Eis o retrato da sociedade atual: a visibilidade se tornou critério de existência. O indivíduo contemporâneo não se limita a comunicar, ele se exibe. A imagem de si passa a depender do olhar do outro e, como se extrai do entendimento lacaniano, o desejo humano se constitui a partir do desejo alheio.
Em outras palavras, é no reconhecimento externo que o sujeito busca validação e sentido do seu próprio existir. Esse mecanismo, antes restrito às relações interpessoais, hoje é amplificado pelas redes sociais, que funcionam como espelhos digitais permanentes. Mostrar-se - e mostrar o outro - tornou-se estratégia de afirmação, poder e pertencimento.
Aqui, portanto, atentos leitores, explica-se o título: É entre esse “espelho social” da exposição e o “código jurídico” (compreendido como o conjuntos de normas com a finalidade protetiva) que guarnece a intimidade que emerge o fenômeno do exposed: a divulgação pública de conteúdos privados sem consentimento. Mais que isso: uma parcela da sociedade que “normalizou” essa cultura e (talvez) não saiba que esteja praticando múltiplos crimes.
Com efeito, este é um ponto de tensão entre a cultura da transparência absoluta e os limites normativos da dignidade. De um lado, a lógica da visibilidade ilimitada; de outro, a necessidade de contenção jurídica. A pergunta, portanto, é inevitável: quando a exibição do íntimo pode ser vista como expressão legítima e quando atravessa a fronteira do injusto penal?
A cultura digital dissolveu a fronteira entre o que é público e o que é íntimo. A exposição se converteu em linguagem, e o ato de tornar visível passou a equivaler ao de existir. Nesse contexto, o fenômeno conhecido como exposed - a divulgação de conversas, áudios, imagens ou vídeos de natureza privada sem o consentimento da outra parte - emancipou-se como uma das faces mais emblemáticas da sociedade da transparência.
O gesto de expor tornou-se, paradoxalmente, meio de defesa e de ataque, forma de expressão e instrumento de destruição. Mas, no plano jurídico, essa exibição sem consentimento é apenas uma imoralidade social ou já configura delito? A resposta, mais do que tipológica, exige uma leitura pela teoria finalista da ação (a que é aplicada no Brasil), que devolve à conduta o seu conteúdo ético: o agir humano como exercício consciente de liberdade orientada a um fim.
1. A ação e o fim: O ponto de partida do finalismo
No finalismo, a ação não é um mero movimento físico, mas uma conduta dirigida a um propósito (esta, talvez, tenha sido uma das mais valiosas contribuições de Welzel - compreender que o agir humano, no mais das vezes, é dotado de consciência e vontade). O que define o agir é o sentido teleológico que o anima. Quando alguém divulga conversas íntimas, há sempre um fim visado (dos mais variados: vingança, humilhação, provar inocência, obtenção de apoio, denuncia, etc.).
A compreensão penal não pode, portanto, limitar-se ao efeito externo da conduta, mas deve alcançar o propósito que a orienta. É esse elemento volitivo que diferencia a comunicação legítima da agressão simbólica. No exposed, a finalidade escolhida pelo agente não apenas pode revelar o dolo, mas, também, modelar o próprio desvalor da ação.
Se a exposição é feita para infligir vergonha, a finalidade é destrutiva; se busca apenas defesa legítima, há tensão entre liberdade de expressão e tutela da intimidade. O Direito Penal, nesse contexto, é convocado a distinguir o exercício da palavra como direito da palavra como uma espécie de “arma”.
2. Fato típico: A teleologia da exposição
A conduta de divulgar conteúdo privado (excepcionando-se o agir desastroso - a culpa) é, por definição, uma ação finalisticamente orientada. O agente sabe o que faz e para que faz. A divulgação rompe o estado de reserva e transforma o conteúdo íntimo em objeto público, produzindo a lesão imediata à privacidade e à dignidade da vítima.
O dolo, no finalismo, não é apenas conhecimento do resultado, mas vontade dirigida ao fim. Por isso, o exposed não depende de animus de lucro ou de dolo específico de causar sofrimento; basta que o agente, ciente do caráter íntimo do material, o torne público para satisfazer uma finalidade pessoal.
A própria cultura digital acentua a consciência do resultado. Ao postar uma conversa, o sujeito sabe que a mensagem não se perderá no silêncio: será amplificada, compartilhada, replicada. O nexo finalístico é claro - não há acidente nem impulso cego, mas escolha consciente de tornar o outro visível à custa da sua reserva.
