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A (não)retroatividade da lei do distrato 13.786/18

Aplicação da lei do distrato aos contratos anteriores a sua vigência à luz do entendimento do STJ.

17/10/2025

1. Introdução

O distrato imobiliário, entendido como a dissolução de contratos de promessa de compra e venda de imóveis, é fenômeno recorrente e complexo no Brasil. Motivado por crises financeiras, insatisfação com a obra ou simples arrependimento, o desfazimento do negócio sempre representou um ponto de tensão entre consumidores e incorporadoras. Durante décadas, a ausência de legislação específica transformou o tema em terreno fértil para a insegurança jurídica e a judicialização em massa, com decisões frequentemente conflitantes.

Esse cenário atingiu seu ápice durante a crise econômica de 2014-2015, quando levantamento da agência Fitch revelou que 41 de cada 100 imóveis vendidos foram devolvidos (EXAME, 2015). A sanção da lei 13.786/18 - a “lei do distrato” - surgiu, então, como tentativa de pacificar o setor. Contudo, longe de encerrar o debate, a norma inaugurou novas e intensas controvérsias.

O objetivo deste trabalho é analisar as críticas doutrinárias e, principalmente, o posicionamento do Judiciário quanto à aplicação temporal da lei, delimitando o alcance do princípio da irretroatividade em matéria contratual.

2. Breves considerações sobre a lei do distrato

Antes de 2018, o ordenamento jurídico brasileiro carecia de regras específicas sobre o distrato. Leis fundamentais do setor - como a lei 4.591/1964 (Incorporações Imobiliárias) e a lei 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urbano) - eram omissas quanto às consequências da resolução contratual. Esse vácuo normativo gerava insegurança, expondo tanto consumidores quanto incorporadoras.

A crise econômica de 2014-2015 escancarou a fragilidade do modelo. O setor produtivo passou a alegar que a ausência de parâmetros objetivos e a jurisprudência protetiva ao consumidor desestimulavam investimentos e comprometiam novos lançamentos.

Nesse contexto, o STJ exerceu papel central ao editar a súmula 543, que determinava: nos casos de distrato, a devolução dos valores pagos deveria ser imediata e integral se a culpa fosse do vendedor, ou parcial (retenção entre 10% e 25%) se o comprador fosse o desistente. O TJ/SP, pela súmula 2, reforçou que essa devolução deveria ocorrer em parcela única, vedando o parcelamento.

A lei 13.786/18 alterou profundamente essa realidade. Entre as principais inovações, destaca-se a fixação de tetos de retenção: 25% do valor pago em empreendimentos comuns e até 50% nos submetidos ao regime de patrimônio de afetação. Estabeleceu ainda prazos mais amplos para devolução - até 180 dias após o distrato ou 30 dias após a revenda da unidade - e tornou obrigatória a inclusão de quadro-resumo nos contratos, reunindo informações essenciais de forma clara e destacada.

Além disso, a lei garantiu o direito de arrependimento de sete dias para compras fora da sede da incorporadora e regulamentou o prazo de tolerância de 180 dias para entrega da obra, assegurando ao comprador a possibilidade de rescisão contratual com restituição integral e multa, ou de receber o imóvel com indenização proporcional.

A norma, porém, dividiu opiniões.

De um lado, Marcelo Tapai (2022) considerou o texto legal um retrocesso, sobretudo pela possibilidade de retenção de até 50%, o que configuraria enriquecimento sem causa (arts. 884 e 885 do CC) e afronta ao art. 51 do CDC. De outro, defensores da lei - como Olivar Vitale (2019) - argumentaram que a previsibilidade normativa era essencial para a estabilidade do mercado e redução da litigiosidade, garantindo cobertura de custos e reforçando a transparência contratual.

3. Efeitos da lei e o princípio da irretroatividade

A controvérsia mais relevante diz respeito à aplicação da lei 13.786/18 aos contratos firmados antes de sua vigência, em dezembro de 2018. Parte da doutrina sustentou a aplicação imediata da lei, sob o argumento de inexistir norma anterior que configurasse direito adquirido. Contudo, Alexandre Gomide (2019) defendem que a nova lei, ao sistematizar regras já sedimentadas na jurisprudência, reforçou o princípio da irretroatividade contratual, protegendo o ato jurídico perfeito.

O STJ consolidou entendimento inequívoco nesse sentido: a lei do distrato não retroage. Sua aplicação a contratos pretéritos violaria o art. 6º da LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que asseguram o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada.

Precedentes recentes confirmam essa orientação. O REsp 1.723.519/SP (2018/0023436-5), de relatoria da ministra Maria Isabel Gallotti, representa marco decisivo na definição dos contornos da rescisão de promessas de compra e venda. O julgamento ocorreu em 28 de agosto de 2019, com publicação no DJe de 2 de outubro de 2019. No caso, a incorporadora recorreu contra acórdão do TJ/SP favorável aos compradores que resolveram unilateralmente o contrato firmado em setembro de 2013. A Segunda Seção deu parcial provimento, fixando diretrizes com alcance para além do caso concreto.

