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A OAB e a reconstrução democrática - Os presidentes entre 1977 e 1989

A história da OAB entre 1977 e 1989 revela presidentes que impulsionaram a redemocratização e fortaleceram a defesa das liberdades e do Estado de Direito.

17/11/2025

A partir do final dos anos 1970, em meio ao desgaste do regime autoritário, às denúncias de violações de direitos humanos e ao clamor crescente por participação popular, a OAB passou a ser não apenas a casa da advocacia, mas também um dos principais polos de articulação da sociedade civil em defesa das liberdades públicas e do Estado de Direito. Era o início de um capítulo decisivo: a travessia da noite autoritária para a aurora da Constituição de 1988.

É nesse cenário que se inscreve o ciclo de presidentes do Conselho Federal entre 1977 e 1989. Raymundo Faoro (1977-1979), Eduardo Seabra Fagundes (1979-1981), Bernardo Cabral (1981-1983), Mário Sérgio Duarte Garcia (1983-1985), Hermann Assis Baeta (1985-1987) e Márcio Thomaz Bastos (1987-1989), cada qual a seu modo, ajudou a empurrar as portas da democracia.

Ao rememorar essas gestões, na passagem dos 95 anos da entidade, não se trata de exaltar biografias individuais, mas de compreender como a atuação firme e altiva da Ordem ajudou a abrir caminho para a redemocratização do país, reafirmando a advocacia como vocação pública e compromisso permanente com o Estado Democrático de Direito.

Raymundo Faoro: a crítica do poder patrimonialista

Raymundo Faoro chegou à presidência da OAB em 1977 trazendo consigo não apenas o prestígio de um grande advogado, mas também a autoridade intelectual do autor de Os Donos do Poder, obra em que desnudou as raízes patrimonialistas do Estado brasileiro.

À frente da Ordem entre 1977 e 1979, em plena vigência dos Atos Institucionais, Faoro transformou a sede da OAB, no Rio de Janeiro, em um centro de mobilização cívica contra o autoritarismo. Sob sua liderança, a entidade assumiu posição firme pela revogação dos instrumentos de exceção, pressionando pelo restabelecimento do habeas corpus e por uma abertura política efetiva.

Mais do que notas oficiais, sua gestão legou um estilo: o de uma Ordem que não temia confrontar o arbítrio, mas o fazia com serenidade jurídica e coragem cívica. Faoro demonstrou que a advocacia, quando se ergue em defesa das liberdades, fala em nome de toda a sociedade – não de um partido ou de um governo.

Eduardo Seabra Fagundes: coragem sob ameaça

Em 1979, assumiu a presidência Eduardo Seabra Fagundes, num dos momentos mais sombrios para a advocacia. Seu mandato foi marcado pelo atentado à bomba de 27 de agosto de 1980, quando uma carta endereçada ao presidente da Ordem explodiu na sede do Conselho Federal, matando sua secretária, Lyda Monteiro da Silva.

Aquele crime, concebido para intimidar, teve efeito oposto: consolidou a autoridade moral da OAB. Sob a liderança de Seabra Fagundes, a entidade denunciava desaparições, torturas e prisões políticas, criando uma Comissão de Direitos Humanos no Conselho Federal para acompanhar violações e dar visibilidade às vítimas do regime.

Se Lyda Monteiro tornou-se símbolo do preço pago pela defesa das liberdades, Seabra Fagundes personificou o dever de não recuar. Em vez de silenciar, a Ordem ergueu a voz – e, com isso, conquistou ainda mais o respeito da cidadania.

Bernardo Cabral: a semente da Constituinte

Em 1981, caberia a Bernardo Cabral suceder a Seabra Fagundes. Amazonense, advogado e futuro relator da Constituição de 1988, ele presidiu o Conselho Federal entre 1981 e 1983. Nesse período, o plenário da OAB assumiu posição inequívoca: lutar pela revogação da Lei de Segurança Nacional, instrumento jurídico que servia à perseguição de opositores, jornalistas e estudantes.

Cabral também defendeu com vigor a necessidade de um processo constituinte que refundasse o pacto democrático brasileiro, insistindo no aprimoramento do ensino jurídico e na formação de novas gerações de advogados comprometidos com a Constituição que ainda viria.

Naquele começo de década, a OAB passou a falar não apenas contra o que existia – o regime de exceção –, mas a favor do que ainda não existia plenamente: uma ordem constitucional aberta à dignidade da pessoa humana e às liberdades públicas.

Mário Sérgio Duarte Garcia: as ruas pelas Diretas Já

Entre 1983 e 1985, a Presidência do Conselho Federal foi exercida por Mário Sérgio Duarte Garcia, paulista que simbolizou a aproximação definitiva entre a Ordem e os grandes movimentos populares. Sob sua condução, a OAB assumiu protagonismo na campanha das Diretas Já, tornando-se uma das principais articuladoras do Comitê Suprapartidário que coordenou o movimento em nível nacional.

Ao lado de entidades de classe, sindicatos, artistas, intelectuais e lideranças políticas, Duarte Garcia ajudou a levar milhões de brasileiros às praças em defesa do voto direto para presidente. A OAB deixou os gabinetes e ocupou as ruas, sem perder sua natureza institucional. A voz da advocacia confundia-se, então, com o clamor de um povo que reivindicava o direito elementar de escolher seus governantes.

