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Deliberação normativa CONSEMA 01/24 e o licenciamento ambiental

O artigo discute os critérios da DN CONSEMA 01/24 para que municípios licenciem atividades de alto impacto, destacando o federalismo cooperativo e a necessidade de estrutura técnica qualificada.

18/11/2025
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Introdução

A proteção do meio ambiente no Brasil é um imperativo constitucional, elevado à categoria de direito fundamental e dever do Poder Público e da coletividade, conforme preconiza o art. 225 da CF/88, inclusive por meio da caracterização de um dever de cooperação entre os entes federativos, o que a doutrina pacificou chamar de “federalismo cooperativo ecológico” (SARLET, 2021). 

O exercício de tal federalismo cooperativo ecológico, portanto, pressupõe o compartilhamento de atribuições entre os entes públicos na execução de seus deveres constitucionais, afinal, como bem preceituado no art. 23, VI, da CF, é de todos os entes públicos a competência para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (BRASIL, 1988). 

É precisamente nesse contexto que surge a deliberação normativa CONSEMA 01/24, visando melhor disciplinar as hipóteses em que o município realizará os licenciamentos ambientais, em detrimento dos Estados e da própria União, como reflexo do exercício cooperativo desta competência comum. 

O presente estudo visa apresentar os requisitos para o licenciamento ambiental em âmbito municipal disciplinado pela deliberação normativa CONSEMA 01/24, identificando como tais normativas se adequam ao princípio da subsidiariedade e do federalismo cooperativo ecológico.

A competência compartilhada entre os entes no Direito Ambiental e a condição municipal em matéria de licenciamento ambiental

A doutrina majoritária (RAMIRES, 2024) e a jurisprudência consolidada interpretam o art. 225 como a pedra angular do Direito Ambiental brasileiro, conferindo-lhe caráter de norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que impõe uma responsabilidade solidária e compartilhada entre os diversos níveis da federação - União, Estados, Distrito Federal e municípios - na tutela ambiental.

Essa responsabilidade compartilhada é explicitada no art. 23 da CF, que elenca as competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Dentre elas, o inciso VI destaca a competência para "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas", e o inciso VII, para "preservar as florestas, a fauna e a flora". A natureza comum dessas competências implica que todos os entes federativos possuem o dever de atuar na proteção ambiental, sem hierarquia entre si, mas com a necessidade de coordenação e cooperação para evitar conflitos e lacunas na proteção.

A CF/88 estabeleceu, pela primeira vez na história brasileira, uma distinção clara entre a competência legislativa e a administrativa, o que trouxe profundas implicações para a gestão ambiental no país. No âmbito dessa separação, um dos temas mais sensíveis e conflituosos é, justamente, a repartição de competências entre os entes federativos (YOSHIDA, 2010).

Para regulamentar e harmonizar o exercício dessa competência comum, foi editada a LC 140, de 8/12/11. Esta lei fixa normas para a cooperação entre os entes federativos nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum em matéria ambiental, estabelecendo critérios para a definição da competência para o licenciamento ambiental. 

No que tange ao licenciamento ambiental, a referida norma é clara ao afirmar que “os empreendimentos e atividades são licenciados ou autorizados, ambientalmente, por um único ente federativo” (art. 13, LC 140/11). Isso elimina a possibilidade de licenciamento múltiplo, o qual “gera uma atividade paralela e descoordenada dos órgãos licenciadores” (BIM; FARIAS, 2015, p. 221), ocasionando conflitos, custos excessivos e insegurança jurídica.

A LC 140/11 adota o princípio da predominância do interesse (SARLET, 2021) como balizador para a atribuição de competências, de modo que o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades será exercido pelo ente federativo que possuir o interesse predominante na matéria.

Nesse contexto, o art. 9º da LC Federal 140/11 é de suma importância para a presente análise, ao dispor que:

Art. 9º são ações administrativas dos municípios: 

(...) XIII - exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida ao Município; XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);

No tocante ao papel dos municípios, sua competência administrativa é afirmada, mas deve respeitar critérios de interesse local e subsidiariedade. Como ressaltam Bim e Farias (2015) “os Municípios podem legislar sobre os temas ambientais de interesse predominantemente local, desde que respeitem as normas gerais que tiverem sido editadas pela União ou pelo Estado” (BIM; FARIAS, 2015, p. 206). Essa lógica também se aplica à esfera administrativa: os municípios têm prioridade na atuação sempre que estiverem mais próximos da realidade fática e possuírem a capacidade institucional adequada.

A predominância do interesse, nesse sentido, é visto como o substrato organizativo do federalismo (TORRES, 2001), devendo a função ambiental ser desenvolvida pelo nível de governo mais próximo da população. Isso implica reconhecer a importância da atuação municipal no licenciamento, especialmente em empreendimentos de impacto local, como posto pelo professor Iván Lanegra Quispe (2008, p. 96-97): “o governo nacional não deve assumir competências que podem ser cumpridas mais eficientemente pelos governos estaduais, e estes, por sua vez, não devem fazer aquilo que pode ser executado pelos governos municipais”.

