Naked restraints x restrições acessórias: Como (e quando) limitar a concorrência sem violar o antitruste no Brasil
Resumo executivo. Em contratos empresariais e operações de M&A, há restrições à competição que são ilícitas por natureza (naked restraints - p.ex., fixação de preços, divisão de mercado, no-poach amplo entre concorrentes) e outras que podem ser lícitas se forem acessórias ao negócio e estritamente necessárias ao seu objetivo (ancillary restraints - p.ex., non-compete pós-fechamento em M&A, non-solicitation circunscrito, exclusividades proporcionais). A linha que separa uma da outra, à luz da lei 12.529/11 e da prática do CADE, passa por necessidade, proporcionalidade, escopo e duração.
1) Marco jurídico brasileiro
- Regra-geral: O art. 36 da lei 12.529/11 proíbe atos que tenham por objeto ou possam produzir efeitos anticompetitivos (fixação de preços, divisão de mercado, etc.).
- Sanções administrativas: Empresas podem ser multadas entre 0,1% e 20% do faturamento bruto no ramo de atividade; administradores, entre 1% e 20% da multa da empresa; demais pessoas e associações, multas fixas em faixas relevantes.
- Criminal: A fixação de preços e outras condutas típicas de cartel podem caracterizar crime pela lei 8.137/1990, com reclusão para pessoas físicas.
- Responsabilidade civil (danos): O ordenamento estimula ações de reparação, com regras processuais próprias e incentivos para coibir cartéis (inclusive indenização em dobro nesses casos).
2) Conceitos-chave para a prática
Naked restraints (proibidas por si mesmas)
São restrições sem vínculo funcional com um projeto legítimo, cuja finalidade direta é reduzir a rivalidade (ex.: conluio para preço/quantidade, divisão de clientes/territórios, no-poach amplo entre concorrentes sem relação com operação específica). Em regra, são tratadas como ilícitos por objeto, com severo risco sancionatório e, no caso de cartéis, também criminal.
Restrições acessórias (potencialmente lícitas)
São cláusulas diretamente relacionadas e necessárias à viabilização de um negócio lícito (p.ex., M&A, joint venture, distribuição), na medida do indispensável para proteger o valor transacionado (goodwill, know-how, integração). O filtro é econômico e jurídico: necessidade + proporcionalidade (objeto, escopo, tempo, geografia).
3) O que o CADE aceita na prática (pontos de referência)
- Non-compete em M&A: Costuma ser admitido como restrição acessória quando necessário para preservar o valor do ativo e limitado no tempo e escopo (produto/mercado relevante e território afetado). Há casos em que prazos de até 5 anos foram aceitos em contextos específicos e devidamente justificados.
- Troca de informações e gun jumping: A troca estritamente necessária para viabilizar a operação é possível com salvaguardas - dados agregados/defasados, clean teams, data rooms e controle de acesso - evitando consumação prévia e coordenação.
- No-poach e RH: Cresce o escrutínio sobre trocas de dados de RH e acordos de não aliciamento entre concorrentes. No-poach amplo tende a ser arriscado; já proibições pontuais e justificadas (p.ex., non-solicitation de equipes-chave com acesso a segredos industriais, por prazo curto) podem ser defensáveis como acessórias.
- Compliance antitruste: Programas efetivos, treinamentos e canais de denúncia pesam na dosimetria e em soluções negociadas (leniência, TCC). Guias e notas técnicas do CADE oferecem boas práticas e parâmetros.
4) Matriz prática: Quando uma restrição pode ser “acessória”?
Use os 4 “Ns”: Necessidade, nexo, narrow tailoring (proporcionalidade) e nível de risco.
1. Necessidade: A restrição é indispensável para viabilizar a operação ou proteger o goodwill/know-how transacionado? Há alternativa menos restritiva? Se não, risco de naked restraint.
2. Nexo funcional: A cláusula está diretamente conectada ao negócio (M&A, JV, distribuição) - e não é um acordo autônomo entre rivais?
3. Narrow tailoring (proporcionalidade):
- Objeto: Restrinja o que precisa ser restringido (p.ex., “não competir com o produto X no território Y”), evitando cláusulas-guarda-chuva.
- Tempo: Use o mínimo necessário, com sunset. Em M&A, prazos mais longos exigem justificativas concretas (ciclo de clientela/tecnologia).
