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A ação comunicativa como chave para a imputação penal racional

Neste artigo trato de Habermas, Wittgenstein e da reconstrução normativa do Direito Penal.

14/10/2025

A teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, articulada no contexto de sua crítica à modernidade, oferece um instrumental teórico poderoso para repensar os fundamentos da imputação penal. Sustentada por uma filosofia que rejeita o modelo tradicional sujeito-objeto e centrada na racionalidade comunicativa, essa teoria parte da premissa de que não há conhecimento desvinculado da cultura e que toda ação só adquire sentido quando situada na esfera da linguagem e da intersubjetividade.

Habermas estrutura sua concepção comunicativa com base em quatro pretensões de validade, extraídas do uso cotidiano da linguagem: compreensibilidade, verdade, retidão normativa e veracidade. A comunicação legítima, segundo essa moldura, só se concretiza quando essas quatro condições são atendidas, criando um ambiente discursivo propício à formação racional do consenso. Para o Direito Penal, isso significa que a imputação deve ocorrer dentro de um campo discursivo onde a norma é conhecida, compreendida, aceita e respeitada por todos os envolvidos, inclusive pelo imputado.

Essa perspectiva coincide, em grande medida, com o ponto de partida filosófico de Ludwig Wittgenstein em sua fase tardia, sobretudo nas Investigações Filosóficas, quando afirma que “seguir uma regra é uma prática”. O vínculo entre Habermas e Wittgenstein se estabelece de forma densa e produtiva no tocante ao conceito de normatividade. Wittgenstein rechaça a possibilidade de uma regra privada; Habermas amplia essa rejeição para edificar sua teoria de consenso: só há norma válida se houver possibilidade de crítica pública e intersubjetiva sobre sua aplicação.

É nesse ponto que a imputação penal encontra seu fundamento renovado: não se trata apenas de atribuir responsabilidade com base em elementos subjetivos isolados, mas de reconhecer se o comportamento imputado transgrediu uma expectativa normativa socialmente estabilizada, e cuja validade pode ser comunicada, compreendida e contestada. Esse deslocamento é essencial. Conforme explica Barberá, o fim do Direito Penal seria justamente garantir a manutenção contrafactual das expectativas frustradas, geradas por condutas desviantes. O desvio não é mais visto como simples afronta objetiva à norma, mas como falha em relação ao pacto comunicativo da sociedade.

Nessa perspectiva, a ação penal não é uma imposição unilateral do Estado, mas uma resposta comunicativamente estruturada à ruptura de expectativas normativas. Isso tem implicações diretas na análise da culpabilidade: não basta constatar o dolo ou a imprudência; é necessário demonstrar que o sujeito, ao agir, sabia (ou devia saber) da existência da norma e compreendia sua aplicação ao caso concreto. E mais: que a norma violada era, antes da infração, reconhecida intersubjetivamente como válida.

Daí a importância do conceito de “rol social” em Habermas: todo indivíduo age dentro de um conjunto de expectativas normativas compartilhadas. A ação comunicativa se realiza na medida em que esses papéis são assumidos com consciência e liberdade. Portanto, agir fora do rol implica, muitas vezes, uma ruptura intencional com a ordem discursiva, o que legitima a resposta punitiva, desde que essa resposta também respeite os critérios comunicativos: clareza, verdade, normatividade e veracidade.

Além disso, o conceito de “seguimento de regras” desempenha um papel decisivo na delimitação da imputação penal racional. Habermas reafirma o ponto wittgensteiniano: não se pode alegar que se está seguindo uma regra se tal seguimento não pode ser avaliado por terceiros. O seguimento de regras implica exposição à crítica, possibilidade de revisão, defesa e reformulação. A imputação penal, para ser legítima, deve ser uma aplicação de norma cuja validade tenha sido anteriormente estabilizada em um processo comunicativo aberto e racional.

Por isso, a reconstrução do Direito Penal a partir da teoria da ação comunicativa exige abandonar qualquer vestígio de imputação fundada em modelos subjetivistas abstratos, como o chamado “dolo eventual”, e avançar para um modelo no qual as categorias de dolo e imprudência são reconstruídas com base no reconhecimento intersubjetivo das regras. A violação dolosa não é apenas uma transgressão voluntária, mas a negação consciente de um acordo normativo socialmente válido. A imprudência, por sua vez, será mensurada pela previsibilidade e pela expectativa de comportamento responsável no contexto de regras comunicadas.

Ao adotar esse modelo, o Direito Penal não apenas se alinha aos critérios filosóficos mais robustos da racionalidade moderna, como também resgata seu papel original: garantir a convivência social a partir de normas claras, discutidas, compreendidas e consensualmente aceitas. É nesse horizonte que a teoria da ação comunicativa de Habermas encontra sua força, não como utopia inalcançável, mas como critério normativo da legitimidade penal.

O Direito Penal não pode prescindir da linguagem. Tampouco pode abdicar da filosofia. A união entre Wittgenstein e Habermas nos oferece o caminho para uma imputação penal que respeite o significado das regras, a dignidade dos sujeitos e a legitimidade das sanções. E, sobretudo, nos ajuda a lembrar que nenhuma pena é justa se a norma violada não foi, antes, uma regra reconhecida por todos como válida. Essa é, afinal, a lição maior de uma filosofia da imputação significativa.

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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá
Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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