A crescente integração da inteligência artificial generativa ao cotidiano jurídico, artístico e econômico tem desafiado os marcos tradicionais de proteção autoral em diversos sistemas jurídicos. O caso Li v. Liu (Beijing Internet Court, 2023) representa um marco nessa discussão, ao abordar pela primeira vez, em decisão judicial, a possibilidade de reconhecer uma criação produzida com o auxílio de IA como obra protegida por direitos autorais.
O julgamento oferece um retrato do estágio atual do debate jurídico na China, convidando à reflexão sobre os limites da autoria humana e a necessidade de harmonização normativa entre diferentes regimes legais.
Contexto do caso
Na decisão, o tribunal de Beijing reconheceu que uma imagem gerada por IA, sob instruções e parâmetros fornecidos pelo autor, poderia ser protegida pela lei de direitos autorais da República Popular da China. O tribunal considerou que o processo criativo envolvia a intervenção intelectual do usuário, cuja contribuição ultrapassava o mero acionamento da ferramenta. Essa compreensão reforçou a centralidade do elemento humano na criação, mesmo em um contexto de automatização parcial do processo produtivo.
A decisão, contudo, não equiparou a IA a um sujeito de direitos. O tribunal enfatizou que a titularidade permanece restrita ao humano que direciona o processo, afastando a hipótese de personalidade jurídica das máquinas, questão que ainda gera intensa controvérsia teórica no campo do direito internacional e da ética tecnológica. O entendimento aproxima-se, em parte, de interpretações já consolidadas em outros ordenamentos, como o europeu, que também mantêm a autoria humana como requisito essencial à proteção autoral.
A abordagem chinesa e o debate internacional
O posicionamento da corte reflete a busca do sistema jurídico chinês por respostas próprias aos desafios da economia digital. Desde a promulgação das diretrizes nacionais sobre inteligência artificial, a China tem procurado equilibrar estímulo à inovação tecnológica e proteção de direitos de propriedade intelectual. A decisão em Li v. Liu insere-se nesse esforço, evidenciando uma postura que reconhece o valor econômico e criativo das produções assistidas por IA, sem abdicar do princípio da intervenção humana.
No plano internacional, o caso dialoga com discussões que ocorrem sob amparo da OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual, da União Europeia e dos Estados Unido, onde refletem abordagens diferentes e em evolução
Embora se discuta propostas de criação de novas categorias jurídicas para obras híbridas, o caso Li v. Liu reforça a ideia de que o modelo clássico de autoria, centrado na intervenção intelectual humana, ainda é capaz de abranger as criações assistidas por IA, interpretação que dialoga com a própria lei de direitos autorais brasileira (lei 9.610/1998).
Lições e paralelos com o marco jurídico brasileiro
A análise do caso chinês permite traçar paralelos com o contexto normativo brasileiro, especialmente no que se refere à lei de direitos autorais (lei 9.610/1998) e à LGPD (lei 3.709/18). Embora a legislação brasileira não trate expressamente das obras produzidas com o auxílio de IA, a ênfase no conceito de “criação do espírito humano” e na “expressão pessoal” como fundamentos da autoria sugere uma convergência interpretativa com o entendimento adotado pelo tribunal de Pequim.
Além disso, o caso suscita reflexões sobre o uso de dados pessoais e informações disponíveis em bases digitais para o treinamento de modelos generativos, tema central da LGPD. A lei brasileira impõe princípios de transparência, finalidade e consentimento, o que abre espaço para debates sobre eventual violação de direitos de titulares de dados utilizados em sistemas de IA. A ausência de regulamentação específica para o treinamento de modelos de linguagem ou imagem no Brasil reforça a relevância da decisão chinesa como referência comparativa.
Desafios futuros
O julgamento do caso Li v. Liu demonstra que o direito chinês busca adaptar-se a um cenário tecnológico em rápida transformação, sem romper com os fundamentos clássicos da proteção autoral. Ainda que a decisão tenha se limitado ao reconhecimento da intervenção humana como condição para a titularidade, ela inaugura uma trilha interpretativa que poderá influenciar a construção de novas doutrinas sobre autoria, originalidade e responsabilidade no contexto da IA.
Para países como o Brasil, que enfrentam dilemas semelhantes, o precedente chinês evidencia a urgência de um debate institucional mais amplo, capaz de integrar as dimensões autoral, ética e de proteção de dados em um mesmo horizonte normativo. A harmonização entre inovação tecnológica e segurança jurídica permanece como um dos maiores desafios do século XXI.
Em síntese, o caso reafirma que a inteligência artificial, embora revolucione a forma de criar, não dissolve a centralidade da autoria humana. A decisão projeta um modelo de coexistência entre tecnologia e direito, em que a criatividade assistida pela máquina é reconhecida sem comprometer a estrutura jurídica da responsabilidade e da titularidade.
Nesse sentido, a experiência chinesa além de oferecer um precedente jurídico, também é um convite à reflexão global sobre os caminhos possíveis da regulação autoral na era da inteligência artificial.