Migalhas de Peso

O PL 4.698/25 e a extinção do cartão de crédito consignado

Comentário sobre iniciativa de lei que extingue o cartão de crédito consignado.

16/10/2025

Tramita na Câmara dos Deputados o PL 4.698/25, de autoria da deputada Gisela Simone, propondo a extinção do controvertido ‘cartão de crédito consignado’ pelas instituições financeiras. De antemão, cumpre a nós estudiosos da disciplina de Direito do Consumidor enaltecer a brilhante iniciativa da ilustre parlamentar, que muito contribui para afirmação ética das relações jurídicas contratuais e negociais de consumo.1

Necessário, para tanto, análise crítica quanto ao destacado e responsivo projeto de lei que se junta à atualização do CDC no que respeita o superendividamento.

O superendividamento é fenômeno crescente no Brasil e no mundo, caracterizado pela incapacidade do consumidor em arcar com as dívidas sem comprometer o ‘mínimo existencial’.2 Tal situação, além de afetar diretamente a vida financeira da pessoa, é vetor de exclusão social, pois dificulta o acesso a serviços básicos, prejudica relações familiares, limita oportunidades profissionais e, reflexamente, abala a macroeconomia.

A lei 14.181/21, fruto de intensos debates e longo trâmite pelo Congresso Nacional, objetivando a promoção de valores fundamentais (com destaque ao mínimo existencial e vedação à exclusão social), ancorada no princípio da boa-fé objetiva, preocupou-se em garantir o adimplemento pelo consumidor superendividado, entretanto mediante processo de repactuação das dívidas (tratamento), salvando-o da ruína pessoal e capacitando-o ao ‘direito do recomeço’.3 Igualmente, também se valeu da inscrição normativa de medidas preventivas para impedir e imunizar as pessoas tornarem-se superendividadas, mediante a prática do chamado crédito responsável.4

A lei do superendividamento, que atualizou o CDC, passou a viger em 2/7/21, época marcada pela pandemia SARS-COVID-19 em que o número de inadimplentes era de 62,56 milhões5, quando a ‘situação de superendividado’ atingia 30 milhões de pessoas.6 Passados quatro anos, em 2025 são anunciados no Brasil 76,6 milhões de endividados.7 Esse cenário autoriza estimar hoje mais de 50 milhões de pessoas nesta condição social.

As dificuldades que lei 14.181/21 encontra na aplicabilidade para redução desta hipérbole quantitativa em ascensão não são valorativas e nem mesmo dispositivas: são institucionais. Os dois decretos emitidos pelo governo Federal (11.150/22 e 11.567/23), já impugnados no STF, são nítidas notas de descaso com tema tão sensível e ao mesmo tempo avassalador. Ao seu tempo, muitos tribunais ainda se interessam minimamente ao tema, olvidando adaptação à legislação protetiva, muito embora laborem com proatividade na conhecida lei de recuperação judicial.

O ‘tratamento’ do superendividado mesmo que caracterize ‘processualidade singular’ previu acolhimento, cuidado, participação global, esgotamento de tratativas consensuais entre credores e consumidor (fase conciliatória) para, a partir de eventual insucesso, permitir a ação por superendividamento (fase judicial). Portanto, a ideia não é a litigiosidade, senão o ajustamento e a concórdia e quanto mais as instituições fecharem os olhos às transações o número de ações aumentará.8

Entretanto, é no plano da ‘prevenção’ outro gargalo. As instituições financeiras são as que menos colaboram para a prática do ‘crédito responsável’, tanto nos termos da lei do superendividamento, quanto em atenção às normas regulamentares do Banco Central.

Remarque-se que ditas instituições são agentes de mercado centrais na concessão de crédito e, por corolário, na prevenção ao superendividamento da pessoa natural. Vale dizer: justamente nelas que as medidas preventivas devem ser ‘iniciadas’ e produzir os efeitos (efetividade) impostos pela legislação aplicável (art. 54-D, inciso II da lei 14.181/21). 

O crédito responsável pressupõe análise rigorosa da capacidade de pagamento do consumidor, transparência nas condições contratuais e oferta de produtos financeiros adequados à realidade de cada consumidor. Evidente que boas práticas e, fundamentalmente, a atuação conforme a boa-fé objetiva qualificada contribui para mitigar riscos de inadimplência e para a promoção da inclusão financeira sustentável, evitando que o crédito seja instrumento de exclusão social.9

No Brasil, a oferta de crédito é frequentemente marcada pela trivialidade na contratação, especialmente em meios digitais e modalidades como o consignado, que utiliza o desconto direto em folha de pagamento do consumidor para maior ‘segurança jurídica’ do credor. Apesar do indiscutível potencial de acesso facilitado, os deveres de cuidado e cooperação cabem de forma redobrada nos termos do CDC, especialmente quando se trata de grupos vulnerabilizados, como idosos, pessoas com deficiência, beneficiados por programas de transferência de renda, mulheres em situação de violência doméstica ou abandono etc.

