, não raramente, a um despacho único, que determina a intimação das partes para especificarem as provas que desejam produzir3.

Esse subaproveitamento obstaculiza a prestação jurisdicional. Não apenas porque prejudica o julgamento do mérito, com, por exemplo, a delimitação imprecisa das questões fáticas e jurídicas relevantes, mas também porque é exatamente nesse momento que o dever de cooperação processual previsto no art. 6º do CPC encontra um de seus campos mais férteis. Se todos os sujeitos do processo devem agir de modo colaborativo para viabilizar, em tempo razoável, uma decisão de mérito justa e efetiva, não seriam o saneamento e a organização a oportunidade adequada para que partes e juízo construam em conjunto a base fático-jurídica sobre a qual se firmará a cognição?

Para superar esse déficit estrutural, é preciso enxergar o saneamento e a organização do processo como espaços de construção cooperativa entre os sujeitos processuais. Compreender no que consiste o saneamento e no que consiste a organização é o primeiro passo para isso.

Embora comumente se retrate o saneamento como uma “fase”, a sua melhor compreensão é de que se trata de uma atividade que acompanha a prestação jurisdicional a todo momento, do começo ao fim do processo. Não sem motivo ele está entre os poderes-deveres que o juiz deve exercer enquanto dirige o processo (inciso IX do art. 139 do CPC). A atividade de saneamento também se mostra visível, por exemplo, nas disposições dos arts. 321, 352, 354, 357, I, e 932, parágrafo único, do CPC.

A atividade de organização funciona de modo semelhante. As suas técnicas podem ser aplicadas por todo o iter processual. Mas, sem dúvidas, sua concentração se dá nas hipóteses do art. 357, II a V, do CPC, que estabelecem, entre outras, as incumbências de delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, definir a distribuição do ônus da prova e delimitar as questões de direito relevantes ao julgamento do mérito.

Há uma complementariedade entre saneamento e organização. O saneamento é uma atividade retrospectiva. Preocupa-se em resolver o que já aconteceu e está pendente. A organização é prospectiva: orienta-se para o que está por vir. Ambas compõem, nas palavras de Barbosa Moreira, o “balanço do processo4. O equilíbrio entre essas atividades assegura melhores condições de julgamento da causa, nutrindo relação direta com certas normas fundamentais processuais, como a duração razoável do processo (art. 4º, CPC) e a eficiência (art. 8º, CPC). Trata-se, em outras palavras, da “gestão processual eficiente”, que congrega as artes de organizar, planejar, corrigir e controlar a direção do processo judicial5.

Apesar disso, não raramente a prática do foro reduz ambas as atividades a atos meramente formais. Há decisões que, antes de fixarem as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, intimam as partes para especificarem as provas que desejam produzir. Em certos casos, isso ocorre enquanto há preliminares suscitadas e pendentes de apreciação (por exemplo, de ilegitimidade ad causam). É o que acontece mesmo em hipóteses em que a instrução probatória seria dispensável, seja em razão da ausência de impugnação específica em contestação (art. 341, caput, CPC), seja por consistirem em fatos notórios ou que foram objeto de confissão (art. 374, CPC).

Daí a necessidade de compreender a ordem lógica do art. 357 do CPC, que não segue exatamente a sequência dos seus incisos. Autorizada doutrina já reconhece que, antes de qualquer intimação para especificação das provas pretendidas, é preciso primeiro delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória e, em seguida, deliberar sobre o ônus da prova. Feito isso, aí sim, permitir que as partes especifiquem as provas que desejam produzir, para só então, ao final, definir-se os meios de prova a serem produzidos6. A decisão de organização do processo consistirá, na realidade, em decisões (no plural) de organização.

Não se ignora que o juízo é o destinatário expresso das normas que versam sobre saneamento e organização, e a ele caberá, em princípio, identificar vícios sanáveis e organizar o processo. Porém, nada impede que essas funções também sejam exercidas, dentro das atribuições legais, pelo advogado, em movimento de cooperação. É ele quem pode peticionar apresentando, por exemplo, uma proposta de delimitação das questões de fato e de direito, que poderá ser acatada parcial ou integralmente pelo juízo (art. 357, II e IV, CPC). A cooperação se manifesta de modo ainda mais acentuado na hipótese do §2º do art. 357: as partes, cooperando entre si, podem apresentar, para homologação, a delimitação consensual das questões de fato e de direito. Eis uma solução que retira encargo do juízo de forma lícita e útil, promovendo economia de tempo e de atos.