A umas das tensões enfrentada pelo julgado é retroatividade ou não da lei 13.786/18, uma vez que o contrato objeto do recurso era anterior à sua vigência. A Segunda Seção ressalvou expressamente a inaplicabilidade retroativa da nova disciplina, em respeito ao ato jurídico perfeito e ao tempus regit actum (LINDB, art. 6º; CF, art. 5º, XXXVI). No voto-vista, o Ministro Moura Ribeiro, em seu voto-vista, explicitou formalmente essa limitação temporal, ressalvando que o entendimento adotado somente tem aplicação aos contratos firmados antes do início de vigência da lei 13.786/18. Esta ressalva não é meramente protocolar, mas constitui afirmação de princípios estruturantes do ordenamento jurídico. A estabilidade das relações contratuais depende fundamentalmente da previsibilidade quanto às regras aplicáveis, e permitir a retroação de normas que alterem substancialmente o regime de extinção contratual comprometeria a confiança legítima depositada pelas partes no momento da contratação.

Há, neste contexto, um fenômeno jurídico particularmente fascinante que merece destaque neste julgamento do STJ. A lei do distrato incorporou ao direito positivo diversos parâmetros que o STJ já havia consolidado jurisprudencialmente com base na aplicação do CDC. A ministra Gallotti observou que a nova lei adotou precisamente o percentual de 25% como limite para a cláusula penal, podendo chegar a 50% no regime de patrimônio de afetação, exatamente os parâmetros que a jurisprudência já aplicava aos contratos anteriores. Este diálogo entre jurisprudência e legislação suscita reflexão relevante: a lei nova confirmou a correção da construção jurisprudencial prévia ou simplesmente positivou uma solução que já se mostrava equilibrada e adequada na prática dos tribunais? A resposta parece indicar que o legislador validou o trabalho interpretativo realizado pelo Judiciário, transformando em norma escrita aquilo que a experiência jurisprudencial demonstrou ser o ponto de equilíbrio adequado entre os interesses contrapostos.

Este julgamento cristaliza entendimentos essenciais que orientarão a aplicação do direito em inúmeros casos futuros. Para contratos celebrados antes da vigência da lei 13.786/18, aplica-se integralmente o regime jurisprudencial consolidado pelo STJ, com retenção de 25% dos valores pagos e incidência de juros moratórios apenas a partir do trânsito em julgado.

Em termos dogmáticos, o acórdão evidencia um diálogo entre jurisprudência e legislação: a lei posterior positivou parâmetros já sedimentados pela jurisprudência - sobretudo a retenção de 25% (e até 50% no patrimônio de afetação) -, validando a construção pretoriana como ponto de equilíbrio entre eficiência contratual e tutela do consumidor.

O STJ, nos Temas repetitivos 970, 971 e 1.002, fixou a mesma diretriz. No Tema 1.002, o ministro Luis Felipe Salomão destacou que a aplicação automática da nova lei geraria “surpresas jurídicas” e comprometeria a previsibilidade contratual (BRASIL, 2019a; 2019b).

Dessa forma, distratos relativos a contratos firmados antes de dezembro de 2018 devem ser julgados sob a jurisprudência então vigente. Mesmo que a rescisão ocorra posteriormente, o regime aplicável é o da data de celebração, não o da resolução.

4. Conclusão

A irretroatividade da lei 13.786/18 constitui princípio inafastável na interpretação dos distratos imobiliários. O art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal é cristalino ao dispor que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Ao reafirmar esse postulado, o STJ atua como guardião da segurança jurídica, assegurando estabilidade e previsibilidade às relações contratuais.

A lei do distrato, embora inovadora e necessária, não tem o condão de atingir contratos pretéritos; contudo, sua estrutura sistemática e seu vocabulário normativo influenciam a hermenêutica judicial, servindo de guia para interpretações equilibradas entre os interesses do mercado e a tutela do consumidor.

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Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 jun. 2025.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm.

BRASIL. Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias.

BRASIL. Lei nº 13.786, de 18 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13786.htm.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.723.519/SP (2018/0023436-5). Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. Segunda Seção. Julgado em 28 ago. 2019. DJe 02 out. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.740.911/DF (Tema 1.002). Julgado em 14 ago. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. ED-Ag 1.138.183/PE. Segunda Seção. DJe 04 out. 2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.498.484/DF. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. 3ª Turma. Julgado em 22 mai. 2019. DJe 10 jun. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.631.485/DF. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. 3ª Turma. Julgado em 22 mai. 2019. DJe 25 jun. 2019.

EXAME. De cada 100 imóveis vendidos, 41 foram devolvidos em 2015. Disponível em: https://exame.com/negocios/de-cada-100-imoveis-vendidos-41-foram-devolvidos-as-construtoras-em-2015/. Acesso em: 14 jun. 2025.

GOMIDE, Alexandre Junqueira. Distrato Imobiliário: análise da Lei nº 13.786/2018 e sua aplicação prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

TAPAI, Marcelo de A. Direito Imobiliário. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book.

VITALE, Olivar (org.). Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

Fernanda Vivacqua Vieira
Advogada Imobiliária e Professora de Direito. Mestre em Cognição e Linguagem(UENF). Pós-graduada em Direito Imobiliário e Notarial (PUCPR). Pós-Graduada em Processo Civil(UCAM).

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