Introdução
A CF/88 é a base principiológica de todo o sistema normativo brasileiro. No que tange à Administração Pública, formalmente composta por órgãos instituídos para a realização dos objetivos do governo, destaca-se o art. 5º, inciso II, que estabelece:
"ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Trata-se do princípio da legalidade, que, para o agente público, assume contornos mais restritivos: só pode agir nos limites e comandos expressos da lei. Já o particular, em contraposição, pode fazer tudo o que a norma não proíbe.
O art. 37 da Carta Magna reforça a supremacia da legalidade ao determinar que a Administração Pública, em qualquer dos Poderes e entes federativos, obedeça, além dela, aos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Tais pilares não são meros ornamentos jurídicos, mas fundamentos essenciais de uma gestão republicana.
Nesse contexto, o Estado Democrático de Direito ergue-se sobre um alicerce inquebrantável: toda ordem manifestamente ilegal é nula, destituída de legitimidade e não deve ser cumprida.
O CP, atento a essa realidade, prevê no art. 22 a excludente de culpabilidade relativa à coação irresistível e à obediência hierárquica, deixando claro que apenas ordens não manifestamente ilegais podem excluir a punibilidade. Logo, a execução de um comando flagrantemente ilícito arrasta para a ilegalidade tanto o superior que o prolata quanto o subordinado que o cumpre.
Análise contextual do tema
A história do Direito revela de maneira cristalina que a obediência cega nunca foi escudo para a injustiça. Os julgamentos de Nuremberg, que responsabilizaram militares e burocratas por crimes cometidos sob ordens superiores, ecoam como advertência permanente: o dever de legalidade é inafastável, mesmo diante da hierarquia.
No Brasil, inúmeros episódios administrativos e políticos evidenciam a prática de ordens abusivas - desde a utilização da máquina pública para fins pessoais até determinações de repressão desmedida que afrontam direitos humanos. A Constituição e a lei de improbidade administrativa (lei 8.429/1992, recentemente atualizada pela lei 14.230/21) impõem responsabilidade severa ao agente público que atua com desvio de finalidade, má-fé ou afronta ao interesse público.
A obediência servil, nesses casos, não apenas compromete a dignidade do executor, mas também o expõe a responsabilização civil, administrativa e penal. O art. 116, IV, da lei 8.112/1990 (regime jurídico dos servidores públicos Federais) reforça que é dever do servidor “cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais”.
Nesse cenário, a hermenêutica constitucional e penal converge em um ponto inequívoco: não há dever jurídico de cumprir ordens manifestamente ilegais. Ao contrário, há o dever ético e jurídico de resistir, sob pena de transformar-se em cúmplice da tirania e da corrupção.
Reflexões finais
A grandeza de um servidor público não se mede pela sua obediência cega, mas pela sua coragem em dizer não quando a ordem afronta a Constituição, a dignidade da pessoa humana e os princípios republicanos.
Cumprir ordens absurdas, ditadas pela vaidade ou pela prepotência, é sepultar a própria honra em nome da conveniência. Resistir, por sua vez, é gesto de cidadania, altivez e fidelidade à República.
Em tempos de crises institucionais e de banalização do ilícito, a lição é simples, mas grandiosa: a legalidade é a última trincheira do homem digno contra a tirania do poder.
O servidor público ético não pode ser mero instrumento mecanizado de vontades doentias, tampouco se reduzir a autômato nas mãos de superiores narcisistas, que, em nome da permanência no cargo, se sujeitam à omissão cega e erigem verdadeiros palcos circenses, tatuando no serviço público as marcas abjetas da mediocridade e da corrupção moral.
Ao contrário, o verdadeiro homem da República traz consigo os valores eternos do Vale da Honestidade, onde a honra se sobrepõe às conveniências e a legalidade é mais forte que as pressões da tirania. Reconhece, assim, a lógica da imundície travestida de autoridade e, diante dela, não hesita: prefere a altivez da exoneração ao covarde abrigo nas trincheiras da mediocridade.
A exoneração, quando motivada pela dignidade, não é derrota, mas triunfo. É gesto de resistência, proclamação de independência moral e consagração da ética como valor inegociável. Pois o servidor público que abandona a legalidade por temor de perder o cargo já perdeu muito antes: perdeu a honra, perdeu a essência e perdeu a razão de existir como agente do Estado Democrático de Direito.
Assim, que se erga como bandeira eterna a lição: é melhor deixar o cargo de cabeça erguida do que mantê-lo de joelhos diante da tirania.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre improbidade administrativa.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei de Improbidade Administrativa.
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União.
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Madrid: Civitas, 1997.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2006.