- Geografia/clientela: Delimite aos mercados onde há transferência de ativos/clientela/know-how; não extrapole mercados não afetados.
4. Nível de risco residual: Avalie sensibilidade setorial (saúde, combustíveis, plataformas), exposição a trocas de informação sensível e presença de condutas horizontais (sempre de alto risco).
5) Tópicos específicos e “red flags”
Non-compete (empresas e M&A)
- Pode ser acessório se: (i) há transferência de ativos/goodwill/know-how; (ii) o escopo material e territorial corresponde ao negócio; (iii) o prazo é limitado e justificável.
- Red flags: proibição ampla em mercados não afetados; extensão a fornecedores/terceiros sem vínculo; prazos “padronizados” sem base factual.
No-poach/non-solicitation (RH)
- Risco alto quando horizontal e amplo; trate como exceção, apenas se acessório a uma operação específica (p.ex., integração de negócios). Se indispensável, circunscreva: cargos nomeados, prazos curtos, território limitado e exceções para candidaturas espontâneas ou processos conduzidos por headhunters sem direcionamento.
Exclusividades e MFNs
- Podem ser defensáveis se temporárias e com eficiências verificáveis (lançamento de produto, investimentos específicos, garantia de qualidade/abastecimento). Documente a racionalidade procompetitiva e avalie poder de mercado e alternativas no canal.
Troca de informações entre concorrentes
- Em M&A, troque apenas o necessário, com clean teams, dados agregados/defasados e governança clara.
- Fora desse contexto, trocas sobre preços, custos, volumes, clientes, salários tendem a ser sensíveis: exigem cautela e, em muitos casos, devem ser evitadas.
6) Como redigir cláusulas acessórias que se sustentam
- Clareza do objetivo legítimo: Explicite no contrato por que a restrição é necessária (p.ex., proteger know-how específico por X anos para preservar o valor do ativo).
- Provas ex-ante: Anexe memoriais de negócio (planos de integração, mapeamento de ativos intangíveis, cronograma de transição) que ancorem prazo e escopo.
- Escopo calibrado: Descreva produtos/serviços, mercados e território com base no que foi transacionado; vincule o prazo ao ciclo econômico do ativo (tempo para assimilação de tecnologia/clientela).
- Revisões e sunset: Inclua gatilhos de revisão e cláusulas de saída se o racional deixar de existir (ex.: encerramento antecipado por mudança de mercado).
- Governança de informação: Preveja clean teams, NDAs, trilha de auditoria e barreiras organizacionais desde a negociação até o closing.
7) Enforcement e cálculo de risco
- Administrativo (CADE): Multas relevantes (percentuais sobre faturamento), proibições e obrigações de fazer/não fazer (remédios). A dosimetria considera agravantes/atenuantes; compliance efetivo e cooperação podem mitigar danos.
- Criminal (pessoas físicas): Cartel é crime, o que eleva o risco pessoal de executivos em naked restraints horizontais (fixação de preços, bid rigging, limitação de produção).
- Civil (danos): Há incentivos e regras específicas para ações indenizatórias por condutas anticompetitivas, inclusive com indenização em dobro em cartel. Ajuste contratos, seguros D&O e matriz de risco a esse patamar.
8) Checklist rápido antes de assinar (use internamente)
A restrição é necessária ao negócio? Existe alternativa menos restritiva?
- O escopo material/territorial está alinhado ao que foi transacionado?
- O prazo é o mínimo e está justificado documentalmente (com sunset e revisões)?
- Existem controles de informação sensível (clean teams, dados agregados, need-to-know)?
- O contrato traz revisões/sunset e remédios proporcionais?
- A avaliação de risco considerou sanções administrativas, criminais e civis?
9) Conclusão
No Brasil, o antitruste não proíbe toda e qualquer limitação à concorrência; proíbe as que não servem a um propósito econômico legítimo ou excedem o necessário para viabilizá-lo. A boa prática - e a melhor defesa perante o CADE - é tratar restrições como realmente acessórias: objetivo claro, nexo funcional, proporcionalidade no desenho e governança de informação desde a negociação. Em um ambiente de maior escrutínio sobre RH e trocas de dados sensíveis, e com fortalecimento do contencioso civil por danos, essa disciplina contratual é o que separa a eficiência da ilicitude.