I - Introdução
O mundo sofreu grandes transformações no transcurso dos milênios, as quais modificaram a forma de viver, conviver, trabalhar e entender o papel que cabia a cada um de seus habitantes.
A primeira grande mudança ocorreu há dez mil anos, quando o homem passou da condição de caçador-coletor para a agricultura, o que permitiu que permanecesse assentado em um local definido, sem a necessidade de estar sempre em movimento à procura de alimentos.
A partir daí houve avanços extraordinários, com a formação de grandes civilizações nas quais se desenvolveu a arquitetura, a governança, a arte da guerra, o comércio, como se viu no Egito, Grécia, Roma, e aqui nas nossas proximidades no México e Peru (Astecas e Maias e Incas).
Também se deve registrar a transição da força muscular para a energia mecânica, havida no século XVIII, sucedida pela instalação de indústrias, construção de ferrovias e máquinas a vapor no século XIX, como pela presença da eletricidade e linhas de montagem, ainda no século XIX.
O século XX trouxe a invenção do avião, a consolidação dos automóveis, o aperfeiçoamento de material bélico e outras novidades, contudo, o que se viu em termos de evolução tecnológica a partir da II Guerra Mundial foi extraordinário, impactando a todos e às mais diversas atividades.
O historiador Yuval Noah Harari (2020), falando sobre a história da humanidade, identifica três grandes revoluções que a transformaram: a Revolução Cognitiva, a Revolução Agrícola e a Revolução Científica. Além disso, diz que o crescimento populacional levou às sucessivas revoluções industriais que transformaram as cidades e as pessoas.
Mas há quem proceda à divisão dos períodos de forma a estabelecer quatro revoluções industriais. A primeira havida na segunda metade do século XVIII (1760-1840), caracterizada pela substituição do trabalho artesanal pelo trabalho assalariado e pelo uso de máquinas. A segunda, que começou no final do século XIX (1850-1945), foi marcada pelo desenvolvimento das indústrias química, elétrica, petrolífera e siderúrgica, bem como pelo progresso nos transportes e nas comunicações. Essa sequência foi marcada pela terceira revolução industrial, no século XX, entrando no novo milênio (1950-2010), que testemunhou a substituição da mecânica analógica pela digital, o uso de microcomputadores, a criação da internet e o desenvolvimento de novas fontes de energia. Atualmente, vivenciamos a quarta revolução industrial, que começou em 2011 e está relacionada à "convergência de praticamente todas as tecnologias existentes hoje e que estão efetivamente transformando o mundo em geral".
A quarta Revolução Industrial definida por Schwab (2021) e que teve por marco inicial o ano de 2011, está relacionada ao conceito de Indústria 4.0, modelo que busca utilizar as tecnologias disponíveis para a geração de conhecimento e produtividade.
E é no seu contexto que se fará a análise da repercussão no âmbito da Justiça.
II - A adoção da tecnologia pelos órgãos judiciais
O sistema de Justiça, sempre assoberbado pela grande quantidade de demandas, encontrando sérias dificuldades em oferecer as respostas que a sociedade necessita, aderiu à ideia de adotar as novas tecnologias, pois funcionando como um dos pilares de sustentação da sociedade, ou seja, consistindo no instrumento por intermédio do qual se busca a pacificação social, viu como necessária a absorção de tudo que pudesse contribuir para o seu melhor desempenho.
Isto fez com que se tornasse indispensável a atualização das formas de trabalhar, colocando-as de acordo com os novos tempos e as possibilidades que a modernidade oferece. Tal comportamento decorre do entendimento de ser a tecnologia um meio eficiente para a resolução de diversos problemas legais. (Suárez Manrique y De León Vargas, 2019)
A Justiça, aqui compreendida como um sistema que congrega um conjunto de entidades, órgãos e pessoas envolvidas no propósito comum de atuar na interpretação e aplicação do Direito, paulatinamente foi incorporando as ferramentas que lhe eram postas à disposição. O atrativo estava na possibilidade de automação de algumas atividades, como, e principalmente, pelo leque de possibilidades que o acesso à web possibilitou. Viu-se a derrubada de obstáculos para as comunicações, facilitou-se a troca de informações, a apresentação de documentos na forma física foi sendo dispensada, foram se extinguindo as fronteiras pela comunicação imediata por vídeo e áudio, permitindo a participação em audiências e sessões dos mais diferentes e distantes lugares, além de se terem tornado obsoletas as cartas precatórias ou rogatórias, com a ouvida de testemunhas e acusados pela via remota pelo próprio juiz da causa.
