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IA generativa e direitos autorais: A remuneração em perspectiva (Parte 1/2)

Os desafios dos diferentes mecanismos de remuneração não podem justificar a ausência de pagamento: como remunerar autores e artistas sem gerar impactos na pesquisa e na inovação?

14/10/2025

A remuneração está, hoje, no centro da discussão sobre direitos autorais e sistemas de IA generativa. De um lado, há quem diga que a regulação e a exigência de pagamento podem sufocar o desenvolvimento da IA e prejudicar, por exemplo, as startups. De outro, há posições contrárias à manutenção da limitação de mineração de textos e dados (TDM) no texto do PL 2338/23 (“PL da IA”), o que arrisca criar um cenário em que haveria a obrigação de remuneração para usos relacionados ao treinamento de diferentes sistemas de IA, independentemente da finalidade ou da natureza da organização. Contudo, a proteção a autores, artistas e titulares, de um lado, e o incentivo à pesquisa e à inovação, de outro, não precisam ser tratados como escolhas excludentes, inclusive no contexto do debate sobre o PL da IA.

Reconhecendo que a questão da remuneração é apenas uma entre várias que orbitam o tema da IA generativa e dos direitos autorais, esta breve série de textos busca contribuir para o debate, trazendo informações e reflexões que visam ampliar a discussão para além do texto do PL da IA. Este primeiro texto apresenta os cenários em que o pagamento é devido e aqueles em que não é, além de introduzir o que chamaremos de “mecanismos de remuneração baseados no input”, geralmente associados ao uso de obras protegidas no treinamento de sistemas de IA. Na segunda postagem, o foco recairá sobre os “mecanismos de remuneração baseados no output” e sobre possíveis revisões no texto do PL da IA.

Quando remunerar?

Tratando-se de direitos autorais, o primeiro passo é avaliar se há algum tipo de uso exclusivo abrangido por esses direitos que justifique a necessidade de autorização prévia e expressa, o que, por sua vez, pode levar à necessidade de remuneração. A partir do que se observa na literatura especializada e em casos judiciais, tanto o processo da mineração de textos e dados,1 como o treinamento de sistemas de IA generativa,2 que, embora conectados, não se confundem,3 podem envolver usos exclusivos de conteúdo protegido, como a reprodução.4 Nesses casos, a próxima pergunta é: trata-se de uma reprodução ou uso que demandaria autorização prévia e expressa do autor? 

Dentre os casos em que não seria necessária autorização e/ou algum tipo de remuneração, destacamos os usos compreendidos por limitações e exceções, como é o caso daquelas relacionadas com a mineração de textos e dados, e o uso de obras em domínio público, incluindo não apenas as hipóteses do art. 45 da LDA, mas também tudo aquilo que nunca foi protegido por direitos autorais e que não faz parte de seu escopo.5

A discussão ganha complexidade quando se debate a aplicação das limitações de TDM em treinamentos de IA generativa com finalidade comercial, bem como o reconhecimento desses usos como fair use, havendo posições divergentes. Enquanto a extração de padrões e correlações em grandes volumes de dados para pesquisa científica estaria abrangida pela limitação, o uso de obras protegidas para o treinamento de sistemas de IA generativa com fins comerciais não parece seguir o mesmo entendimento, já que a expressão das obras utilizadas pode ser determinante.6

Neste sentido, chama-se atenção para a discussão acerca dos usos não-expressivos. De acordo com Sag (2019), um uso não-expressivo “refere-se a qualquer ato de reprodução que não tenha a finalidade de possibilitar o desfrute, a apreciação ou a compreensão humana da expressão copiada enquanto expressão”, enquanto o uso expressivo está relacionado à “apreciação humana das qualidades expressivas dessa obra”, como, por exemplo, “fazer o download de um filme para assisti-lo”.7

Assim, caso o uso de obras protegidas para o treinamento de sistemas de IA seja considerado como não-expressivo, como defendido por alguns autores, não existiria violação de direitos autorais.8 Contudo, quando se trata especificamente do treinamento de sistemas de IA generativa, a caracterização desses usos como “não expressivos” tem sido amplamente debatida, como evidenciado no relatório mais recente do US Copyright Office, por exemplo.9

Aqui, o conhecimento sobre a tecnologia se faz absolutamente necessário, sendo fundamental a participação de desenvolvedores e demais profissionais que trabalham com IA generativa no debate, uma vez que só é possível compreender se há algum uso que funcione como um “gatilho” para a aplicação das regras autorais quando está claro o passo a passo do treinamento desses sistemas, por exemplo. 