Dentre as práticas que mais fustigam o conceito jurídico de crédito responsável destacam-se os chamados ‘cartões de crédito consignado’, reconhecidamente modelo mais agressivo do mercado financeiro pelas taxas de juros elevadas e notória ausência de informações quando da concessão, representando, nos termos da autorizada doutrina, verdadeira “prisão para o consumidor”.10

Destinado principalmente a aposentados, pensionistas e servidores públicos, o cartão de crédito consignado há tempos tem sido alvo de críticas devido à cobrança de juros, que pode superar 80% ao ano. A ausência de transparência sobre os custos totais do crédito e dos juros, expõe consumidores vulneráveis a riscos de endividamento excessivo, quando mais precisam para atendimento de despesas de alimentação, moradia, farmácia, saúde, transporte etc. Muitas vezes, o limite do cartão é utilizado para saque, com taxas ainda mais elevadas, configurando verdadeira ‘armadilha financeira’ para quem já possui orçamento restrito.

Ademais, práticas abusivas de venda, como ofertas agressivas em plataformas digitais e ausências de orientação adequada, intensificam o problema. O resultado é o aumento do número de consumidores superendividados, que perdem o controle sobre a vida financeira e ficam sujeitos à exclusão social.

Soma-se a isso, a advertência de que nos ‘cartões de crédito consignado’ o desconto na folha de pagamento se dará consoante a parcela mínima de pagamento da fatura mensal, deixando o residual na rotatividade à mercê dos encargos excessivos do mercado financeiro. De ver, com tranquilidade, que se trata de crédito nocivo e atentatório, já que a taxa é superior ao do crédito consignado convencional.11

Como o percentual abatido mensalmente, via reserva de margem consignável é insuficiente para reduzir a dívida principal, o valor inicialmente contratado mensalmente passa a ser acrescido de encargos elevados. Portanto, verdadeira operação automática de refinanciamento em marcha contínua, já não acobertada pela política pública que ensejou essa modalidade, trancafiando o consumidor numa cadeia deletéria de sucessivas dívidas.  

Não à toa a apresentação, na Câmara dos Deputados pela nobre deputada Gisela Simone, do PL 4.698/25 propondo a extinção desta modalidade. A proposta legislativa detalha, em seus artigos, a revogação da autorização para instituições financeiras oferecerem esse tipo de contratação, justificando que a modalidade tem “elevados encargos financeiros e potencial de superendividamento”.

São quatro as ‘intencionalidades normativas’. A primeira (art. 1º), constitui norma proibitiva na medida em que veda a concessão de crédito consignado por meio de cartão de crédito, proscrevendo novas contratações e estabelecendo prazo para encerramento das operações vigentes. A segunda (art. 2º), impõe dever de informação às instituições financeiras sobre o encerramento dessa modalidade e os necessários procedimentos para quitação dos débitos existentes, com clara preservação da boa-fé objetiva (CDC, art. 4º, inc. III). A terceira (art. 3º), estabelece sanções pelo descumprimento das disposições anteriores, incluindo multas e restrições operacionais, acompanhando o Direito Administrativo sancionador das relações consumeristas (CDC, art. 57 e segs.). Por fim, a quarta (art. 4º), fixa disposições transitórias quanto aos contratos em curso, facultando somente ao consumidor o direito de conversão do cartão de crédito consignado em empréstimo consignado, com todas as informações necessárias.

A causa fulcral da iniciativa reside no combate aos abusos praticados por meio dos cartões de crédito consignado, inclusive disfarçados nesta modalidade12, que apresentam taxas de juros significativamente superiores às demais linhas de crédito consignado, sem que haja a devida transparência, assim como o dever de oportunização (CDC, art. 46). A proposta ressalta ainda a necessidade de preservar a renda mínima do consumidor e prevenção ao superendividamento, em consonância com os princípios da boa-fé objetiva, da transparência e da dignidade da pessoa humana.

É relevante também perceber que o projeto de lei se vale dos precedentes13 dos tribunais que efetivamente têm reconhecido os meandros opressivos e excludentes desta modalidade de crédito.14

Os impactos da proposta são amplos. Para consumidores, porque se projeta maior proteção contra práticas abusivas, redução de casos de superendividamento e incentivo ao uso responsável do crédito. Para instituições financeiras, na medida em que exigirá a readequação dos produtos ofertados, bem como esforços para aprimorar a transparência e responsabilidade na concessão de crédito. Para a sociedade, porque a prevenção ao superendividamento contribui para a diminuição da exclusão social, fortalecimento da cidadania e promoção de ambiente financeiro mais saudável.

