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PDL 3/25 e a revogação da resolução 258/24 do Conanda

O estudo examina o PDL 3/25, que susta a resolução 258/24 do Conanda, retrocedendo na proteção de meninas vítimas de violência sexual e restringindo o acesso ao aborto legal previsto em lei.

19/11/2025

1. Aprovação e tramitação do PDL 3/25

Em novembro de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou o PDL 3/25, de autoria da deputada Chris Tonietto (PL/RJ), que susta integralmente os efeitos da resolução 258/24 do Conanda -  Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

O PDL ainda não possui força normativa. Após sua aprovação na Câmara, ele segue para análise do Senado Federal, onde será apreciado pela CDH - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa e, posteriormente, pelo plenário do Senado. Caso seja aprovado sem alterações, o texto é promulgado pelo Congresso Nacional, dispensando sanção presidencial, conforme o art. 49, V, da Constituição Federal, que confere competência ao Legislativo para sustar atos normativos do Executivo que exorbitem o poder regulamentar.

Portanto, a tramitação atual encontra-se em fase de revisão pelo Senado Federal, e ainda não há revogação definitiva da resolução 258/24. Entretanto, os efeitos políticos e simbólicos da aprovação na Câmara já provocam insegurança institucional e retrocesso discursivo sobre os direitos das meninas e adolescentes vítimas de violência sexual.

2. O que o PDL 3/25 prevê

De forma resumida, o PDL 3/25 revoga integralmente a resolução 258/24 do Conanda, publicada em 23/12/24.

A justificativa apresentada pelos autores é que o aborto legal não se trata de um direito, mas tão somente da excludente de ilicitude, quando praticado em situações de violência sexual, e que, portanto, o Estado não pode atuar como promotor do abortamento, ainda que em situações de estupro.

O projeto de decreto legislativo também implica com a ideia da menina com menos de 14 anos gestante, realizar aborto sem autorização dos pais, ainda que sabendo, que toda e qualquer pessoa até 14 anos gestante, é indiscutivelmente vítima de estupro, por tratar-se de tipo penal específico – estupro de vulnerável. Pondera nessas circunstâncias o risco a saúde da menina, desconsiderando o contexto de violência submetido.

O projeto também argumenta que a resolução permite que o aborto nessas ocasiões seja feito independente da lavratura de boletim de ocorrência, o que seria obstáculo necessário a partir da perspectiva propositiva.

Além disso fala do direito do médico, da liberdade profissional, e finaliza compreendendo que a resolução é um ataque a vida dos bebês inocentes.

3. O que previa a resolução 258/24 do Conanda

A resolução 258/24 consolidava parâmetros técnicos, éticos e de direitos humanos para o atendimento a meninas e adolescentes vítimas de violência sexual, fundamentando-se na Constituição Federal, no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente e em tratados internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a CEDAW (1979).

Entre seus principais dispositivos, destacam-se:

Essa resolução não criava hipóteses legais de aborto, mas apenas operacionalizava direitos já previstos no ordenamento jurídico (art. 128 do CP e lei 12.845/13, conhecida como “lei do minuto seguinte”).

Em síntese, ela buscava proteger crianças e adolescentes vítimas de estupro, garantir atendimento integral e humanizado, e prevenir novas violações por meio de políticas públicas, educação e informação.

4. Impactos da revogação e importância da manutenção da resolução

A revogação da resolução 258/24 representa um retrocesso jurídico e social grave em pelo menos três dimensões:

a) Jurídica

A norma não extrapolava competência do Conanda, mas exercia função consultiva e orientadora, prevista no decreto 9.579/18, que consolida normas relativas aos direitos da criança e do adolescente. Ao sustá-la, o PDL fragiliza a capilaridade da proteção e desarticula diretrizes intersetoriais de saúde, assistência social e educação.

b) Institucional

O PDL desmonta um instrumento de governança pública que promovia uniformização de condutas entre os serviços de atendimento às vítimas. Sem essas diretrizes, cada unidade de saúde ou conselho tutelar passa a interpretar individualmente os limites da política de proteção, abrindo espaço para omissões, censura institucional e revitimização.

c) Social

A revogação ameaça milhares de meninas e adolescentes que sofrem violência sexual, muitas delas, e principalmente em sua maioria, em contextos de vulnerabilidade extrema e sem compreensão plena da própria condição de vítima. Essa invisibilidade reforça a necessidade de políticas públicas educativas e preventivas, exatamente como previa a resolução 258/24.

Dados do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, 2023) e do UNICEF revelam que o Brasil é o quarto país do mundo em número absoluto de casamentos infantis, com cerca de 877 mil mulheres entre 20 e 24 anos que se casaram antes dos 15 anos.

Além disso, levantamento da Fiocruz e da UFMG indica que 26 meninas menores de 14 anos dão à luz todos os dias no país, e em 2023 foram quase 14 mil partos nessa faixa etária. A maioria dessas gravidezes é decorrente de estupro de vulnerável, conforme o art. 217-A do CP.

Contudo, apenas 11 casos resultaram em aborto legal autorizado, segundo a Agência Brasil (2023). Isso significa que mais de 99% das meninas vítimas foram obrigadas a levar a gestação adiante, muitas vezes em decorrência de falta de informação, medo, omissão estatal ou resistência institucional.

