O empréstimo consignado sempre foi um produto destinado a consumidores hipervulneráveis, como aposentados do INSS e servidores públicos. É justamente nesse ambiente - onde a relação de confiança com o Estado e a falta de familiaridade com o digital se encontram - que um novo tipo de abuso vem ganhando espaço. Trata-se da apropriação da identidade digital do cliente como estratégia para fabricar litígios em larga escala. Se antes as fraudes se davam com documentos físicos falsificados, hoje elas começam no token. A senha gov.br se tornou o primeiro passo de um modelo de negócio que captura a vida civil do consumidor e pode transformar isso em milhares de processos judiciais.
O ponto central da distorção está escondido em cláusulas de procuração que, de forma aparentemente inocente, autorizam o advogado a “requerer/criar senha do portal gov.br”. Essa expressão, banal para quem compreende o sistema de autenticação governamental, representa o rompimento definitivo dos limites éticos da advocacia. A partir dela, o advogado pode assumir o controle total da identidade digital do cliente, com a possibilidade de acessar o Meu INSS, alterar dados de contato e criar resistência administrativa que, mais tarde, servirá para justificar indenização judicial. Pode nascer, assim, um litígio que nunca existiu na vida real, mas que passa a existir processualmente graças ao domínio tecnológico do procurador - não da parte.
Nesse cenário, o princípio da demanda - pilar do processo civil brasileiro, segundo o qual ninguém pode ser levado ao Judiciário sem que manifeste essa vontade - é convertido em ironia. O advogado provoca o dano que mais tarde apresentará como violação de direito. Ele planta e colhe o conflito. Ele constrói a tese e a prova. O autor, por sua vez, não age: é agido. O Judiciário, acreditando proteger um consumidor lesado, torna-se sem perceber o instrumento de validação de uma fraude privada. O litígio passa a nascer não da vida, mas do login.
A procuração, nesse contexto, deixa de ser um instrumento de representação e se transforma em autorização irrestrita para que o advogado viva a vida civil digital do cliente. Subestabelece sem reservas, recebe valores sem contato prévio com a parte, presta declarações em nome de quem nunca teve ciência do processo no INSS, Detran, Receita Federal, instituições financeiras e outros órgãos públicos. O hipervulnerável, que deveria ser protegido, torna-se refém de um representante que substitui sua autonomia em vez de assisti-la. Não raro, apenas descobre que estava em juízo quando sofre bloqueios, renegativação ou descontos regressivamente reativados em sua conta.
O impacto institucional desse ecossistema é evidente. Um número ínfimo de escritórios responde por uma parcela gigantesca dos processos em determinadas regiões do país. Não por acaso: trata-se de um modelo escalável. Um único profissional, com acesso a milhares de chaves de identidade digital, pode provocar igualmente milhares de ações idênticas. A consequência é a sobrecarga de varas do interior, o desvirtuamento da tutela coletiva de direitos, o desvio de recursos que poderiam ser destinados a escolas, hospitais e outras políticas públicas, e a erosão da confiança da sociedade no Poder Judiciário. Uma fraude praticada em massa se transforma em litígio institucionalizado - e ameaça a sustentabilidade democrática.
Não bastasse o impacto estrutural, há o prejuízo humano: o consumidor idoso, sem domínio tecnológico, é convencido a assinar documentos que não compreende; perde o controle sobre sua cidadania digital; torna-se apenas o CPF que viabiliza o processo; e tem a própria dignidade reduzida a uma linha em um robô de distribuição.
É urgente que o sistema de justiça reaja. A confirmação pessoal do cliente para recebimento de valores, o monitoramento tecnológico de padrões suspeitos no PJe, a comunicação automática à OAB e ao Ministério Público quando houver indícios de fabricação de demanda, e a vedação expressa à autorização para criação de senha gov.br são caminhos necessários para reequilibrar a relação. Bancos também podem notificar preventivamente alterações de dados sensíveis feitas por terceiros, garantindo rastreabilidade e prova robusta de ciência do consumidor.
O que está em jogo não é apenas o combate à litigância abusiva, mas a proteção do próprio significado de cidadania. A senha gov.br é hoje a porta de entrada da identidade civil. Transformá-la em arma para possibilitar a manipulação das relações jurídicas e explorar vulneráveis é aceitar que a advocacia se distancie de sua função social e se aproxime perigosamente de uma engenharia de litígio orientada por lucro.
Processo sem vontade não é demanda - é crime. Democracia forte exige autor forte. Defender a integridade do processo é defender a dignidade do jurisdicionado e a credibilidade do sistema de justiça. E isso começa, paradoxalmente, pelo reconhecimento de que a porta da fraude pode estar exatamente onde imaginamos existir apenas segurança: no login.