1. O Ministério Público é parte, não fiscal da lei
O art. 129, inciso I, da CF/88 é expresso ao atribuir ao Ministério Público a função de promover a ação penal pública, e não de fiscal da lei em matéria penal. Não há, na ordem constitucional vigente, espaço para um órgão que acusa também “fiscalizar” a legalidade do processo em que ele próprio atua como parte interessada.
No modelo acusatório - assumido expressamente pela Constituição - a imparcialidade é atributo exclusivo do juiz Ministério Público e defesa ocupam polos opostos e paritários. Permitir que o MP emita parecer ou se manifeste como se fosse um terceiro desinteressado é admitir, inconstitucionalmente, um órgão com função híbrida: parte e pseudo-fiscal.
2. Um resquício autoritário: O decreto-lei 552/1969
A exigência histórica de manifestação do MP em habeas corpus decorre do decreto-lei 552/1969, editado sob a égide do regime militar. Naquele contexto, o MP era peça do aparato repressivo estatal e sua intervenção nos pedidos de liberdade possuía finalidade inequívoca: restringir a eficácia do habeas corpus, instrumento que representava ameaça ao poder autoritário.
Com a CF/88 - que elevou o habeas corpus à condição de direito fundamental (art. 5º, LXVIII) - não há lugar para intervenções institucionais que não sejam estritamente necessárias à garantia de direitos. O MP, no novo desenho constitucional, deixou de ser fiscal da lei no processo penal para assumir a função inequívoca de parte acusadora.
3. A não recepção constitucional dos “custos legis” penal
A figura dos custos legis em matéria penal não foi recepcionada pela CF/88. O decreto-lei 552/1969 é frontalmente incompatível com:
- Sistema acusatório (art. 129, I, CF);
- Devido processo legal e paridade de armas (art. 5º, LIV e LV, CF);
- Indivisibilidade do Ministério Público (LC 75/93).
O mesmo órgão que acusa não pode, simultaneamente, emitir parecer “imparcial” sobre recursos relativos à sua própria atuação. Isso implica uma dupla voz institucional, criando um desequilíbrio processual insustentável e nocivo à defesa.
4. A duplicidade institucional e o custo público
Nos tribunais, cada câmara criminal conta com um membro do Ministério Público designado para emitir parecer e sustentar oralmente - muitas vezes, em processos já impulsionados pelo próprio MP de primeiro grau. Ou seja, o Estado mantém dois MPs sobre o mesmo caso: um que recorre e outro que opina sobre o recurso.
5. Dois MPs pelo preço de um - e o contribuinte paga
Essa duplicidade não agrega qualidade jurídica. Ao contrário, onera os cofres públicos com estruturas redundantes e viola o princípio da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF). É um luxo institucional disfarçado de tradição.
Mais grave: a manifestação opinativa em habeas corpus, ação autônoma de impugnação que protege a liberdade, persiste por força de um decreto autoritário que a Constituição já sepultou. Cada parecer ministerial em HC é um ato inconstitucional travestido de formalidade.
6. Conclusão
A controvérsia aqui exposta não é meramente acadêmica. Trata-se de tema constitucional e de responsabilidade institucional - com reflexos diretos na eficiência fiscal do Estado. A CF/88 reconfigurou profundamente o Ministério Público, conferindo-lhe autonomia, independência funcional e a função privativa de promover a ação penal pública e exercer o controle externo da atividade policial. Nesse novo paradigma, não há espaço para a antiga figura dos custos legis no processo penal.
A manutenção da atuação opinativa do Ministério Público em habeas corpus e recursos criminais - especialmente como parecerista em causas nas quais é parte direta - é prática incompatível com o sistema acusatório constitucional. Trata-se de um anacronismo que viola a paridade de armas, subverte o devido processo legal e perpetua estruturas onerosas e redundantes no Poder Judiciário.
É urgente que o STF e o CNJ enfrentem essa distorção histórica. A Constituição já proclamou: no processo penal, o Ministério Público é parte - não fiscal da lei. E em ações que versam sobre liberdade, como o habeas corpus, cabe sempre à defesa a última palavra, em respeito ao núcleo essencial do Estado Democrático de Direito.