1. A lei garante a vaga, mas a realidade impõe barreiras
A legislação brasileira, incluindo a Constituição de 1988 e a resolução CNE/CEB 1 de 2020, assegura o direito à matrícula para crianças migrantes e refugiadas, independentemente da apresentação de documentos. A norma é clara: a ausência de histórico escolar, de RNM - Registro Nacional Migratório ou mesmo uma situação migratória irregular não podem ser impedimentos para o acesso à sala de aula.
Apesar dessa garantia legal, a realidade prática é outra. A burocracia e a falta de informação de funcionários se tornam obstáculos comuns. Há relatos de escolas que recusam matrículas por falta de documentos e que, por desconhecimento, não aceitam o protocolo provisório emitido pela Polícia Federal como um documento válido para o registro do aluno. A gestora de uma escola no Amazonas, por exemplo, relatou receber crianças que tiveram matrículas rejeitadas em outras instituições públicas justamente por não apresentarem a documentação exigida.
Os dados ilustram a dimensão do desafio. Até 2023, o Brasil reconheceu mais de 34 mil menores de idade como refugiados. No entanto, um estudo do ACNUR com o Banco Mundial revelou um dado alarmante: crianças refugiadas e migrantes têm uma probabilidade 53% menor de estarem na escola em comparação com as brasileiras. Essa lacuna entre a lei e a prática aponta para uma falha sistêmica, onde a falta de preparo institucional e de recursos adequados impede que um direito garantido se torne uma realidade para todos.
2. O verdadeiro acolhimento não vem de uma política, mas de uma pessoa
Na ausência de políticas institucionais eficazes e estruturadas, a iniciativa individual de educadores se torna o principal motor do acolhimento. A pesquisa em campo mostra que, enquanto um professor pode seguir uma pedagogia puramente transmissiva, outro, na mesma escola, transforma a sala de aula em um espaço de pertencimento genuíno.
As práticas da professora Rosa, em uma EMEI em São Paulo, são um exemplo poderoso. Para envolver as famílias, ela criou a "Roda da Família", um encontro semanal onde pais, mães e avós são convidados a compartilhar suas histórias e culturas com a turma. Em um gesto simples, mas de profundo significado, ela incluiu diferentes idiomas na canção da hora do almoço para acolher todas as crianças presentes, cantando: "Bom apetite, buen provecho, bon appetit, shahi".
Essas ações, que vão muito além do currículo obrigatório, focam no que é essencial: o sentimento de pertencimento. No entanto, essa dependência de "heróis" individuais revela uma falha estrutural. Como desabafou uma professora entrevistada em um estudo sobre a falta de apoio sistêmico:
O que a gente tem em mãos é apenas o compromisso, a vontade de fazer com que seu aluno aprenda. É aquela questão de ter iniciativa, de correr atrás, não ficar parado, porque é isso que a gente faz, nós vamos atrás, porque a gente não tem nenhum respaldo.
A fala dessa educadora ecoa uma crítica central à resolução 1/20. Análises de políticas públicas apontam que, embora bem-intencionada, a norma "imputa uma responsabilização à escola local" sem prover o suporte, a formação e os recursos necessários. A dedicação desses profissionais é inspiradora, mas também evidencia a urgência de capacitação e apoio institucional para que o acolhimento seja uma política de Estado, e não apenas um ato de vocação extraordinária.
3. A escola não é só para aprender, é para sobreviver
Para muitas crianças em situação de refúgio, a escola transcende sua função educacional e se torna um espaço vital de segurança e sobrevivência. É um refúgio dentro do refúgio, onde necessidades básicas, muitas vezes negadas do lado de fora dos portões, são atendidas.
A história de Kinan, um menino venezuelano em Roraima, ilustra essa dura realidade. Ele chega cansado à escola e dorme durante a aula. A professora, ciente de que ele vive em situação de rua com a mãe e precisa trabalhar ou pedir ajuda pela manhã, permite que ele descanse. Para Kinan, a sala de aula é um dos únicos lugares seguros onde ele pode baixar a guarda.