Contudo, essa competência deve ser exercida com responsabilidade técnica e jurídica, pois a atuação desconectada de normas gerais Federais ou estaduais pode configurar usurpação de competência. Nesse ponto, é elucidativa a crítica de Andreas J. Krell (2005) à definição de “âmbito local” e a possibilidade de o município exacerbar todas as normas ambientais da União e dos Estados sob tal fundamento, o que resultaria em um esvaziamento de decisões políticas dos demais entes estatais.

Portanto, embora os municípios tenham papel relevante e ativo no licenciamento ambiental, sua atuação está condicionada ao respeito à legislação de normas gerais e à aplicação do princípio da predominância do interesse.

Precisa é a alínea “a”, do inciso XIV, do art. 9º da LC 140/11, ao estabelecer a competência no licenciamento ambiental pelos municípios desde que a tipologia dessas atividades seja definida pelos conselhos estaduais de meio ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade. 

Tal previsão reforça a autonomia municipal na gestão ambiental de seu território, ao mesmo tempo em que assegura a uniformidade e a coerência das políticas ambientais em nível estadual, por meio da atuação dos conselhos estaduais. 

Deliberação normativa CONSEMA 01/24: Requisitos para a habilitação dos municípios paulistas no licenciamento das atividades de tipologia alto impacto em âmbito local

A deliberação normativa CONSEMA 01/24 tem como objetivo regulamentar a competência dos municípios paulistas no exercício do licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local. Esta competência está amparada pelo art. 9º, inciso XIV, alínea “a”, da LC Federal 140/11, que delega ao CONSEMA - Conselho Estadual de Meio Ambiente a atribuição de fixar a tipologia desses empreendimentos.

O art. 1º da deliberação dispõe que “compete ao município ou consórcio público [...] o licenciamento ambiental de empreendimentos e de atividades executados em seu território que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local”, desde que observados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza das atividades estabelecidos em seus anexos. O conceito de “impacto ambiental de âmbito local” é definido no art. 2º, inciso I, como aquele “impacto ambiental direto que não ultrapassar o território do município”.

A tipologia de alto impacto ambiental de âmbito local está descrita no Anexo II da norma. Nessa classificação, encontram-se empreendimentos e atividades que, embora tenham efeitos restritos ao território municipal, envolvem maior complexidade ou risco ambiental. Exemplos incluem: obras viárias com significativo movimento de solo ou grandes áreas de desapropriação (item I.1a e I.1c do Anexo I), terminais logísticos de carga com área construída superior a 1 hectare (item I.1b), e complexos turísticos com capacidade superior a 5.000 pessoas por dia ou com área construída acima de 10 hectares.

Outras atividades classificadas como de alto impacto incluem intervenções em áreas ambientalmente sensíveis, como a “supressão de fragmento de vegetação nativa secundária do bioma Mata Atlântica em estágio médio de regeneração”, desde que haja “prévia anuência da CETESB, se localizado em área urbana” (Anexo II, item 9). Também se incluem as atividades industriais com área construída de até 10.000 m².

Entretanto, para que o município possa efetuar o licenciamento de tais atividades, é necessário que ele comprove possuir estrutura técnico-institucional adequada. A deliberação normativa CONSEMA 01/24, em seu art. 4º, elenca as estruturas mínimas que o município deve dispor para o exercício do licenciamento ambiental, independentemente do nível de impacto:

I - Órgão ambiental capacitado: O município deve possuir um órgão ambiental com capacidade para executar as ações administrativas concernentes ao licenciamento ambiental. Este órgão deve contar com técnicos próprios ou em consórcio, em número compatível com a demanda das ações.

II - Equipe multidisciplinar: É exigida uma equipe formada por profissionais qualificados, legalmente habilitados por seus respectivos órgãos de classe e com especialização compatível com as demandas do licenciamento.

III - Conselho Municipal de Meio Ambiente: O município deve ter um Conselho Municipal de Meio Ambiente de caráter normativo e deliberativo, com funcionamento regular. A composição desse conselho deve ser paritária, com representantes de órgãos do setor público e de entidades da sociedade civil, garantindo-se no mínimo 15% (quinze por cento) das cadeiras a entidades ambientalistas ou associações civis congêneres, e, dentro desse percentual, ao menos uma cadeira a representantes de povos e comunidades tradicionais, se existentes no município.

IV - Sistema de fiscalização e monitoramento ambiental: O município precisa dispor de um sistema que garanta o cumprimento das exigências e das condicionantes presentes nas licenças expedidas, com capacidade para imputar, se necessário, as sanções administrativas cabíveis.

V - Normas próprias: O município deve possuir normas próprias que estabeleçam os procedimentos administrativos a serem seguidos para protocolo, instrução, tramitação dos processos e emissão das licenças ambientais.

Adicionalmente, o art. 5º, § 1º, da deliberação normativa CONSEMA 01/24, reforça que, para o exercício da atividade de licenciamento ambiental, os órgãos municipais e consórcios públicos deverão contar, desde o início de sua atuação, com corpo técnico de agentes públicos concursados. Este requisito visa garantir a estabilidade, a imparcialidade e a qualificação do corpo técnico responsável pelas análises e decisões no processo de licenciamento.