Apenas a título de colaboração, no referido projeto em trâmite poderia constar o ‘direito de arrependimento’ do vulnerável quanto à celebração de crédito consignado, que era proposta original no PL 3.515/15, base da lei de superendividamento, aumentando a carga protetiva ao consumidor.

O PL 4.698/25 é essencial e vital às relações de consumo de crédito, pelo que insistimos aos senhores congressistas pela aprovação da iniciativa. Representa claro avanço na proteção do consumidor brasileiro, reforçando o compromisso com a ‘cultura do crédito responsável’ e educação financeira.

_______________

1 Proposto em 22-09-2025 com a seguinte ementa: “Extingue a modalidade de crédito consignado na forma de cartão de crédito, altera a Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2003, e a Lei nº 14.431, de 3 de agosto de 2022, e dá outras providências”.

2 MIRAGEM, Bruno; MARTINS, Fernando Rodrigues Martins. Proposta de regulamentação do CDC por Decreto Presidencial - Mínimo Existencial. Revista de Direito do Consumidor. v. 139, p. 409-414.

3 LIMA, Clarissa Costa. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

4 MARQUES, Claudia Lima. Algumas perguntas e respostas sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores pessoas físicas. In: Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 563 – 593. 

5 https://www.serasa.com.br/assets/cms/2021/Mapa-de-Inadimple%CC%82ncia-no-Brasil.pdf. Acesso em 05-10-2025.

6 https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/consumidor/defesadoconsumidor/Biblioteca. Acesso em 06-10-2025.

7 https://www.serasa.com.br/limpa-nome-online/blog/mapa-da-inadimplencia-e-renogociacao-de-dividas-no-brasil/. Consulta em 05-10-2025.

8https://valorinveste.globo.com/objetivo/organize-as-contas/noticia/2025/10/02/acoes-judiciais-por-superendividamento-disparam-8530percent-desde-2021-setor-financeiro-lidera.ghtml. Com acesso em 06-10-2025.

9 MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Deveres e responsabilidade no tratamento e na promoção do consumidor superendividado. In: Revista do Ministério Público Brasileiro. Ano 1, número 01. http://revista.cdemp.org.br/index.php/revista/article/view/16/3. Acesso em 03-10-2025.

10 Lima, Clarissa Costa de; Cavallazzi, Rosangela Lunardelli. O retrocesso desmedido da Medida Provisória 1.106, de 17 de março de 2022, e a precarização da proteção do consumidor idoso. Revista de Direito do Consumidor. vol. 141. ano 31. p. 437-442. São Paulo: Ed. RT, mai./jun. 2022

11https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-09/juros-do-cartao-de-credito-rotativo-avancam-e-chegam-4515-ao-ano, com acesso em 03-10-2025. Neste sentido: GONÇALVES, Milton Rodrigo. A interpretação dos negócios jurídicos à luz da boa-fé: as operações de saque via cartão de crédito consignado efetivado por consumidores hipervulneráveis, no período aprimorado posterior à edição da Lei 13.172/2015 .In: Revista do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania. Londrina, v. 4, n. 1, 2019.

12 Consta da justificativa: “Outro aspecto relevante é a frequente ausência de informação clara e adequada ao consumidor. Muitos contratos são apresentados como se fossem de empréstimo pessoal, quando na realidade se trata de cartão de crédito com desconto automático, em violação ao dever de informação previsto no art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990)”.

13 STJ. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 1936495-RS. CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO. ERRO AO CONTRATAR. REVISÃO. INTERPRETAÇÃO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS. REEXAME DE PROVAS. SÚMULAS 5 E 7/STJ. 1. O Tribunal de origem concluiu, diante do quadro probatório, que o autor foi induzido a erro pelo banco a aderir a um contrato de cartão de crédito consignado e que a instituição financeira obteve vantagem exagerada em detrimento do consumidor ao descontar as parcelas para pagamento mínimo. Rever o entendimento firmado no acórdão recorrido demandaria interpretação de cláusula contratual e reexame de provas, providências vedadas nos termos das Súmulas 5 e 7/STJ. Precedentes. 2. Agravo interno não provido.

14 É do PL 4.698-2025 a menção à jurisprudência: “É abusiva a contratação de cartão de crédito consignado sem a devida ciência do consumidor, especialmente quando os valores são descontados diretamente de seus proventos, configurando violação ao princípio da boa-fé objetiva e ao dever de informação.” (TJSP, Apelação Cível nº 101XXXX-XX.2023.8.26.0000).

Fernando Rodrigues Martins
Mestre e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP. Professor adjunto na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Procurador de Justiça em Minas Gerais.

Claudia Lima Marques
Professora Titular da Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). Presidente da IACL (International Association of Consumer Law e do ILA (Committee on International Protection of Consumers), Londres. Professora permanente do PPGD UFRGS e da Uninove. Pesquisadora 1 A do CNPq e membro do CA Direito. Advogada.

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