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Os limites da liberdade econômica em contratos de parceria fitness

Em ação contra plataforma fitness, obtivemos tutela que liberou repasses retidos e restabeleceu o equilíbrio contratual. Liberdade econômica tem limites: Função social, boa-fé e proporcionalidade.

13/10/2025

Um estudo de caso sobre como a função social do contrato e a boa-fé objetiva foram decisivas para reverter uma rescisão unilateral com retenção de repasses, servindo de alerta para empresas que dependem de marketplaces e intermediadores

No ecossistema de negócios atual, parcerias com marketplaces e plataformas de intermediação - seja em setores como benefícios corporativos, delivery, educação ou saúde - representam, muitas vezes, o principal canal de aquisição de clientes e faturamento. A dependência econômica é uma realidade. Nesse cenário, decisões unilaterais e agressivas, como uma rescisão imediata acompanhada da retenção de valores já faturados, podem ter um efeito devastador, efetivamente zerando a receita de um canal vital e colocando toda a operação em risco de insolvência

O Direito Privado, contudo, oferece respostas robustas a essas práticas. A autonomia da vontade e a liberdade de contratar não se confundem com um poder potestativo, isto é, um direito absoluto de impor a penalidade máxima (rescisão) sem provas concretas, sem direito ao contraditório e sem antes esgotar meios menos gravosos para a solução de eventuais controvérsias

Em uma recente e relevante ação empresarial, uma tutela de urgência (liminar) foi obtida para garantir a sobrevivência de um negócio do setor de fitness, demonstrando na prática os limites da autonomia privada em contratos com plataformas digitais. A decisão judicial determinou a liberação imediata de repasses financeiros retidos indevidamente e recompôs o equilíbrio contratual rompido de forma abrupta e unilateral. Este caso prático evidencia que a tão celebrada liberdade econômica, consagrada no art. 421-A do CC, não é um cheque em branco. Ela encontra barreiras claras na função social do contrato (art. 421, CC), na boa-fé objetiva (art. 422, CC) e no princípio da proporcionalidade, sobretudo quando uma medida drástica causa o estrangulamento do fluxo de caixa e o desvio de clientela do parceiro comercial.

A relevância do tema é inegável para um número crescente de empresas. No ecossistema de negócios atual, parcerias com marketplaces e plataformas de intermediação - seja em setores como benefícios corporativos, delivery, educação ou saúde - representam, muitas vezes, o principal canal de aquisição de clientes e faturamento. A dependência econômica é uma realidade. Nesse cenário, decisões unilaterais e agressivas, como uma rescisão imediata acompanhada da retenção de valores já faturados, podem ter um efeito devastador, efetivamente zerando a receita de um canal vital e colocando toda a operação em risco de insolvência. O Direito Privado, contudo, oferece respostas robustas a essas práticas. A autonomia da vontade e a liberdade de contratar não se confundem com um poder potestativo, isto é, um direito absoluto de impor a penalidade máxima sem provas concretas, sem direito ao contraditório e sem antes esgotar meios menos gravosos para a solução de eventuais controvérsias.

A situação fática do caso em análise era emblemática. A parceria com a plataforma havia se tornado a principal artéria do negócio. Para se ter uma ideia, nos meses de julho e agosto de 2025, os repasses da plataforma representaram, em média, 72,43% de toda a receita que ingressou na conta bancária dedicada a esses recebimentos. O faturamento médio mensal via plataforma, antes da ruptura, era de R$ 53.480,68, o que equivale a uma referência diária de R$ 1.782,69. Apesar do fluxo contratual prever o pagamento dos serviços prestados em um mês até o dia 20 do mês subsequente, a empresa viu o repasse ser reduzido a zero após a rescisão unilateral. A análise econômica dos fatos, sustentada por provas robustas como o histórico da própria plataforma, extratos segmentados e quadros comparativos, demonstrou um crescimento orgânico e consistente, compatível com a ampliação física do negócio. A queda abrupta da receita foi consequência direta e exclusiva do bloqueio imposto pela plataforma.

Diante desse quadro, a tese jurídica foi construída sobre pilares sólidos que visam o reequilíbrio contratual. Em primeiro lugar, defendeu-se que cláusulas que autorizam a rescisão imediata, por serem medidas excepcionais, exigem interpretação restritiva e só podem ser acionadas diante de uma falta grave, devidamente comprovada. A mera alegação de um "indício genérico" de irregularidade, sem a individualização de provas concretas (como logs de sistema, datas e identificação de usuários), não legitima a aplicação da penalidade máxima.

