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Irredutibilidade e segurança jurídica: Os limites da declaração de inconstitucionalidade em matéria remuneratória

No Tema 1.427 da repercussão geral, o STF reafirma que o reconhecimento de inconstitucionalidade na fixação de parcelas remuneratórias não autoriza redução de vencimentos nem devolução de valores recebidos de boa-fé.

6/11/2025

O STF, ao julgar o Tema 1.427 da repercussão geral (ARE 1.524.795/MG), reafirmou a centralidade do princípio da reserva legal na fixação de remuneração de servidores públicos. O ponto de maior destaque da tese firmada está no item 2, segundo o qual “o reconhecimento da inconstitucionalidade não autoriza decréscimo remuneratório nem a repetição de valores”. A formulação desse enunciado reflete uma preocupação constitucional com a segurança jurídica e a irredutibilidade de vencimentos, pilares do regime jurídico dos servidores (CF, art. 37, XV), preservando quantias de natureza alimentar recebidas de boa-fé.

No voto condutor e vencedor, o min. Luís Roberto Barroso conheceu do agravo, deu parcial provimento ao RE e propôs a tese em dois pontos: (i) é inconstitucional delegar ao Executivo a fixação e o reajuste de parcela remuneratória (violação ao art. 37, X, e ao art. 169, §1º); e (ii) a declaração de inconstitucionalidade não autoriza reduzir vencimentos nem repetir valores. Fundado em precedentes (v.g., ADI 3.551, ADI 2.915 e Tema 395 - quintos), o relator articulou a proteção da confiança para, de um lado, cessar o regime inconstitucional de fixação/reajuste da gratificação de estímulo à produção (GEPI) devida aos ocupantes dos cargos de Fiscal de Tributos Estaduais e de Agente Fiscal de Tributos Estaduais (MG); e, de outro, impedir descontos e preservar o pagamento até absorção por reajustes futuros, a partir do julgamento, sem reconhecer diferenças pretéritas. Isto é, sem criar crédito passado com base em disciplina incompatível com a Constituição.

O min. Gilmar Mendes acompanhou o relator quanto ao item 1 (inconstitucionalidade da delegação), mas divergiu quanto ao item 2, propondo suprimir a parte que mantinha o pagamento “até absorção”. Para ele, a irredutibilidade (art. 37, XV) não protege parcelas criadas por normas inconstitucionais; o remédio adequado, em nome da segurança jurídica e da boa-fé, é afastar a devolução do que já foi pago, sem autorizar continuidade do pagamento com fundamento inválido (entre outros, ADI 6.811-ED; ADI 6.848-ED; RE 411.327-AgR). Essa posição foi acompanhada pelo min. Dias Toffoli, mas restou vencida: prevaleceu a diretriz do relator que, além de vedar descontos e repetição, impede decréscimo remuneratório imediato, condicionando a extinção da parcela à sua absorção prospectiva.

A solução do STF dialoga com a jurisprudência repetitiva do STJ sobre reposições ao erário. O Tema 531 estabelece que, quando o pagamento indevido decorre de interpretação errônea da lei pela Administração, não cabe desconto em face da boa-fé do servidor. Já o Tema 1.009 trata dos pagamentos indevidos por erro administrativo (operacional ou de cálculo): em regra são restituíveis, salvo demonstração, no caso concreto, de boa-fé objetiva (impossibilidade de o servidor perceber o equívoco). O item 2 do Tema 1.427 harmoniza-se com esse binômio: a) veda a repetição de valores recebidos de boa-fé (afinidade com o Tema 531 e com a exceção do Tema 1.009); e b) no plano prospectivo, sob a ótica do STF, privilegia a segurança jurídica ao impedir decréscimo remuneratório abrupto, solução institucional que, embora mais protetiva que a linha minoritária (Gilmar/Toffoli), permanece coerente com a natureza alimentar da verba e com a proteção da confiança. Em síntese: cessa-se o regime inconstitucional, não se reconhecem diferenças passadas, não se devolve o que foi pago de boa-fé e não se reduz de imediato a remuneração - preservação que perdura até a absorção por reajustes futuros, como fixado pelo voto vencedor.

Assim, o item 2 da tese do Tema 1.427 transcende o caso concreto de Minas Gerais e consolida um entendimento de alcance nacional: a correção institucional de inconstitucionalidades na remuneração do funcionalismo público deve observar os limites da segurança jurídica e da irredutibilidade, preservando os valores pagos de boa-fé e evitando efeitos confiscatórios ou desproporcionais. O julgado reforça, portanto, a harmonia entre o princípio da reserva legal e a tutela da estabilidade econômica do servidor público - um equilíbrio que garante tanto a integridade do sistema jurídico quanto a confiança do cidadão na Administração.

Alice Lucena
Sócia no escritório Cassel Ruzzarin, especialista na defesa do servidor público, do ingresso à aposentadoria.

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