Em outubro de 2025, ganhou destaque nos meios de comunicação o caso da técnica de enfermagem Ana Paula, apontada como a “maior assassina em série do Brasil” ao usar envenenamento para eliminar vítimas em ambiente hospitalar e tentar incriminar terceiros.
O fato, naturalmente, incendiou debates midiáticos e trouxe à tona questões cruciais do Direito Penal e do processo penal: como tipificar tais condutas (homicídio qualificado por motivo torpe e meio insidioso), definir a competência do Tribunal do Júri, sopesar quando aplicar crime continuado (art. 71 do CP) ou admitir concurso material, além de proteger a imparcialidade dos jurados diante da intensa cobertura social.
Trata-se, em última análise, de um “teste de estresse” institucional: como o sistema penal reage quando o horror e o sensacionalismo midiático invadem o processo? Este artigo busca articular os principais pontos - legitimidade da tipificação, competência, mecanismos cautelares (prisão preventiva), regime de dosimetria e gestão de risco de contaminação midiática - numa abordagem crítica, doutrinária e jurisprudencial, com sugestões práticas para defesa, acusação e magistratura.
No contexto narrado, a conduta descrita (envenenamento com uso de substância letal e conivências para incriminação de terceiros) evidencia, à primeira vista, duas qualificadoras clássicas: motivo torpe e meio insidioso. O motivo torpe externa desprezo moral absoluto (art. 121, § 2º, I, CP), enquanto o meio insidioso (art. 121, § 2º, IV, CP), aqui representado pelo uso de veneno (“meio sutil ou de que resulta perigo comum”), caracteriza a ocultação da violência ou o grau extremo de traição à confiança.
Diversos autores, como Nucci e Cascão, sustentam que no homicídio com veneno a qualificadora do meio insidioso figura como meio dissimulado e oculto, reforçando a gravidade da conduta. Em contrapartida, correntes mais garantistas alertam para os limites da prova, notadamente no exame toxicológico, cadeia de custódia e eventual risco de nulidades – se comprovada falha, restaria fragilizado o núcleo da qualificação.
É imprescindível que o Ministério Público demonstre, com robustez, não apenas a presença da substância letal, mas sua dosagem, forma de introdução e intencionalidade do agente. Por esse prisma, o uso de veneno como meio exige laudos periciais detalhados (exames toxicológicos, histopatológicos, traços em utensílios ou amostras orgânicas), bem como rastreio de cadeia de custódia em todos os elos (coleta, transporte, armazenamento, análise).
Ademais, há que se ponderar se há causa de diminuição ou circunstância atenuante (ex.: confissão, arrependimento, colaboração) que possa minorar a reprovabilidade da conduta. Nem sempre as qualificadoras terão força plena - a dogmática penal exige “fundamentação idônea e congruente” com o conjunto probatório.
Por fim, cabe observar que, como se trata de crime qualificado (e, muito provavelmente, hediondo ou assemelhado em grau de repulsa), há impacto direto nas possibilidades de recurso, regime inicial e medidas cautelares que poderão ser adotadas.
É imprescindível que o Ministério Público demonstre, com robustez, não apenas a presença da substância letal, mas sua dosagem, forma de introdução e intencionalidade do agente. Por esse prisma, o uso de veneno como meio exige laudos periciais detalhados (exames toxicológicos, histopatológicos, traços em utensílios ou amostras orgânicas), bem como rastreio de cadeia de custódia em todos os elos (coleta, transporte, armazenamento, análise).
Ademais, há que se ponderar se há causa de diminuição ou circunstância atenuante (ex.: confissão, arrependimento, colaboração) que possa minorar a reprovabilidade da conduta. Nem sempre as qualificadoras terão força plena - a dogmática penal exige “fundamentação idônea e congruente” com o conjunto probatório.
Por fim, cabe observar que, como se trata de crime qualificado (e, muito provavelmente, hediondo ou assemelhado em grau de repulsa), há impacto direto nas possibilidades de recurso, regime inicial e medidas cautelares que poderão ser adotadas.
O elevado grau de repercussão social e o risco de contaminação midiática impõem cautela. A defesa, o Ministério Público ou o juiz podem suscitar desaforamento (art. 427, CPP) quando verificado sério risco à imparcialidade dos jurados - respaldo jurisprudencial admite esse remanejamento para comarca vizinha, ou adoção de sistema híbrido de juízos auxiliares.
Também pode haver pedido de segregação de competência (instaurar rito autônomo) quando parte dos crimes (hipoteticamente, aqueles com circunstâncias especiais de prova ou locais diversos) possa ser levada a outro juízo sem afrontar a uniformidade da sentença.