Há, aqui, uma dimensão ética anterior ao tipo penal: o “uso do outro como meio”. Inspirada na segunda formulação do imperativo categórico kantiano, essa ideia revela que quem expõe o íntimo de outrem para satisfazer um propósito instrumental reduz a pessoa à condição de coisa, negando-lhe o estatuto de fim em si mesma. No plano penal, essa objetificação do outro traduz o desvalor ético da ação, fundamento último da ilicitude.
3. Confronto com os tipos penais possíveis
A ação de expor sem consentimento pode se manifestar em múltiplas figuras típicas, cada uma correspondendo ao bem jurídico que se pretende proteger. Significa dizer que esse agir pode desvelar, numa primeira análise, o tipo de divulgação de segredo (art. 153 do CP).
Quando, em hipótese, o agente divulga conteúdo confidencial obtido legitimamente. No finalismo, o dolo consiste na vontade consciente de romper o sigilo. A ilicitude surge do desvio da finalidade inicial da comunicação, de modo que o que foi dito sob confiança é transformado em espetáculo público.
De outro modo, a conduta também pode representar o tipo de divulgação não consentida de cenas de nudez ou ato sexual (art. 218-C do CP). Nesta hipótese, a exposição envolveria imagens eróticas e o dolo é direcionado à violação da autodeterminação sexual. O fim aqui é humilhar ou degradar, o que revela um agir doloso intensificado pela motivação.
É possível, ainda, retratar um situação de difamação e injúria (arts. 139 e 140 do CP), na situações em que o conteúdo divulgado não necessariamente é sigiloso e nem é crime, mas é utilizado para atingir a reputação, a finalidade de expor converte-se em dolo de ofender. No universo digital, onde a difusão é instantânea, o desvalor da ação se multiplica. A palavra, que deveria ser instrumento de comunicação, torna-se vetor de destruição da imagem alheia.
Não menos importante e, talvez, com muita frequência, a prática do exposed caracterize o delito de ameaça (art. 147 do CP), transmudando aquele agirem uma instrumentalização do medo da exposição.
O exposed não se limita ao ato consumado de divulgarem-se conversas íntimas. Em muitos casos, a simples promessa de tornar público determinado conteúdo já funciona como mecanismo de intimidação. A estrutura típica da ameaça exige apenas a promessa de causar “mal injusto e grave”, e nada impede que esse mal seja de natureza moral, social ou reputacional.
Dizer “vou publicar tudo”, “vou destruir sua imagem” ou “se você não fizer o que eu quero, todos saberão quem você é” constitui forma clara de coação psicológica, direcionada a provocar medo ou submissão.
Sob a ótica finalista, a ameaça não depende de o agente realmente ter a intenção de cumprir o prometido, mas de utilizar a perspectiva do mal como meio de constranger a vítima.
O dolo consiste na vontade de intimidar, e isso se verifica com ainda mais nitidez no ambiente digital, em que a exposição pública tem efeito devastador. O mal prometido é grave porque atinge bens como reputação, dignidade, relações familiares, vida profissional e estabilidade emocional. Nessa modalidade, a intimidade do outro deixa de ser apenas violada: ela se converte em “arma”.
Mais do que configurar um crime autônomo, a ameaça revela um estágio anterior e mais sofisticado do próprio exposed. O agente se coloca como detentor da honra e da privacidade alheias, assumindo a posição de controlador do que pode ou não ser revelado.
A vítima, por sua vez, passa a viver sob uma condição de refém, na expectativa permanente da exposição. Não se trata apenas de medo do conteúdo em si, mas da destruição simbólica que ele representa. O silêncio deixa de ser escolha e se torna submissão.
Há, aqui, uma dimensão filosófica que agrava o desvalor da ação. Se expor o outro já é uma forma de instrumentalizá-lo, ameaçar expô-lo é um passo além: é transformar a intimidade em moeda de troca e a vulnerabilidade em ferramenta de dominação. O sujeito não é apenas reduzido a meio, mas mantido em cativeiro emocional. Ameaçar com exposed é governar pelo medo, utilizando a visibilidade como forma de poder. Nessa perspectiva, o finalismo evidencia que a ameaça não é mero prelúdio do delito - ela já representa, em si, a essência do desvalor finalístico da conduta.
Outrossim, é possível também, última análise, falar-se em crime de Invasão de dispositivo informático (art. 154-A do CP), nas circunstâncias em que a informação é obtida de forma ilícita e o dolo dirige-se a acessar e divulgar sem autorização o conteúdo obtido. O exposed pode, assim, englobar uma cadeia de condutas - invasão, coleta e divulgação - unidas por um mesmo fim: tornar público o que é privado. A unidade teleológica confere unidade ao injusto.