Raciocínio semelhante se dá quanto ao rol de testemunhas. Embora a literalidade do §4º do art. 357 indique que a apresentação se dará após a decisão que designa a audiência, nada impede que a parte, em gesto cooperativo, apresente-o na mesma petição em que ratifica o pedido de prova testemunhal. É mais uma expressão de cooperação e economia processual.

A cooperação juiz-parte é relevante também no exercício da incumbência do art. 357, IV, do CPC. Quando estiver delimitando as questões de direito relevantes para a decisão do mérito, o juízo poderá identificar as normas que entende como incidentes ao caso, que não necessariamente serão as mesmas suscitadas pelas partes até aquele momento7. Caso assim constate, o ponto deverá ser fixado como questão de direito na decisão de organização do processo, como thema decidendum e/ou thema probandum. Com isso, franquear-se-á o exercício do contraditório acerca da questão fixada, já que as partes estarão dela cientes e, com isso, poderão efetivamente exercer influência sobre a atividade jurisdicional - inclusive, já em momento imediatamente subsequente, solicitando ajustes ou esclarecimentos quanto ao conteúdo da decisão (art. 357, §1º, CPC). Trata-se, igualmente, da concretização do dever de consulta, que se impõe ao juízo também como decorrência do dever de cooperação8.

A questão é pertinente porque em certas ocasiões a sentença ou a decisão parcial de mérito se embasa em fundamento a respeito da qual as partes não tiveram oportunidade de se manifestarem, violando a norma do art. 10 do CPC. Por exemplo, o juízo, deparando-se com um negócio jurídico em que se pactuou cláusula penal, pode compreender que a obrigação foi parcialmente cumprida, ou que o montante previsto naquela cláusula é manifestamente excessivo, e, com base nesse enquadramento, reduzir de ofício o valor da multa - possibilidade já chancelada pelo STJ em interpretação ao art. 413 do CC -, sem que haja discussão sobre (des)cumprimento da referida obrigação ou sobre a excessividade ou não do aludido montante. Pode acontecer, também, de o juízo compreender que o caso se enquadra em tese fixada em julgamento de recursos repetitivos, e com base nela aprecia e julga a demanda, sem que a parte prejudicada tenha a oportunidade de se manifestar pela distinção (distinguishing) em relação ao precedente vinculante. Outra possibilidade é conversão, de ofício, da tutela específica em perdas e danos (art. 499, CPC), por entender o juízo pela impossibilidade de cumprimento da obrigação de fazer, mas sem previamente abrir contraditório sobre a própria impossibilidade e sobre os parâmetros da indenização. 

Logo se percebe que, se não houver uma decisão interlocutória que se preste a organizar o processo e delimitar as questões que estão em exame, assim como exercer as demais incumbências elencadas no art. 357 do CPC, haverá um grave risco de a sentença apoiar-se em fundamentos ou fatos sobre os quais as partes não tiveram oportunidade de se manifestar nem de produzir prova, acarretando nulidade (art. 10, CPC) e, muitas vezes, a necessidade de complementação ou refazimento da instrução. Tal delimitação também previne decisões extra petita, já que o juízo estará vinculado9 ao que foi por ele delimitado anteriormente – vinculatividade que parte da literatura compreende como decorrência do efeito estabilizante previsto no art. 357, §1º, do CPC. Não é mera coincidência que os incisos II e IV do art. 357 mencionem delimitação de “questões de fato” e de “questões de direito” e o art. 489, que trata dos elementos essenciais da sentença, resgatar essas mesmas expressões no seu inciso II (questões de fato e de direito), que alude aos fundamentos da decisão10.

Por fim, ainda que soe óbvio, nunca é demais enfatizar que a autocomposição é a expressão mais elevada da cooperação processual. Se o desenvolvimento da prova revela o enfraquecimento da tese sustentada pela parte, é o momento desta buscar um acordo. O art. 359 do CPC estabelece que, iniciada a audiência de instrução e julgamento, o juiz deverá tentar conciliar as partes. Essa tentativa pode ocorrer não apenas no início do ato, como também durante a sua prática e no seu final, por iniciativa da própria parte. Afinal, a própria prova pode induzir a autocomposição, e, como dispõe o art. 139, V, do CPC, cabe ao juízo promovê-la “a qualquer tempo”, comando observável pelos demais sujeitos processuais, atentos às oportunidades de composição reveladas pelo desenvolvimento da instrução probatória.