Passamos agora à apresentação e discussão dos mecanismos de remuneração baseados no input e suas limitações.

Mecanismos baseados no input

Os mecanismos aqui identificados como “baseados no input” recebem essa denominação porque comumente justificam a remuneração, e até mesmo a forma de cálculo, em algum uso de conteúdo protegido durante a etapa do treinamento de sistemas de IA generativa.10 Boa parte desses modelos adota alguma forma de licenciamento, que pode ser direto, coletivo, coletivo estendido ou outras modalidades de licença que serão apresentadas. 

O licenciamento direto é um dos formatos fomentados pelo PL da IA em sua versão aprovada no Senado Federal. Ele decorre do direito exclusivo assegurado pelos direitos autorais, que confere ao autor ou titular a faculdade de autorizar ou proibir o uso de suas obras de forma direta, por meio de licenças que estabelecem os termos em que tais usos podem ocorrer. Para além do licenciamento direto proposto no PL da IA, o art. 65 também prevê a possibilidade de negociação coletiva por meio de associações, valendo-se do sistema de gestão coletiva.11

O recurso à gestão coletiva também é observado em uma recente proposta do Ministério da Cultura Espanhol que, com base no art. 12 da diretiva 19/790 da União Europeia (CDSM),12 propôs um mecanismo de remuneração baseado em licenças coletivas estendidas (“extended collective licensing”).13  Sob tal licença, a organização de gestão coletiva não precisaria, necessariamente, estar autorizada a representar um titular específico, e, ainda assim, os efeitos dessa licença poderiam se estender a ele. A aplicação deste tipo de licença seria restrita a áreas em que a obtenção individual de autorizações seria praticamente inviável, seja pela natureza do uso, do tipo de obras envolvidas, ou por outros fatores.14

Outra forma de licença é a chamada licença legal (“statutory license”), proposta por Geiger e Iaia (2023), que estabelece a criação de um direito de remuneração no texto legal, baseado em uma limitação aos direitos exclusivos autorizando, por exemplo, o uso de conteúdo protegido para o treinamento de sistemas de IA. Nesse modelo, é esperado que a disponibilidade de conteúdos para o treinamento de sistemas de IA aumente em razão da limitação expressa em lei, ao mesmo tempo em que se resguardam os interesses de autores e titulares por meio da previsão de uma remuneração legal pelo uso de suas obras.15

Por fim, e compartilhando certa semelhança estrutural com o modelo de Geiger e Iaia (2023), destaca-se o mecanismo de remuneração proposto por Lucchi (2025), baseado na combinação de: (i) uma limitação legal aos direitos autorais que autoriza o uso de obras protegidas para o treinamento de sistemas de IA, (ii) “um direito de remuneração irrenunciável para autores e titulares cujas obras são utilizadas no treinamento”, e (iii) o envolvimento de organizações de gestão coletiva, responsáveis pela arrecadação e distribuição dos valores.16

Limites e aprendizados sobre os mecanismos baseados no input

Os modelos baseados no input, notadamente aqueles que seguem o formato de licenciamento, favoreceriam negociação entre grandes titulares de direitos (por exemplo, proprietários de bancos de dados) e grandes agentes de IA, comumente sediados no exterior,17 potencialmente excluindo autores e artistas independentes ou com menor visibilidade.18 Essa tendência, inclusive, já pode ser observada nos acordos firmados entre titulares de conteúdo e empresas de tecnologia.19 Assim, um dos grandes desafios a ser enfrentado continua sendo garantir que o criador, pessoa física, possa ser adequadamente remunerado.

