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O “sócio de conveniência”: Um fenômeno recorrente nas empresas familiares

O artigo analisa a responsabilidade do “sócio de conveniência” em empresas familiares, destacando limites da desconsideração da personalidade jurídica e a proteção de quem não administrou.

10/11/2025

É cada vez mais comum que, em empresas familiares, filhos, cônjuges ou outros parentes figurem no contrato social apenas para manter o controle dentro da família. Em muitos casos, o parente é incluído quando ainda é menor de idade, por sugestão ou imposição do pai ou da mãe, com a finalidade de preservar o patrimônio familiar e evitar a entrada de terceiros no quadro societário. O problema surge anos depois, quando a empresa enfrenta dificuldades financeiras, entra em processo de execução ou mesmo falência, e esse “sócio de conveniência” passa a ser responsabilizado como se tivesse sido administrador.

A situação é mais grave do que parece. Embora a assinatura em contratos, cheques ou documentos empresariais crie aparência de participação, o Direito não se contenta com as aparências. A responsabilidade civil e societária é pessoal e exige demonstração concreta de que o sócio exerceu atos de gestão, teve poder de decisão e se beneficiou de eventual confusão patrimonial. O simples fato de constar no contrato social, sem participação efetiva na administração, não autoriza a imputação de responsabilidade patrimonial, tampouco legitima a inclusão automática em um incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

A jurisprudência tem reiteradamente reconhecido que a desconsideração da personalidade jurídica é medida de caráter excepcional, que depende da prova de abuso, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. No julgamento do AgInt no REsp 1.924.918 (rel. min. Marco Buzzi, 4ª turma, j. 14/12/2022), o STJ deixou claro que a medida “deve atingir apenas os sócios administradores ou quem comprovadamente contribuiu para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica”. No mesmo sentido, o REsp 1900843 (rel. min. Nancy Andrighi, 3ª turma, j. 30/5/2023) fixou que a responsabilização pessoal exige prova de culpa ou dolo, não bastando a mera condição formal de sócio.

Esse entendimento se harmoniza com a natureza subjetiva da responsabilidade empresarial: quem não administra, não decide e não se beneficia de atos da sociedade não pode ser tratado como corresponsável por suas dívidas. O IDPJ - incidente de desconsideração tornou-se um espaço processual de defesa, no qual o sócio indevidamente envolvido pode demonstrar a ausência de gestão e de proveito pessoal. É uma arena de resistência técnica - e não um meio de reabilitação civil.

O ponto crítico está na confusão, ainda presente na prática forense, entre a figura do “sócio de direito” e a do “administrador de fato”. A primeira se refere a quem apenas figura no contrato social, sem atuação material; a segunda, a quem efetivamente dirige a empresa, ainda que sem título formal. É o administrador de fato quem responde pelos atos de gestão, inclusive em hipóteses de falência ou de execução. A esse respeito, a jurisprudência tem sido firme ao afastar a responsabilidade de quem foi apenas titular formal de quotas, sobretudo quando se comprova que os atos decisórios e financeiros estavam concentrados nas mãos de outro integrante da família.

A dificuldade surge, muitas vezes, porque a empresa já foi dissolvida de fato, mas não de direito. A sociedade é abandonada, não há encerramento formal perante a junta comercial, e o sócio de conveniência continua juridicamente vinculado. Nesses casos, a dissolução societária - total ou parcial - torna-se instrumento essencial de regularização e proteção. Ela formaliza o desligamento e delimita, documentalmente, o período de responsabilidade, nos termos dos arts. 1.033 e seguintes do CC e do art. 605 do CPC. Mesmo em situações de falência, a dissolução é relevante para comprovar a ausência de poderes de administração e requerer a exclusão do nome do sócio das restrições de crédito, com fundamento nos arts. 82 e 103 da lei 11.101/05.

Quando o ingresso societário ocorreu durante a menoridade, o debate adquire outra dimensão. O menor de 16 anos é absolutamente incapaz e não pode exercer atos de gestão; entre 16 e 18, é relativamente incapaz e deve ser assistido. A assinatura de cheques, contratos ou documentos empresariais, sem a devida representação, é juridicamente ineficaz. Tais atos, praticados sob orientação do pai ou responsável, não traduzem vontade livre nem assumem validade jurídica contra o menor. A jurisprudência trabalhista também tem se posicionado nesse sentido, como no agravo de petição 592320195090009 (TRT-9), reconhecendo que, para o sócio menor, aplica-se a teoria subjetiva da desconsideração, sendo indispensável prova de fraude ou confusão patrimonial.

Essas decisões revelam uma evolução importante do pensamento jurisprudencial brasileiro: a proteção do sócio que figurou apenas formalmente, sem gestão, é hoje uma realidade consolidada. O Judiciário tem buscado a verdade material, diferenciando quem realmente comandava a empresa de quem apenas emprestou o nome.

Do ponto de vista prático, isso significa que é possível reconstruir a trajetória jurídica de quem foi indevidamente vinculado a uma sociedade falida ou executada. O caminho passa pela reunião de provas - contratos sociais, alterações, extratos bancários, declarações fiscais, atas e comunicações - que demonstrem a ausência de gestão e de proveito. A defesa deve ser documental e precisa, técnica, sempre focada em afastar a presunção de responsabilidade solidária.

O “sócio de conveniência” é, em grande parte dos casos, um produto da informalidade e da confiança familiar. O direito empresarial, entretanto, não se compadece da ingenuidade, mas tampouco pune quem jamais teve o comando. A solução está na técnica, na reconstrução dos fatos e na demonstração da ausência de culpa. Porque o sistema jurídico não exige que alguém responda por aquilo que nunca administrou - e o verdadeiro desafio, nesses casos, é fazer o processo reconhecer essa verdade.

Daniela Poli Vlavianos
Advogada civilista com 20 anos de experiência. Pós-graduada em Execução. Atuação em execução cível e proteção patrimonial. Atualmente, integra a equipe do escritório Arman Advocacia

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