Migalhas de Peso

Quem matou Odete Roitman?

O ensaio discorre sobre a essência da Justiça e o poder-dever constitucional da Polícia Judiciária. Apresenta estudos sobre a tutela da atividade investigativa.

9/10/2025

Introdução

Quem matou Odete Roitman ainda é mistério, em seus últimos capítulos, da telenovela Vale Tudo, mas a indagação atravessa gerações como metáfora da curiosidade humana e da busca incessante pela verdade. A ficção televisiva, ao despertar paixões e teorias, tornou-se um espelho da realidade jurídica brasileira: todos querem saber a verdade, mas poucos compreendem quem tem o dever legal de descobri-la.

No Estado Democrático de Direito, o mistério de Odete Roitman é mais do que uma trama policial; é o reflexo simbólico da função estatal de investigar, apurar e responsabilizar. No Brasil, essa missão é exclusiva da Polícia Judiciária - civil ou Federal - conforme determina o art. 144 da CF/88, em consonância com o art. 3º-A do CPP, introduzido pelo pacote anticrime (lei 13.964/19).

Fora desse marco jurídico, toda e qualquer ingerência investigativa representa afronta à legalidade e usurpação de função pública, conforme o art. 328 do CP. A verdade não pode ser construída por conveniência política, midiática ou institucional. Ela deve ser buscada com técnica, imparcialidade e sob o manto da legalidade.

Análise crítica contextual - A verdade real e os limites da investigação estatal

O modelo acusatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro consagra a separação de funções entre investigar, acusar e julgar, estabelecendo um sistema de freios e contrapesos entre as instituições que integram a Justiça. Nesse contexto, a Polícia Judiciária exerce papel essencial, sendo a guardiã da fase pré-processual, responsável por reunir elementos de prova com o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais.

Todavia, observa-se, com preocupação, o avanço de práticas e discursos que buscam relativizar esse papel, permitindo que outros órgãos, estranhos à estrutura da Polícia Judiciária, conduzam investigações criminais de forma autônoma. Essa invasão institucional, além de ferir a Constituição, compromete a própria higidez do processo penal, pois confunde funções, contamina provas e desvirtua o princípio da imparcialidade.

A verdade processual só é alcançada quando a verdade investigativa é construída com técnica, isenção e observância ao devido processo legal. A Polícia Judiciária, amparada pela ciência forense, pela criminologia e pelos preceitos do Direito Penal, é o instrumento legítimo de apuração dos fatos.

Entretanto, o sucateamento estrutural, a interferência política e a falta de investimento em tecnologia e capacitação têm enfraquecido essa função essencial à Justiça, tornando o combate à criminalidade mais lento e, por vezes, ineficaz.

O Estado que não investe na sua polícia investigativa abre espaço para o arbítrio e para a impunidade. A verdade, nesse cenário, deixa de ser fruto da razão jurídica e passa a ser produto da conveniência ideológica.

Conclusão - A Polícia Judiciária como guardiã da verdade e da justiça

A metáfora “Quem matou Odete Roitman?” ultrapassa a ficção e ingressa na seara da Justiça como um convite à reflexão: quem tem o dever constitucional de revelar a verdade? A resposta é clara e inequívoca - é a Polícia Judiciária, instituição de Estado, que carrega o poder-dever de investigar, de apurar a autoria e a materialidade das infrações penais, excetuando-se apenas os crimes de natureza militar, cuja competência investigativa pertence às Polícias Militares e à Justiça Militar.

A Polícia Judiciária é a sentinela da verdade real. É o elo entre o crime e a Justiça, entre a dor da vítima e a responsabilização do culpado. Quando seu papel é desrespeitado, a Justiça perde sua essência, e o Estado Democrático de Direito vacila em seus alicerces.

Por isso, fortalecer a Polícia Judiciária é preservar a legalidade, a técnica, a imparcialidade e a própria vida da Justiça. A verdade não se improvisa; ela se constrói com ciência, com coragem e com respeito à Constituição.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 - Pacote Anticrime.

BRASIL. Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013 - Dispõe sobre a investigação conduzida pelo delegado de Polícia.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2023.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 2022.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2024.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2023.

Jeferson Botelho
Delegado Geral aposentado da PCMG; prof. de Direito Penal e Processo Penal; autor de obras jurídicas; advogado em Minas Gerais. Jurista. Mestre em Ciência das Religiões - Faculdade Unida Vitória/ES;

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