Em processos de alta visibilidade, o sigilo de Justiça ou controle de acesso aos autos (imposição de restrições à mídia) são medidas úteis para minimizar o viés externo.
O crime continuado (art. 71, CP) é uma ficção jurídica que permite tratar várias infrações como um único crime, aplicando-se a pena de um dos delitos, aumentada de 1/6 a 2/3. Para configurá-lo, exige-se:
- Requisitos objetivos: Pluralidade de condutas, mesmas condições de tempo, lugar e modo de execução (ou similitude relevante), ou outras circunstâncias equivalentes;
- Requisito subjetivo: Unidade de desígnios ou vínculo subjetivo entre atos delituosos (intenção unitária ou projeto criminoso único).
Doutrina contemporânea (Nucci, Mirabete, Busato) considera que esses elementos não são meramente formais, mas exigem prova no plano fático.
A jurisprudência do STJ tem consolidado (nas teses do crime continuado) que o agente, em casos similares, deve ter sua conduta examinada sob essa ótica, desde que os requisitos estejam demonstrados nos autos.
Se faltar a unidade de desígnios ou se os modos de execução forem muito diversos (sem vínculo subjetivo), deve prevalecer o concurso material (art. 69, CP), com somatório das penas. Em casos extremos, o próprio cúmulo material benéfico pode ser aplicado (se somar as penas for mais favorável ao réu).
Importa destacar que a jurisprudência majoritária no STJ orienta que, havendo crime continuado e concurso formal, aplique-se apenas a exasperação do crime continuado para evitar bis in idem, afastando o acréscimo do concurso formal (art. 70) quando redundante.
No cenário hipotético de Ana Paula, várias hipóteses surgem:
- Hipótese de crime continuado: Se comprovar que todas as mortes seguiram o mesmo modus operandi (veneno), numa sequência próxima no tempo (por exemplo, meses), no mesmo ambiente (hospital ou domicílios relacionados) e que seu propósito foi único (eliminação silenciosa), poder-se-ia requerer o reconhecimento do crime continuado.
- Hipótese de concurso material: Se houver mudança de método, local de aplicação, ou alteração substancial no projeto criminoso entre eventos — ou provas nos autos que não demonstrem unidade de desígnios — deve prevalecer a cumulação das penas.
A decisão entre essas duas opções repercute fortemente na dosimetria final (pode haver aumento de até 2/3 ou somatório total) e no regime inicial.
A defesa deve, com afinco, explorar falhas na demonstração do liame subjetivo: se existir indício de autonomia decisória em alguma morte, deve-se rebater a continuidade.
Já a acusação priorizará evidências de padrão repetitivo: exumar corpos, perícias toxicológicas padronizadas, vestígios nos recipientes de envenenamento. O juiz, então, deverá fundamentar decisivamente, exegese doutrinária e jurisprudencial, se incide o aumento de pena de um só crime (art. 71) ou se impõe a soma das penas (art. 69).
Caso o fator de maior gravidade (qualificação) recaia sobre todos os eventos, a minha tendência seria que se privilegie o crime continuado, desde que não haja risco de bis in idem com o concurso formal.
O caso da “Menina Veneno” transcende a mera tragicidade dos fatos. Ele inaugura uma oportunidade para repensar práticas jurídicas diante da convulsão midiática, do ceticismo social ante instituições e do risco de distorções na aplicação da lei penal.
Primeiramente, no plano da tipificação, a acusação deverá provar com precisão os elementos da qualificação (motivo torpe e meio insidioso), sob pena de desqualificação ou nulidade parcial. Da mesma forma, a defesa encontrará margem para atacar fragilidades periciais e a cadeia de custódia.
Em segundo lugar, no plano da competência, o Tribunal do Júri será o foro natural para os homicídios, mas é essencial reconhecer o risco real de influência externa. A adoção de protocolos de manejo midiático, restrições de cobertura e eventual desaforamento tornam-se imprescindíveis para assegurar um julgamento justo.
No terceiro aspecto, quanto à dosimetria - crime continuado ou concurso material - a escolha correta pode gerar enormes impactos na pena final e no regime prisional. A fundamentação deverá ser robusta e transparente, especialmente em casos tão sensíveis.
Por fim, há uma reflexão institucional: o Poder Judiciário e os operadores do direito devem antecipar, em casos excepcionais, protocolos internos de mitigação de risco midiático, orientando os magistrados e promotores em casos de repercussão nacional. Tais protocolos poderiam incluir diretrizes para desaforamento, comunicação institucional controlada, vedação de entrevistas e práticas de blindagem informacional no júri.