A técnica jurídica reencontra o bom senso: A aplicação do in dubio pro reo na lei Maria da Penha
Em meio ao cenário turbulento de julgamentos marcados por automatismos e condenações baseadas exclusivamente em relatos frágeis, uma decisão recente do STJ surge como um raro facho de lucidez.
Embora sem efeito vinculante, o acórdão relatado pela ministra Marluce Caldas no AREsp 3.007.741 - AM oferece uma aula de técnica jurídica e respeito aos princípios constitucionais - especialmente à presunção de inocência e ao in dubio pro reo.
O caso concreto: Entre alegações e provas frágeis
A controvérsia girou em torno de suposta agressão física no contexto da lei Maria da Penha.
O Ministério Público denunciou o réu com base em relato da vítima, fotos não identificadas e mensagens de WhatsApp sem perícia.
O juízo de primeiro grau absolveu o acusado por insuficiência de provas, e a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, com base em:
- Contradições nos depoimentos da vítima, especialmente quanto à data dos fatos;
- Ausência de provas judicializadas que corroborassem o relato;
- Fragilidade do exame de corpo de delito indireto.
A posição da ministra Marluce Caldas: técnica e constitucional
A relatora manteve a decisão de absolvição por reconhecer a impossibilidade de reexame das provas em sede de recurso especial.
Mas, mais do que isso, reafirmou a exigência de prova robusta e judicializada como requisito indispensável à condenação.
Essa postura revela um compromisso com a CF/88, sem se curvar a pressões ideológicas ou emocionais.
Destacam-se os seguintes fundamentos:
- O depoimento da vítima, embora importante, não basta por si só para condenar.
- O exame de corpo de delito sem comprovação de identidade ou data compromete sua validade.
- A aplicação do princípio do in dubio pro reo decorre da falta de certeza na autoria e materialidade.
Um alerta necessário: O julgado não resolve a atecnia dominante
A decisão não tem efeito vinculante e, portanto, não impede que magistrados continuem julgando com base em percepções subjetivas, desconsiderando os limites constitucionais da jurisdição penal.
Ainda se vê com frequência:
- Condenações baseadas exclusivamente em depoimentos frágeis;
- Uso automático da lei Maria da Penha como mecanismo de inversão do ônus da prova;
- Desconsideração da presunção de inocência como pilar do devido processo legal.
A importância de reconhecer os limites da prova
O caso reafirma uma máxima jurídica muitas vezes esquecida: não se pode condenar sem prova incontestável.
O desejo legítimo de combater a violência doméstica não justifica a flexibilização de garantias fundamentais.
Ao contrário, o Estado deve:
- Investigar adequadamente;
- Produzir provas confiáveis;
- Assegurar o contraditório e a ampla defesa.
Negar esses princípios é transformar a nobre causa da proteção da mulher em um instrumento de injustiça.
Conclusão: Entre a técnica e a responsabilidade
A decisão analisada é um exemplo de coragem jurídica. Diante de uma sociedade que clama por punição, o Judiciário precisa manter-se fiel ao Direito.
O respeito ao princípio da presunção de inocência não é complacência com o agressor, mas compromisso com a justiça.
Que essa luz no fim do túnel não seja abafada por decisões apressadas ou julgamentos baseados em narrativas frágeis.
O processo penal não pode ser instrumento de vingança - deve ser expressão da legalidade e da verdade.
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https://processo.stj.jus.br/processo/monocraticas/decisoes/?num_registro=202502850510&dt_publicacao=03/10/2025%27