Além disso, novos e eficientes sistemas de acompanhamento e organização dos processos, de guarda de informações, tudo foi sendo implantado para gerar segurança e agilidade. Houve a substituição dos autos físicos por digitais, a consagração definitiva do peticionamento eletrônico, com novas funcionalidades surgindo a cada dia.
Paradoxalmente uma situação catastrófica acabou sendo um impulso à virada de chave da Justiça, impondo a adoção definitiva das soluções eletrônicas.
A pandemia do Covid-19, que vitimou 14 milhões e novecentas mil pessoas no mundo, em razão das medidas de isolamento que impediram que a população saísse de suas casas para trabalhar (à exceção de atividades essenciais), fez com que todos se valessem dos meios eletrônicos para comunicação e trabalho.
E tudo quanto havia sido construído, projetado e testado no âmbito judicial, passou a ser executado com foro definitivo, uma vez que se mostrou como a única alternativa para evitar a interrupção dos trabalhos.
Neste contexto, o progresso foi se tornando constante, e a demanda por soluções mais sofisticadas cresceu. Neste contexto surgiu como opção a Inteligência Artificial, que de emergente passou à condição de realidade. “Faz-se presente em produtos, serviços e dispositivos que se utiliza diariamente” [...] “Está sendo usada para a condução de carros, caminhões e tratores, o que possivelmente criará uma infraestrutura de transporte mais segura e eficiente. É utilizada nas redes elétricas e nos sistemas de abastecimento de água para gerir com eficiência uns recursos escassos em uma época de tensão crescente”. E não se limita a isso, sugere textos, detecta fraudes, escreve histórias, diagnostica doenças, como tem a capacidade de simular o impacto das mudanças climáticas. Há inteligência artificial no comércio, nas escolas, nos hospitais, escritórios, como também em julgamentos (Suleyman e Bhaskar, 2025.
III - Disseminação pela América Latina
O fenômeno por nós observado de perto por sua aplicação na Justiça brasileira aconteceu paralelamente em outros países latino-americanos. Neles se verificaram inúmeras iniciativas de utilização de sistemas digitais de administração documental ou de decisões autônomas nos processos judiciais, com a ideia de “usar programas informáticos que processem documentos ou expedientes, para assim ajudar a solucionar gargalos nos processos judiciais que ocasionam congestionamento”. (Urueña, 2021)
Deve-se destacar a implantação gradual da Justiça digital no Chile, país em que houve a aprovação da lei de tramitação eletrônica (20.886/16), e no ano de 2019 a apresentação das instruções de alteração digital, ocasionando a consolidação da Justiça digital naquele país, que figura como uma das referências para a modernização legal na América do Sul.
É importante dizer que o governo chileno publicou em 2013 a Agenda Nacional 2020, quando estabeleceu metas a atingir para consolidar uma estratégia nacional de desenvolvimento em tecnologias da informação. O maior progresso foi observado na área de gestão de processos, muito embora se tenha reconhecido a limitação em termos de eficiência caso se fixasse em tecnologias obsoletas. Por isso se tinha como fundamental aprimorar os processos, e ao mesmo tempo investir em pessoas e novas tecnologias.
Com o objetivo de melhorar a eficiência e reduzir a carga de trabalho dos juízes se obteve progresso em diversas áreas, como o sistema de reconhecimento de voz que permite o ditado - o software "Dragon Naturally Speaking"; a criação de aplicativos pelo Judiciário; a Plataforma Virtual do Judiciário que permite o protocolo eletrônico de ações e documentos de qualquer lugar e a qualquer momento; a implantação de audiências por videoconferência e melhorias no teletrabalho, entre outras inovações. (Amunátegui Perelló, Madrid Ramírez e Aranguiz Villagrán, Inteligencia Artificial y Poder Fiscal. Chile y sus desafíos pendientes)
No México, a reforma constitucional de 2017 permitiu a promulgação de um código único para questões de Direito Civil e de Família, com o impulso através do sistema EXPERTIUS, responsável pela análise dos casos de pensão alimentícia. Contudo, não ocorreu sua concretização da maneira desejada, o que criou barreiras ao reconhecimento legal da justiça digital. Mesmo assim, a Corte Superior de Justiça daquele país procurou se adaptar aos novos tempos, criando mecanismos que permitem assinaturas eletrônicas, bem como um sistema abrangente de telepresença que proporcione o acesso a todos.