_______

1 Marcelo Abelha Rodrigues identifica a falta de tempo disponível como um dos fatores que prejudicam o exercício adequado das atribuições elencadas no art. 357, II a V, do CPC. Em contrapartida, traz uma provocação: “Considerando a realidade judiciaria brasileira de congestionamento de processos do primeiro 40 último degrau judiciário — e sem fazer disso justificativa para qualquer tipo de conduta indolente - a pergunta facilmente respondida por um juiz é a seguinte: você se debruçaria sobre um processo para identificar com precisão as questões de fato que devem ser objeto de prova ou fixaria questões genéricas, se, na pilha da sua mesa ou na tela do seu computador, estivessem acumuladas demandas e mais demandas aguardando sentença. Estudariam duas vezes 0 mesmo processo com intervalo de anos entre a fase de saneamento e a decisória, inclusive sem saber se estarão naquela vara para sentenciá-lo?”. RODRIGUES, Marcelo Abelha. O despacho pós saneador no Brasil e em Portugal. Londrina: Thoth, 2021, p. 116.

2 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/

3 O Título I do Livro I do Código de Processo Civil é dedicado ao procedimento comum. Os seus capítulos são pensados em ordem cronológica ao desenvolvimento da marcha processual: da petição inicial à sentença. A “fase” de saneamento e organização do processo encontra-se localizada no Capítulo X (Do julgamento conforme o estado do processo). A sua localização na topografia do Código não afasta a intepretação de que ambas as atividades (saneamento e organização) são aplicáveis a todo o iter processual, conforme se defende neste texto.

4 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Saneamento do processo e audiência preliminar. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: quarta série. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 111.

5 RODRIGUES, Marcelo Abelha. O despacho pós saneador no Brasil e em Portugal. Londrina: Thoth, 2021, p. 32.

6 GONÇALVES, Tiago Figueiredo. O procedimento comum no processo de conhecimento: da petição inicial à sentença. Londrina: Thoth, 2025, p. 269.

7 Como se sabe, o Direito brasileiro adota, quanto à identificação da causa de pedir, a teoria da substanciação, segundo a qual são os fatos deduzidos pela parte demandante – e não o enquadramento jurídico por ela dado aos fatos que relata – que definem a causa petendi. Tal adoção enseja aplicação ampla do iura novit curia, permitindo que o julgamento se dê com base em qualquer norma jurídica aplicável aos fatos narrados. Por outro lado, há a regra da adstrição, positivada nos arts. 141 e 492 do CPC. Por ela, o juízo deve se ater ao pedido e à causa de pedir deduzida pelo demandante, sob pena de, fazendo diferente, incorrer em julgamento extra petita. A adstrição é rígida quanto ao pedido, mas um pouco mais flexível em relação à causa de pedir – especificamente, a causa petendi próxima, ou seja, a qualificação jurídica dada pela parte aos fatos narrados. Isso porque, como dito, o sistema processual permite que o juízo adote outra norma jurídica aplicável aos fatos relatados, diferente das que são apontadas pelo demandante. Essa é umas das razões pelas quais o CPC de 2015, concretizando a garantia do contraditório (art. 5º, LV, CRFB), passou a prever expressamente, no art. 10, a vedação da decisão-surpresa, inclusive quanto a matérias examináveis de ofício.

8 GONÇALVES, Tiago Figueiredo. O procedimento comum no processo de conhecimento: da petição inicial à sentença. Londrina: Thoth, 2025, p. 267-268.

9 Tal vinculação, por óbvio, não é absoluta. Passada a decisão que delimita as questões de direito relevantes ao julgamento do mérito, o juízo pode acabar identificando, de ofício, alguma questão processual ou questão de mérito não observada pelas partes. Deverá, nesses casos, agir colaborativamente e franquear o contraditório a respeito da questão identificada, em observância ao art. 10 do CPC.

10 RODRIGUES, Marcelo Abelha. O despacho pós saneador no Brasil e em Portugal. Londrina: Thoth, 2021, p. 125-127.

Eduardo Figueiredo Simões
Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e advogado no escritório Figueira, Pimentel, Siqueira & Varejão - FPSV Advogados.

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