Em todos esses casos, o denominador comum é o fim volitivo: a decisão de instrumentalizar a intimidade alheia como meio de atingir um propósito, ilícito. A tipicidade, portanto, não se esgota no ato, mas se define e materializa pela intenção que o orienta.
4. Antijuridicidade e os limites do exercício de direito
Aqui, necessariamente, cabe um contraponto: nem toda exposição é ilícita. Há situações em que a divulgação pode ser meio legítimo de defesa (por exemplo, quando alguém torna pública uma conversa para demonstrar inexistência de crime ou rebater falsa acusação).
No entanto, o finalismo exige que a relação entre meio e fim seja necessária e proporcional (típico das excludentes que agem na antijuridicidade). Se o objetivo é provar um fato, bastaria apresentar o conteúdo às autoridades, e não torná-lo “viral” nas redes. O excesso retira a legitimidade do fim e reintroduz a ilicitude (este é o ponto que, a muitos, parece não ser palatável).
Aliás, é o próprio CP que reza que “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite” é crime (Art. 345 do CP).
Se quer dizer que, mesmo havendo legítima razão para se expor um conteúdo íntimo com intuito de se esclarecer um fato ou defender-se, os meios escolhidos precisam ser proporcionais e necessários. O CP não autoriza, via de regra, se fazer “justiça pelas próprias mãos”).
A exclusão da antijuridicidade depende, portanto, de um nexo racional entre a finalidade legítima e o grau de exposição. Quando o meio escolhido ultrapassa o necessário, a ação deixa de ser exercício de direito e converte-se em abuso. É o velho princípio ético segundo o qual o fim não justifica o meio - e o meio pode, por si só, corromper o valor do fim.
5. Culpabilidade e a falha da prudência
A culpabilidade, no finalismo, é reprovação pela utilização indevida da liberdade. O agente do exposed, desde que seja imputável, conhece o caráter privado do conteúdo e age com plena consciência da repercussão que sua conduta terá.
Ocorre que a era digital é o território do impulso. As emoções são publicadas antes de serem pensadas. A ausência de prudência não elimina a consciência da ilicitude, mas a fragiliza. O sujeito acredita agir em uma espécie de “legítima defesa moral”, quando, em verdade, repete o gesto de ofender que o vitimou.
Existe aqui um erro de proibição típico da vida em rede: a confusão entre “direito de falar” e “direito de expor”. O primeiro é expressão da liberdade; o segundo é forma de dominação. A culpabilidade reside justamente nessa distorção da liberdade - o uso da palavra não como diálogo, mas como vingança.
6. Limites da intervenção penal
O Direito Penal não pode ser convocado a punir toda falta de civilidade digital. A criminalização deve ser o último recurso, reservada aos casos em que a exposição destrói bens jurídicos essenciais dignidade, honra, intimidade, por exemplos (mas não restrito a estes).
A banalização do exposed não autoriza o inverso: a banalização do crime. É preciso distinguir entre a exposição que busca esclarecer e aquela que busca destruir. O critério finalista oferece essa medida: a ação só é penalmente relevante quando o fim escolhido é incompatível com a dignidade do outro.
O perigo de ampliar o alcance penal é transformar o Direito em moral pública e o juiz em árbitro de ressentimentos. O Direito deve conter o abuso, não substituir o diálogo. O excesso punitivo gera o mesmo efeito que pretende evitar: a violência simbólica legitimada pelo Estado.
7. Conclusão - A intimidade como último reduto da liberdade
O exposed é um espelho dos atuais tempos: uma sociedade que confunde transparência com verdade e exposição com justiça. Sob a ótica finalista, quem divulga o íntimo de outrem sem consentimento age com dolo dirigido à instrumentalização da pessoa, rompendo o núcleo ético da convivência humana.
A ilicitude se configura quando o meio escolhido (a exposição) ultrapassa o necessário para o fim legítimo e converte o outro em objeto. O dolo revela-se na escolha deliberada de tornar o privado público; a culpabilidade, na indiferença pelo dano que essa escolha provoca.
O Direito Penal deve intervir, mas com prudência: não para domesticar o espaço digital, e sim para preservar o que nele ainda resta de humano. Em tempos em que tudo se mostra, a intimidade permanece o último reduto da liberdade. Proteger esse espaço é proteger o próprio sentido de ser sujeito -alguém que tem o direito de existir sem ser exibido.