Em agosto de 2020 o Tribunal Constitucional da Colômbia lançou o sistema PretorIA, “que intervém em um momento processual crucial para a proteção dos direitos fundamentais”, realizando revisões por amostragem com o intuito de aprimorar sua jurisprudência. Enquanto isso, a Procuradoria-Geral da República da Colômbia utiliza o sistema PRISMA, que visa prever a reincidência criminal. (Urueña, 2021)
O Conselho Superior da Magistratura da Colômbia, atento ao avanço da tecnologia liderou as ações para a implantação de um plano de Justiça Digital, citando como indicador a lei 2.213/22, na qual se deu destaque ao decreto 806 de 2020, que já havia estabelecido a adoção de “medidas para implantar tecnologias de informação e comunicação nos processos judiciais, agilizar os processos judiciais e tornar o atendimento aos usuários do serviço de Justiça mais flexível”.
Aguerre e Bustos Frati, com base em um estudo realizado por este último em conjunto com Bruno Gorgone, noticiaram as “iniciativas efetivas de inovação institucional associadas à IA no âmbito judicial na Argentina”, mencionando “as linhas de atuação de um tribunal ou outro ator judicial na esfera pública que resultaram no uso de pelo menos um módulo baseado em uma técnica de IA”.
Trataram das medidas iniciadas pelos órgãos judiciais na CABA - Cidade Autônoma de Buenos Aires, observando a limitação dos processos de inovação institucional por trajetórias ainda incipientes; revelaram a existência de distinção entre a dinâmica da mudança institucional resultante da IA, com a dependência hierárquica como força motriz por trás das iniciativas; disseram da necessidade de alianças com outros setores para a aplicação da “anonimização inteligente” e, por fim, do direcionamento do estudo para a percepção dos atores envolvidos no processo, com o propósito de prever o impacto da IA em longo prazo na Justiça. (Aguerre y Bustos Frati, NIC.ar 35)
O Ministério Público da Cidade Autônoma de Buenos Aires também buscou atuar de acordo com as modernidades, tendo desenvolvido um sistema avançado de decisão autônoma no ano de 2017, denominado “Prometea”. “A contribuição do Prometea reside na análise do texto do recurso e de ações anteriores, verificando a presença de determinadas palavras-chave pré-configuradas no sistema, assim prevendo a resposta apropriada à solicitação. Segundo seu desenvolvedor, o Prometea tem uma taxa de precisão de 96% em suas previsões”. (Urueña, 2021)
O sistema “Prometea” acabou sendo incorporado pela CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a finalidade de monitorar “notificações sobre Pareceres Consultivos. As comunicações, preparadas em quatro idiomas, envolvem a verificação de nomes, endereços, cargos, etc., o que antes exigia pelo menos três dias de trabalho, o que é realizado pelo “Prometea” em apenas dois minutos.” (De Lara-García, 2022, p. 44)
No Brasil, o sistema Judiciário utiliza diversos sistemas nos tribunais estaduais, Federais, trabalhistas, militares e superiores. O desenvolvimento foi fruto de iniciativas isoladas, o que não permitiu até o momento sua uniformização. Aliás, as tentativas do CNJ de impor um sistema único encontrou resistência de alguns tribunais, em face deles utilizarem programas em estágio de desenvolvimento superior ao proposto, no qual ainda havia a lacuna de diversas funcionalidades, o que provocaria um retrocesso nas atividades judiciárias.
Optou-se, então, pela interoperabilidade entre os variados sistemas, sem que o CNJ tenha alcançado a padronização. Apesar disso, não houve embaraços para que quase a totalidade dos processos judiciais estivessem digitalizados ou já se iniciassem desta forma, as audiências estivessem sendo gravadas e realizadas virtualmente, ou ainda em sistema híbrido, com participantes presentes fisicamente e outros de forma remota.
Diga-se que a utilização da web pela internet ou intranet, o ajuizamento de petições eletrônicas e o acompanhamento do fluxo de processos já existem há mais de duas décadas, sem falar em alguns processos e procedimentos já automatizados. A classificação de processos e temas igualmente é realizada de forma automática, constituindo-se em avanços que introduziram, pouco a pouco, uma nova cultura no campo judicial, o que torna o retorno ao passado inviável.
Todas as medidas adotadas estão em consonância com a “Agenda 2030 y os objetivos de desenvolvimento sustentável - Uma oportunidade para a América Latina e o Caribe”, editada pelo CEPAL - Comissão Econômica para América Latina e Caribe, na qual foram definidas diversas diretrizes, também tratando do avanço tecnológico.
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