Ao condicionar o acesso ao aborto legal à apresentação de boletim de ocorrência ou autorização judicial, como pretendem os defensores do PDL, cria-se uma barreira intransponível. Muitas dessas meninas nem sabem que foram violentadas, pois estão em relações assimétricas travestidas de “casamento” - prática ainda comum em áreas rurais e periferias urbanas. Medida essa travestida de defesa a vida e a autonomia, que esconde a falência do Estado em seu mister de promover a garantia de condições dignas de vida, não apenas para as crianças, mas para toda familia, inclusive a mãe, que possivelmente suportará sozinha o ônus da vida gerada a partir de um ato criminoso.

Compreender como natural casamento e gestações antes dos 14 anos é invalidar um dispositivo legal - estupro de vulnerável - alcançado com muita resiliência visando a proteção de situações corriqueiras e trágicas do nosso país.

A exigência de B.O. ou consentimento parental nessas situações é incompatível com a realidade social e com o dever constitucional de proteção integral, pois frequentemente o agressor é o próprio responsável legal, e distante, da maioria das vítimas que são impactadas por esta resolução, e que sem sombra de dúvidas vivem realidades diferentes dos deputados que propuseram a sustação de seus efeitos.

Tais dados revelam que a criminalização indireta do aborto legal e a revogação de políticas de conscientização produzem não apenas sofrimento individual, mas mantêm um ciclo institucional de violência contra meninas que o Estado tem o dever constitucional de interromper.

5. A defesa da vida e o papel do Estado

O discurso de que o PDL “defende a vida” não resiste à análise fática nem jurídica.

Forçar uma criança de 10, 11 ou 12 anos, evidenciamos, vítima de estupro, a manter uma gestação não é defender a vida, é impor sofrimento físico e psicológico e perpetuar a violência.

A verdadeira defesa da vida está na atuação do Estado para prevenir a violência, garantir informação, acolhimento e atendimento adequado.

A resolução 258/24 cumpria exatamente esse papel: proteger as vítimas antes que o dano se perpetuasse. Suas campanhas educativas, baseadas em ciência e direitos humanos, não ameaçavam a família, ao contrário, promoviam uma cultura de cuidado, respeito e prevenção, pilares de qualquer sociedade democrática.

Essa omissão não é apenas moralmente reprovável, mas constitucionalmente vedada, pois o Estado brasileiro tem o dever de assegurar, com prioridade absoluta, a proteção integral de crianças e adolescentes (CF, art. 227), se falhou no curso, deve reparar quando necessário. e, quando falhar na prevenção, deve reparar por meio de acolhimento, acesso a serviços e políticas públicas eficazes.

6. Conclusão

A aprovação do PDL 3/2025 pela Câmara dos Deputados marca um momento de inflexão na política de proteção à infância no Brasil. Embora a sustação da resolução “não elimine o direito ao aborto legal”, ela cria entraves práticos e viola o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).

Ao revogar a resolução 258/24 do Conanda, o Parlamento retira do Estado instrumentos de prevenção, educação e acolhimento, substituindo a proteção integral pela omissão institucional.

A manutenção da resolução é essencial para garantir a efetividade dos direitos fundamentais das meninas e adolescentes, especialmente o direito à vida digna, à saúde e à liberdade reprodutiva, previstos na Constituição Federal, no ECA, na lei 12.845/13 e em tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Trata-se de reconhecer que o Estado tem dever jurídico e moral de zelar pela vida das vítimas, não de puni-las com uma maternidade forçada ou com o silêncio.

Preservar a resolução 258/24 é preservar a infância como lugar de proteção, não de culpa, e reafirmar que a vida das meninas importa em todas as suas dimensões: física, emocional, social e simbólica.

__________

AGÊNCIA BRASIL. Meninas mães passam de 14 mil e só 11 tiveram acesso ao aborto legal. Brasília: EBC, 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-05/meninas-maes-passam-de-14-mil-e-so-11-tiveram-acesso-aborto-legal. Acesso em: 11 nov. 2025.

BRASIL. Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940). Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1940.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre os direitos da criança e do adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 nov. 2018.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.

BRASIL. Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013.

BRASIL. Resolução nº 258, de 23 de dezembro de 2024. Dispõe sobre diretrizes para a proteção integral de crianças e adolescentes em situação de violência sexual e sobre o acesso à interrupção legal da gestação e à educação sexual. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 dez. 2024.

BRASIL. Projeto de Decreto Legislativo nº 3, de 2025. Susta os efeitos da Resolução nº 258, de 2024, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2481893. Acesso em: 11 nov. 2025.

FUNDO DE POPULAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (UNFPA). Casamento infantil no Brasil: panorama e desafios. Brasília: UNFPA, 2023. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br.

FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF). Relatório sobre casamentos e uniões precoces no Brasil. Brasília: UNICEF, 2023.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ; UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Gravidez infantil no Brasil: dados e análises sobre partos de meninas de 10 a 14 anos. Belo Horizonte: UFMG/FIOCRUZ, 2023.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção sobre os Direitos da Criança. Nova York: ONU, 1989.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Nova York: ONU, 1979.

Bruna Sales
Mestra em Direito Público (UFAL), advogada e pesquisadora em gênero, famílias e direitos fundamentais. Vice-presidenta da AMADA e diretora da CAA/OAB-AL.

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