Para a habilitação específica na tipologia de alto impacto ambiental de âmbito local, o art. 4º, § 1º, da deliberação normativa CONSEMA 01/24 remete às condições estabelecidas no Anexo III da mesma deliberação. O Anexo III, intitulado "Compatibilização dos Municípios com as Ações Administrativas Concernentes ao Licenciamento Ambiental", estabelece critérios rigorosos baseados no número de habitantes do município e na quantidade e especialização dos profissionais que compõem a equipe multidisciplinar.

Para os municípios paulistas com o número de habitantes superior a 500.000, apenas será possível a realização de licenciamentos ambientais da tipologia de alto impacto caso exista uma equipe multidisciplinar formada por 10 ou mais membros. municípios com população acima de 60.000 e menor ou igual a 500.000 habitantes, por sua vez, deverão possuir uma equipe multidisciplinar de 8 ou mais membros. Ainda, municípios com população menor ou igual a 60.000 habitantes, deverão comprovar a existência de equipe multidisciplinar com 6 ou mais membros.

Além da quantidade mínima, a qualificação dos profissionais também é disciplinada pela deliberação. A equipe deve ser composta por profissionais legalmente habilitados pelos seus respectivos conselhos de classe e com formação compatível com a análise dos aspectos ambientais dos empreendimentos. Especificamente, o §3º do art. 4º exige que o corpo técnico possua “pelo menos 01 (um) profissional habilitado para análise de cada um dos meios: físico, biótico e socioeconômico”.

Além disso, conforme o art. 4º, inciso II, a especialização compatível dos membros da equipe é obrigatória. Isso reforça o compromisso com a qualidade técnica e a segurança jurídica nas decisões administrativas municipais no âmbito do licenciamento ambiental.

Por fim, vale destacar que, no caso de municípios consorciados, a equipe multidisciplinar poderá ser formada de maneira conjunta e atender coletivamente a todos os municípios integrantes, conforme dispõe o §2º do art. 5º. A soma das populações dos municípios consorciados será considerada para definir a exigência da quantidade de profissionais da equipe.

Conclusão

A deliberação normativa CONSEMA 01/24 representa um marco importante no fortalecimento da autonomia municipal para a gestão ambiental no Estado de São Paulo, sobretudo no que se refere ao licenciamento de atividades de alto impacto ambiental de âmbito local. Ao estabelecer critérios objetivos, como o porte do município, a composição da equipe técnica e a existência de estruturas institucionais adequadas, a norma confere maior segurança jurídica à repartição de competências.

Além disso, a exigência de equipe multidisciplinar devidamente qualificada e a necessidade de um conselho municipal com representação da sociedade civil evidenciam a valorização do controle técnico e social no processo de licenciamento, em consonância com os princípios da participação democrática e do desenvolvimento sustentável. O respeito ao princípio da predominância do interesse reforça o protagonismo dos entes locais, desde que devidamente preparados para exercer tal competência.

Dessa forma, a deliberação se alinha à lógica do federalismo cooperativo ecológico, promovendo uma atuação descentralizada, porém coordenada e responsável, entre os diferentes níveis de governo, com o objetivo de assegurar uma proteção ambiental eficaz e eficiente.

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BIM, Eduardo Fortunato. Environmental competence: legislative and administrative. Revista de informação legislativa, v. 52, n. 208, p. 203-245, out./dez. 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.

BRASIL. Lei Complementar n.º 140, de 8 de dezembro de 2011. Fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 dez. 2011.

COSTA RAMIRES, C. Licenciamento ambiental: entrave ou referência de sustentabilidade? Revista Eletrônica Direito e Política, [S. l.], v. 10, n. 2, p. 946-974, 2015. DOI: 10.14210/rdp.v10n2.p946-974. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/rdp/article/view/7484. Acesso em: 26 set. 2024.

KRELL, Andreas J. Autonomia municipal e proteção ambiental: critérios para definição das competências legislativas e das políticas locais. In: A APLICAÇÃO do direito ambiental no Estado federativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 185.

QUISPE, Iván K. Lanegra.  El (Ausente) Estado ambiental: razones para la reforma de las instituciones y las organizaciones públicas ambientales en el Perú.  Lima: Realidades, 2008

SÃO PAULO (Estado). Deliberação Normativa CONSEMA nº 01, de 5 de março de 2024. Estabelece as tipologias de empreendimentos e atividades que caracterizam impacto ambiental local e os critérios para o exercício da competência municipal no licenciamento ambiental. Disponível em: https://semil.sp.gov.br/consema/#1693577990190-f77c7b51-2efc. Acesso em: 27 jun. 2025. 

SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Ambiental - 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 801. 

TORRES, Silvia Faber.  O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Critérios de definição de competências em matéria ambiental na estrutura federativa brasileira.  In: RASLAN, Alexandre Lima (Org.).  Direito ambiental.  Campo Grande: UFMS, 2010, p. 219-243.

Autor

Leonardo Saar Melo Procurador Municipal. Mestrando em Gestão Ambiental e Sustentabilidade pela UFScar. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduado em Direito Administrativo e Gestão Pública.

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