Em segundo lugar, invocou-se a boa-fé objetiva, que, conforme o art. 422 do CC, impõe deveres anexos de lealdade, informação e cooperação. Antes de uma medida tão drástica, seria esperado que a plataforma notificasse o parceiro para prestar esclarecimentos, permitisse uma auditoria conjunta ou concedesse um prazo para a correção de supostas falhas (cure period). A ausência dessas etapas evidenciou a desproporcionalidade da conduta.

O terceiro pilar foi a função social do contrato, prevista no art. 421 do CC, que atua como um freio ao abuso de direito. A liberdade econômica não pode ser exercida de forma a desorganizar o mercado do parceiro, gerar vantagem competitiva artificial e explorar sua dependência econômica. A liberdade de contratar não autoriza uma parte a regular, sozinha, as regras do jogo.

Por fim, a retenção de repasses por serviços já prestados configurou mora do devedor, pois a obrigação era líquida e com prazo certo, autorizando a concessão de tutela de urgência para estancar o dano financeiro iminente, com base no art. 300 do CPC e nos arts. 389, 395 e 397 do CC.

O sucesso na obtenção da liminar não se baseou apenas em teses jurídicas, mas na forma como os dados do negócio foram transformados em provas persuasivas. Por meio de uma advocacia "data-driven", foi possível isolar a conta bancária dos recebimentos e demonstrar matematicamente a relevância do canal e o impacto do bloqueio. Construiu-se um argumento auditável, usando a média de faturamento dos últimos seis meses para quantificar os lucros cessantes de forma objetiva. Além disso, uma linha do tempo probatória clara estabeleceu o nexo causal incontestável entre a ação da plataforma e o dano, organizando os eventos de forma lógica: ampliação da estrutura, aumento legítimo de acessos, notificação genérica, bloqueio e receita zerada.

A estratégia para o pedido de tutela de urgência foi igualmente decisiva, com a formulação de pedidos modulares, proporcionais e eficazes. Pleiteou-se, primariamente, a liberação imediata dos valores retidos ou seu depósito em juízo. Adicionalmente, requereu-se uma medida inibitória para proibir novas retenções unilaterais, determinando o depósito judicial em caso de controvérsias futuras. Cautelarmente, pediu-se a reativação do cadastro na plataforma, condicionada a uma auditoria conjunta, e, por fim, a exibição de todos os documentos que comprovassem as supostas irregularidades. O resultado foi o deferimento da liminar, com foco na liberação dos valores e na recomposição do equilíbrio contratual.

Este caso exemplifica uma abordagem moderna ao litígio empresarial, que vai além de meras citações doutrinárias para focar na orientação por dados, transformando painéis, extratos e demonstrativos em provas robustas. Exige uma arquitetura de pedidos que estanque a hemorragia financeira sem prejudicar a discussão de mérito, sustentada por uma tese sólida que busca conter abusos sem demonizar as plataformas. Idealmente, essa atuação reativa informa um manual preventivo para empresas, com a negociação de cláusulas que prevejam SLAs de auditoria, compartilhamento de logs e vedação de retenção de pagamentos sem ordem judicial.

As lições para empresas em situação de dependência de plataformas são claras. É fundamental mapear constantemente a relevância de cada canal no faturamento, padronizar a coleta de evidências (reservas, check-ins, trilhas de auditoria), monitorar rigorosamente os fluxos de repasse e manter um registro histórico da média de receita para construir um contrafactual sólido. Com esses elementos, é possível implementar um protocolo de crise para responder tecnicamente a qualquer notificação em tempo hábil, buscando sempre o diálogo e a preservação das provas.

Em conclusão, a decisão liminar obtida neste caso é um importante precedente. A liberdade econômica, pilar do desenvolvimento, não autoriza o exercício arbitrário das próprias razões. A função social do contrato, a boa-fé e a proporcionalidade funcionam como salvaguardas essenciais. Quando a prova é clara e o nexo causal é direto, o Judiciário age para liberar o que é devido, preservar a continuidade empresarial e impedir que uma plataforma, por mais dominante que seja, regule sozinha o mercado de seus parceiros, garantindo um ambiente de negócios mais justo e previsível.

Larissa Bueno dos Santos
Advogada empresarial com atuação estratégica para clínicas e hospitais, unindo consultivo e contencioso para dar segurança jurídica e acelerar resultados.

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