Tais modelos também são objeto de críticas quanto à sua capacidade de remunerar apropriadamente não apenas autores e artistas, mas outros agentes importantes no “ecossistema da informação”, como é o caso de plataformas colaborativas e repositórios institucionais.20 

Outra limitação, de natureza predominantemente tecnológica, refere-se ao uso de técnicas de treinamento como a destilação (“distillation”), em que o sistema de IA generativa não é treinado com as obras originais, mas com conteúdos sintéticos produzidos por outro modelo.21 Diante da dificuldade de conceituar esses conteúdos como “obras derivadas”,22 nos modelos em que o treinamento ocorre por meio da destilação, não é possível estabelecer uma ligação direta entre uma obra protegida específica e o treinamento do segundo sistema de IA.23 Por fim, tais modelos tendem a ser mais dependentes de obrigações de transparência, exigindo informações mais detalhadas sobre o material efetivamente utilizado no treinamento de cada sistema.24

Mesmo diante dessas limitações, é fundamental frisar que os desafios observados acima não podem servir de justificativa para deixar de remunerar, de forma adequada, autores, artistas e demais titulares. Ao contrário, devem incentivar a busca por soluções que, nas hipóteses em que a remuneração é devida, alcancem todos os que contribuem para a criação de conteúdos valiosos ao treinamento de grandes sistemas de IA generativa. 

Nesse sentido, o próximo texto abordará os “mecanismos baseados no output” e trará contribuições para a discussão sobre a remuneração no âmbito do PL da IA.

 ______________

Agradeço ao Miguel Alvarenga pela leitura atenta, revisão e pelos valiosos comentários sobre o texto. Eventuais erros ou imprecisões são de minha exclusiva responsabilidade.

1 Ver, por exemplo, CARROLL, Michael W. Copyright and the progress of science: why text and data mining is lawful. U.C. Davis Law Review, v. 53, p. 893–901, 2019. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3531231.

2 Ver, por exemplo, UNITED STATES. District Court (California). Bartz v. Anthropic PBC, 3:24-cv-05417. 23 jun. 2025. Disponível em: https://storage.courtlistener.com/recap/gov.uscourts.cand.434709/gov.uscourts.cand.434709.231.0_4.pdf. GERVAIS, Daniel J. The Remuneration Of Music Creators for the Use of Their Works by Generative AI. White paper. Fair Trade Music International (FTMI) e International Council of Music Creators (CIAM), abr. 2024. Disponível em: https://www.fairtrademusicinternational.org/wp-content/uploads/2024/08/FTMI-GenAI-White-Paper-EN.pdf. Bartz v. Anthropic (2025) e Gervais (2024).

3 Ver, por exemplo, SCHIRRU, L.; SOUZA, A. R. de; VALENTE, M. G.; LANA, A.P.. Text and Data Mining Exceptions in Latin America. IIC – International Review of Intellectual Property and Competition Law, v. 55, p. 1624–1653, 2024. DOI: https://doi.org/10.1007/s40319-024-01511-2.

4 BRASIL. Lei nº 9.610 , de 19 de Fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília, DF. Art. 29, I.

5 ASCENSÃO, José de Oliveira. A questão do domínio público. In: WACHOWICZ, Marcos; SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. Estudos de Direito de Autor e Interesse Público: Anais do II Congresso de Direito de Autor e Interesse Público. Fundação Boiteux. Florianópolis. 2008. Disponível em: http://www.direitoautoral.ufsc.br/arquivos/anais_na_integra.pdf. BARBOSA, Denis Borges. Domínio Público e Patrimônio Cultural. In: ADOLFO, Luiz Gonzaga e WACHOWICZ, Marcos (coord.), Direito da Propriedade Intelectual: estudos em homenagem ao Pe. Bruno Jorge Hammes. Curitiba: Juruá, 2006. Texto de 2005, disponível em: http://denisbarbosa.addr.com/bruno.pdf. BRANCO, S. O domínio público no direito autoral brasileiro: Uma Obra em Domínio Público. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011. Sobre o tema, ver também GRAU-KUNTZ, Karin. Domínio público e Direito de Autor: Do requisito da originalidade como contribuição reflexivo-transformadora. Revista Eletrônica do IBPI. N. 6. 2012. Disponível em: https://ibpieuropa.org/book/revista-eletronica-do-ibpi-nr-6.

6 Para além das outras referências citadas anteriormente, ver, por exemplo, UNITED STATES. Copyright Office. Copyright and Artificial Intelligence: Part 3 – Generative AI Training. Pre-Publication Version. 2024. Disponível em: https://www.copyright.gov/ai/Copyright-and-Artificial-Intelligence-Part-3-Generative-AI-Training-Report-Pre-Publication-Version.pdf. UNITED STATES. District Court (California). Kadrey v. Meta Platforms, Inc., 3:23-cv-03417. Disponível em: https://www.courtlistener.com/docket/67569326/kadrey-v-meta-platforms-inc/?filed_after=&filed_before=&entry_gte=&entry_lte=&order_by=desc. DORNIS, Tim W., The Training of Generative AI Is Not Text and Data Mining (October 19, 2024). European Intellectual Property Review (E.I.P.R.), forthcoming 2/2025, http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4993782.