Além do descanso, a escola muitas vezes fornece a única refeição consistente do dia através da merenda escolar. É também onde se obtém acesso a campanhas de vacinação e assistência odontológica. Em Boa Vista, professores se organizaram para doar roupas e calçados a crianças recém-chegadas, suprindo outra necessidade imediata. A gravidade da situação foi resumida no relato da gestora de uma escola na mesma cidade: ao perguntar o endereço de uma família venezuelana, ouviu do pai que eles ficavam em uma calçada e que, se fossem expulsos, procurariam "alguma árvore para ficar embaixo". Diante desse cenário, a evasão escolar não pode ser vista como desinteresse, mas como uma consequência de vulnerabilidades extremas, exigindo políticas que integrem, de forma indissociável, educação e assistência social.
4. O maior desafio na sala de aula não é a matéria, é a comunicação
A barreira linguística é um dos obstáculos mais severos e sistêmicos à inclusão. Imagine uma sala de aula em Roraima com alunos falantes de espanhol, warao e crioulo, e um professor que só se comunica em português. O aprendizado de conteúdos curriculares torna-se secundário quando a comunicação mais básica é impossível, gerando um silenciamento que isola a criança e sua família.
A pedagoga venezuelana Mari Fer Vargas, que viveu essa realidade, explica como a barreira vai além do aluno, excluindo os pais por não entenderem o que é dito nas reuniões escolares. Em uma dolorosa inversão de papéis, as crianças são sobrecarregadas com a responsabilidade de atuar como tradutoras para os pais em situações complexas, como consultas médicas ou encontros na Polícia Federal. Essa sobrecarga não é apenas um obstáculo pedagógico; é um fator que agrava a vulnerabilidade socioeconômica discutida anteriormente, transformando a criança em uma ferramenta de sobrevivência para a família. Essa inversão de papéis impõe um fardo pesado sobre as crianças, efetivamente roubando-lhes a infância.
Apesar do desafio, existem soluções. A EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo, enfrentou o problema implementando comunicação visual traduzida para quatro idiomas (português, árabe, inglês e espanhol) em suas instalações. A iniciativa, que promoveu um ambiente mais acolhedor, foi reconhecida pela UNESCO como um exemplo de boas práticas. A linguagem é a chave para o pertencimento. Sua ausência não gera apenas dificuldade de aprendizado, mas impede a verdadeira integração social e afetiva, reforçando a exclusão em vez de combatê-la.
5. A inclusão é uma via de mão dupla, mas só uma faixa está aberta
Com frequência, a "inclusão" é confundida com "aculturamento" - um processo no qual se espera que o migrante se adapte à cultura dominante. No entanto, essa abordagem representa uma forma de assimilação, onde o elemento distintivo da identidade de uma pessoa é "ignorado, distorcido, assimilado a uma identidade dominante ou majoritária". A verdadeira inclusão, por outro lado, é a interculturalidade: um diálogo e uma troca mútua, onde ambas as culturas se enriquecem.
Viviane Reis, diretora da ONG I know my rights, reforça que o objetivo não deve ser a assimilação. Pelo contrário, é preciso construir um ambiente onde a identidade cultural da criança refugiada seja "preservada, resgatada e até celebrada". Uma abordagem intercultural não beneficia apenas o aluno que chega, mas toda a comunidade escolar.
A fala da mãe Júlia, durante a "Roda da Família" na turma da professora Rosa, captura o poder dessa diversidade:
[..] o mais legal de São Paulo é poder ter contato com vários tipos de estilos diferentes de crianças juntos ao mesmo tempo.
Essa perspectiva transforma a presença de um aluno refugiado de um "problema" a ser gerenciado em uma oportunidade de aprendizado para todos. Ao promover o respeito e a valorização das diferenças, a escola prepara todos os alunos para uma sociedade que é, por natureza, plural e globalizada, abrindo uma via de mão dupla onde todos têm a ganhar.
Conclusão: Um convite à transformação
As cinco verdades apresentadas desenham um retrato complexo da jornada de crianças refugiadas no Brasil. A lei é o ponto de partida, mas o acolhimento real depende de pessoas. A escola é, muitas vezes, um refúgio de sobrevivência. A comunicação é a ponte que conecta mundos, e a interculturalidade é o destino para uma inclusão genuína. Esses achados mostram que garantir a matrícula é necessário, mas profundamente insuficiente. O verdadeiro desafio começa quando a criança cruza o portão da escola. Diante disso, fica a pergunta: as escolas brasileiras estão preparadas não apenas para ensinar, mas para verdadeiramente acolher e se transformar com a chegada de novos mundos em suas salas de aula?