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A imputação penal entre norma, regra e consenso

Neste artigo, dicuto a intersubjetividade como condição de validade no Direito Penal contemporâneo.

21/10/2025

A teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas apresenta uma via instigante para repensar os fundamentos da imputação penal. Nela, o agir humano só adquire sentido pleno quando compreendido como resultado de um processo comunicativo que exige consenso intersubjetivo. Nesse modelo, a norma não é imposta de fora, como produto de autoridade ou tradição, mas nasce da linguagem, da interação entre sujeitos que, juntos, negociam expectativas e compreendem mutuamente as regras do jogo social.

Trata-se, portanto, de uma mudança de paradigma. Habermas não concebe a norma como uma imposição unilateral. Para ele, a regra só vigora quando é aceita contrafaticamente, ou seja, mesmo que negada, continua válida dentro da comunidade de interlocutores. Essa validade se estrutura sobre quatro pretensões fundamentais da linguagem: (1) compreensibilidade, (2) verdade, (3) correção normativa e (4) veracidade. A norma penal, para ser legítima, precisa atender a essas condições.

No campo da imputação penal, essa teoria gera consequências estruturais. Para que um sujeito seja imputado por violar uma norma, é necessário demonstrar que ele fazia parte da comunidade que a reconhecia como válida. É o que Habermas descreve como “observância da norma”, ou Befolgung: não basta prever o sucesso de uma conduta, é preciso que o sujeito compreenda que há uma expectativa compartilhada de que ele se comporte de determinada forma. E essa expectativa é comunicada pelo Direito.

É nesse ponto que Habermas resgata e desenvolve a tese wittgensteiniana da impossibilidade de seguir uma regra em privado. Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein sustenta que seguir uma regra é uma prática social, e não uma atividade interior ou subjetiva. Habermas aprofunda essa concepção, afirmando que a validade de uma regra depende de sua aceitação pública, e é nesse espaço que nasce o Direito Penal legítimo.

Esse raciocínio conduz a um deslocamento da imputação penal da interioridade psíquica para a esfera da normatividade intersubjetiva. Em vez de buscar indícios obscuros de vontade ou representação subjetiva, como se faz com frequência no modelo do dolo eventual, é preciso verificar se a conduta rompeu de forma consciente e reprovável um padrão normativo aceito pela coletividade. O dolo, nesse novo modelo, deixa de ser uma categoria psicológica fechada e passa a ser interpretado como uma violação crítica de uma norma cuja validade era compartilhada e compreendida.

Essa reconstrução aponta para um modelo de imputação penal baseado no consenso normativo e no seguimento de regras. Uma regra só pode ser seguida se puder ser observada, criticada, corrigida. Habermas afirma que a regra deve vigorar contrafaticamente, o que significa que ela continua válida mesmo diante da recusa pontual de um de seus destinatários. Esse princípio é essencial para a lógica sancionatória do Direito Penal: a pena só se justifica se a norma violada era previsivelmente válida para quem a violou.

Há, assim, uma profunda conexão entre consenso, norma e responsabilidade. A violação penal não se caracteriza apenas por um desvio fático, mas por uma quebra do consenso intersubjetivo sobre o comportamento esperado. Por isso, não há espaço para imputações abstratas, subjetivistas ou presumidas. A imputação legítima exige que a conduta do agente possa ser julgada dentro de um quadro normativo que ele conhecia, reconhecia e sobre o qual poderia exercer crítica.

Com isso, Habermas afasta definitivamente a pretensão de um Direito Penal fundado em categorias psicológicas isoladas. O sujeito do Direito Penal habermasiano não é um ser solitário encerrado em sua consciência, mas um interlocutor ativo dentro de uma comunidade normativa. Ele age conforme ou contra expectativas comunicadas, compreendidas e pactuadas, e é por isso que pode ou não ser responsabilizado.

Essa visão se articula de maneira clara com a teoria significativa da imputação, que sustenta, entre outras premissas, que a imputação penal exige uma linguagem acessível, uma norma previamente comunicada e uma conduta que, em contexto, viole os quesitos significativos da ação penalmente relevante. O dolo, nesse modelo, não é mero produto da mente, mas resultado da quebra consciente e voluntária de uma norma intersubjetiva, compreensível e crítica. A imprudência, por sua vez, decorre do desrespeito a expectativas legítimas de cuidado, também baseadas em regras de uso social.

Em última análise, a contribuição habermasiana reside em lembrar que o Direito não pode prescindir da linguagem nem da intersubjetividade. A norma penal só adquire validade se for expressa em linguagem clara, compreendida por seus destinatários e reconhecida como justa. O seguimento das regras, conceito central em Wittgenstein e recuperado por Habermas, é o que permite distinguir o agir livre do mero comportamento, o culpável do inocente, o punível do perdoável.

Ao aplicarmos esses conceitos à imputação penal, compreendemos que nenhuma sanção será legítima se desconsiderar o processo comunicativo que antecede a própria existência da norma. Isso exige um novo modo de pensar o Direito Penal: não mais como repressão autoritária de condutas, mas como resposta racional, pública e intersubjetiva a rupturas normativas socialmente relevantes.

Habermas não oferece uma dogmática penal. Ele oferece, no entanto, a base filosófica para uma reconstrução do Direito Penal com critérios democráticos, comunicativos e racionais. E isso, no mundo contemporâneo, é o mínimo que se espera de um sistema penal justo.

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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá
Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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