7 Tradução nossa. Original em Sag (2019, p.9). SAG, M. The new legal landscape for text mining and machine learning. Journal of the Copyright Society of the USA, v. 66, p. 291, 2019. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3331606.

8 Ver, por exemplo, Sag (2019, 9).

9 USCO (2025).

10 Gervais (2024, pp.20-21) propõe que, para situações em que determinados usos já estariam cobertos por limitações e exceções relacionadas à mineração de textos e dados, a remuneração ainda poderia ser devida pelo “uso da base de dados tokenizada para criar material que possa ser usado para competir com o material usado para treinamento” (tradução nossa).

11 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 2338/2023. Dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. Versão aprovada no Senado e publicada revisada em 19 dez. 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9881643&ts=1742240906322&disposition=inline.

12 Ver, NOBRE, Teresa. A first look at the Spanish proposal to introduce ECL for AI training. Kluwer Copyright Blog, 11 dez. 2024. Disponível em: https://copyrightblog.kluw­eriplaw.com/2024/12/11/a-first-look-at-the-spanish-proposal-to-introduce-ecl-for-ai-training/.

13 ESPANHA. Proyecto de Real Decreto por el que se regula la concesión de licencias colectivas ampliadas para la explotación masiva de obras y prestaciones protegidas por derechos de propiedad intelectual para el desarrollo de modelos de inteligencia artificial de uso general. 2024. Disponível em: https://communia-association.org/wp-content/uploads/2024/12/proyecto-rd-licencias-colectivas.pdf. . Para uma análise do Projeto, ver Nobre (2024).

14 Art. 12(2), CDSM.

15 GEIGER, Christophe; IAIA, Vincenzo. The forgotten creator: towards a statutory remuneration right for machine learning of generative AI. Computer Law & Security Review, v. 52, p. 1-9, 2024. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=4594873

16 Tradução nossa. Texto original em Lucchi (2025, p.127). LUCCHI, Nicola. Generative AI and Copyright: Training, Creation, Regulation. Policy Department for Justice, Civil Liberties and Institutional Affairs Directorate-General for Citizens’ Rights, Justice and Institutional Affairs, PE 774.095, jul. 2025. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2025/774095/IUST_STU(2025)774095_EN.pdf.

17 Ver, por exemplo, INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITOS AUTORAIS (IBDAUTORAL); SOUZA, Allan Rocha de; SCHIRRU, Luca; LANA, Alice de Perdigão; RAMOS, Leon Queiroz. Inteligência Artificial e Direitos Autorais: Contribuições ao Debate Regulatório no Brasil. 2024. Disponível em: https://ibdautoral.org.br/novo/wp-content/uploads/2025/06/IA-E-DIREITOS-AUTORAIS_v2.pdf. SENFTLEBEN, Martin. AI Act and Author Remuneration - A Model for Other Regions? 24 fev. 2024. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=4740268.

18 Lucchi (2025).

19 Ver, por exemplo, THOMAS, Amy; KRETSCHMER, Martin. The AI licensing economy. Create, 24 fev. 2025. Disponível em: https://www.create.ac.uk/blog/2025/02/24/the-ai-licensing-economy/.

20 Keller (2025, p.11). KELLER, Paul. Beyond AI & Copyright: Funding a Sustainable Information Ecosystem. Open Future, jun. 2025. Disponível em: https://openfuture.eu/wp-content/uploads/2025/06/250630_Beyond-AI-and-copyright-funding-a-sustainable-information-ecosystem.pdf.

21 Keller (2025, p.10).

22 IBDAutoral (2024).

23 Keller (2025).

24 SENFTLEBEN, Martin. Generative AI and author remuneration. IIC – International Review of Intellectual Property and Competition Law, v. 54, p. 1535-1560, 2023. DOI: https://doi.org/10.1007/s40319-023-01399-4.

Luca Schirru
Advogado, professor e consultor jurídico em direitos autorais. Pesquisador de pós-doutorado (INCC/IBICT). Coordenador de Pesquisa (Centre on Knowledge Governance). Research Fellow (CiTiP - KU Leuven).

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