Se a emenda das Diretas foi derrotada no Congresso, a derrota parlamentar não significou derrota moral. A campanha abriu caminho para a eleição indireta de Tancredo Neves e consolidou a Ordem como um dos pilares da redemocratização.

Hermann Assis Baeta: a Ordem vai a Brasília

A redemocratização em curso, contudo, exigia também símbolos institucionais. Entre 1985 e 1987, já sob a presidência de Hermann Assis Baeta, a OAB deu um passo histórico: concretizou a transferência de sua sede do Rio de Janeiro para Brasília, mandamento previsto desde 1963, mas resistido por décadas.

A decisão foi amadurecida na Conferência Nacional de Belém, em 1986, e consumada em 15 de setembro daquele ano, quando o Conselho Federal passou a funcionar provisoriamente na sede da Seccional do Distrito Federal. Poucos meses depois, foi lançada a pedra fundamental da Casa do Advogado, na Praça dos Tribunais Superiores, projetando a presença permanente da OAB no coração da República.

Baeta também se destacou na defesa dos direitos humanos e em questões fundiárias, levando a voz da Ordem às periferias urbanas e ao campo, onde conflitos agrários ceifavam vidas e testavam os limites do Estado de Direito. Ao lado de outras lideranças da época, foi ardoroso defensor de uma Assembleia Nacional Constituinte soberana, rejeitando fórmulas híbridas que pudessem submeter a nova Constituição a arranjos autoritários do passado.

Márcio Thomaz Bastos: a advocacia na Constituinte

O ciclo se completa, entre 1987 e 1989, com a presidência de Márcio Thomaz Bastos, um dos maiores criminalistas do país. Formado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, ele já havia participado ativamente da OAB paulista e do movimento das Diretas, antes de assumir o comando do Conselho Federal justamente no período em que se instalava a Assembleia Nacional Constituinte e se preparava a promulgação da nova Constituição.

Sob sua liderança, a OAB tornou-se presença constante nos trabalhos constituintes. A Ordem levou minutas de dispositivos, pareceres, emendas e sugestões de formulação, contribuindo para o desenho do amplo catálogo de direitos e garantias fundamentais, para o fortalecimento dos instrumentos de controle do poder e para a criação de novos remédios constitucionais. Foi nesse ambiente de intensa interlocução com o Parlamento que ganharam corpo, entre outros institutos, o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, o habeas data, a legitimação para ações coletivas e a ampliação dos mecanismos de controle de constitucionalidade – ferramentas que hoje estruturam a defesa de direitos em face do Estado e dos poderes econômicos.

A advocacia e a própria OAB também passaram a ocupar lugar expresso na nova ordem constitucional. A Carta de 1988 elevou o advogado à condição de função essencial à justiça, proclamando-o indispensável à administração da justiça e assegurando a inviolabilidade de seus atos e manifestações no exercício profissional. Reconheceu, ainda, a assistência jurídica integral aos necessitados como dever do Estado e conferiu à OAB legitimidade para provocar o controle concentrado de constitucionalidade, inserindo a instituição no rol dos guardiões formais da Constituição. Não se tratou de privilégio corporativo, mas do reconhecimento de que a efetividade dos direitos fundamentais exige uma advocacia independente, com prerrogativas protegidas e instituições capazes de enfrentar o arbítrio em nome da sociedade.

No plano interno, a gestão de Márcio Thomaz Bastos deixou marcas administrativas relevantes, como a criação do Departamento de Pesquisas e Estatísticas e a institucionalização do Colégio de Presidentes de Seccionais, medidas que contribuíram para profissionalizar a gestão e aproximar ainda mais o Conselho Federal das seccionais. Ao final da Constituinte e com a promulgação da Constituição de 1988, a OAB saía fortalecida não apenas por ter influenciado o texto da nova Carta, mas por ter ajudado a consolidar uma cultura de direitos e garantias que até hoje sustenta a democracia brasileira.

Um legado para o presente

Ao olhar, em perspectiva, as gestões que se sucederam de 1977 a 1989, vê-se mais do que uma sequência de biografias ilustres. Enxerga-se uma linha contínua de compromisso: Faoro enfrentando a lógica patrimonialista do poder; Seabra Fagundes resistindo mesmo sob ameaça de morte; Cabral semeando a ideia de uma Constituinte; Mário Sérgio levando a Ordem às ruas pelas Diretas; Baeta fixando a OAB no centro institucional do país; e Thomaz Bastos ajudando a escrever, com a advocacia, a Constituição de 1988.

Nos 95 anos da Ordem dos Advogados do Brasil, lembrar esse percurso não é exercício de nostalgia, é um chamado à responsabilidade. A OAB ajudou a reconstruir, tijolo por tijolo, o edifício democrático brasileiro. A democracia, que custou tão caro a essas gerações, não se preserva por inércia. Exige instituições independentes, cidadãos vigilantes e uma advocacia consciente de que sua missão ultrapassa os autos do processo.

O exemplo desses presidentes é inspiração para a advocacia do presente e do futuro, a continuar defendendo, com firmeza e serenidade, aquilo que dá sentido à própria existência da OAB: a dignidade da pessoa humana, o Estado de Direito e as liberdades públicas que fazem da Constituição um compromisso vivo com o futuro do país.

Marcus Vinicius Furtado Coêlho
Membro da comissão que elaborou o projeto do atual CPC. Doutor pela Universidade de Salamanca, membro do Instituto Ibero Americano de Direito Processual, ex-presidente nacional da OAB e presidente da Comissão Constitucional da entidade.

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