No primeiro diálogo entre os personagens principais da obra de Mary Shelley, a criatura suplica pelo amparo de Victor Frankenstein: “Lembre-se de que você me criou. Eu deveria ser o seu Adão, mas sou mais como o anjo caído, que você afastou de toda alegria sem que eu tivesse feito nada de errado. Vejo felicidade por todos os lados, mas eu, sozinho, estou irrevogavelmente excluído dela.” (SHELLEY, 1818, p. 103).
"Frankenstein", publicado pela primeira vez em janeiro de 1818 com o título "Frankenstein", ou o "Prometeu Moderno", é considerado um dos grandes clássicos da literatura. Sob a aparência de um enredo de terror e experimentos científicos, Mary Shelley constrói uma narrativa voltada a dilemas mais profundos da existência humana.
Seu enredo e seus personagens são substancialmente diferentes daquele imaginário enraizado na cultura popular. É recorrente o equívoco de associar o nome “Frankenstein” a um monstro verde, remendado e desprovido de inteligência. Victor Frankenstein é, na verdade, o jovem cientista que, em seus experimentos, descobre o segredo da origem da vida e cria um novo ser humano a partir de pedaços de corpos recém-enterrados e matéria morta reanimada.
Após dois anos dedicados à construção dessa estrutura corporal, Frankenstein dá vida a um homem de grande estatura, pele amarelada e lábios escuros. No livro, ele jamais recebe um nome: é apenas a criatura. E, no instante em que abre os olhos e respira, seu criador é tomado pelo horror: “Incapaz de suportar o aspecto do ser que eu criara, saí correndo do quarto e passei muito tempo sem conseguir aquietar a mente. (...) Nem uma múmia trazida de volta à vida seria tão horrível quanto aquela criatura miserável.” (SHELLEY, 1818, p. 50-51).
Assustado, Victor Frankenstein foge, abandonando sua criação no quarto onde ela acabara de “nascer".
A criatura, entretanto, permanece viva e, abandonada à própria sorte, aprende por conta própria gestos, sons e palavras, observando o mundo e tentando compreender sua existência. Quando finalmente reencontra seu criador, descreve a profunda miséria de viver sem pertencer a lugar algum e a percepção de ter sido rejeitada desde o primeiro instante. Pede a Frankenstein ajuda e companhia, na esperança de aliviar a solidão que o consome.
A narrativa avança para mortes, perseguições e desdobramentos trágicos, mas minha intenção aqui não é reconstruir a história em detalhes. Interessa tomar a experiência de origem sem pertencimento vivida pela criatura como ponto de partida para uma reflexão sobre parentalidade e sobre os deveres jurídicos de cuidado que recaem sobre quem chama alguém à existência.
Os encontros e diálogos entre Victor Frankenstein e sua criatura ilustram a dor do desprezo e do abandono. A meu ver, isso torna a obra uma metáfora especialmente expressiva. A relação entre o cientista e o ser que ele próprio trouxe ao mundo é inescapável, ainda que negada. A angústia daquele que passa a existir sem qualquer amparo, e a recusa do criador em assumir responsabilidades, encontram paralelo nas situações reais em que filhos enfrentam a ausência profunda de seus genitores ou responsáveis.
Ninguém se basta nos primeiros passos da vida. O Direito reconhece isso quase universalmente: ao nascer, toda criança depende de um adulto que assuma sua formação, sua proteção e seu desenvolvimento. A linguagem da dignidade da pessoa humana, que hoje parece quase um lugar-comum, buscou afirmar o valor intrínseco de toda vida humana e a necessidade de protegê-la contra abusos e omissões.
Foi a partir desse horizonte ético que a infância ganhou proteção específica no plano internacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e, depois, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 consolidaram a compreensão de que toda criança é sujeito de direitos e merece tutela especial da família, da sociedade e do Estado.
Com esse movimento, os debates sobre dever familiar, abandono, vínculos parentais e responsabilidade ganharam nova densidade. Tornou-se mais claro que, por muito tempo, a parentalidade havia sido compreendida quase exclusivamente pela lógica da autoridade e da transmissão patrimonial, e não como compromisso cotidiano com o desenvolvimento da criança. A mudança de perspectiva que se desenha a partir daí permite reconhecer como essenciais à parentalidade dimensões como cuidado, proteção e uma mínima tessitura afetiva que dê sentido a esses deveres.
No entanto, essa mudança de perspectiva revela uma tensão que precisa ser compreendida com calma. A psicologia do desenvolvimento sugere que, para crescer de forma saudável, uma criança não precisa apenas de proteção física e material. Ela também precisa sentir que pertence a alguém, precisa de vínculo, atenção e afeto. Esses elementos influenciam diretamente o modo como ela interpreta a si mesma e o mundo à sua volta.
E é justamente aqui que surge o ponto delicado: no âmbito jurídico, o “afeto” funciona como valor normativo, não como sentimento exigível. O Direito não alcança o território das emoções e não tutela o afeto sentido, porque afeto não é mensurável, verificável ou aplicável como obrigação. O que o Direito consegue tutelar são atos de cuidado concretos, aqueles que sustentam o desenvolvimento da criança. Presença mínima, proteção, orientação, participação real no seu cotidiano.
Por isso não se fala em um “direito de ser amado”, mas em um direito de ser cuidado, isto é, o direito de receber os gestos que tornam possível uma infância digna. Esses gestos se traduzem em deveres objetivos: alimentar, educar, proteger fisicamente, assegurar convivência familiar, participar de decisões importantes, estar verdadeiramente presente na vida da criança. É esse o campo em que o ordenamento jurídico atua: o dos atos concretos e das responsabilidades verificáveis.
Na vida concreta, claro, é comum que amor e cuidado caminhem juntos. Mas, em termos jurídicos, o que se exige é o cuidado, único critério normativo possível. Esse parece ser o ponto mais alto que conseguimos formular até agora: conter omissões e impedir certas ausências capazes de ferir a formação humana.
No Brasil, a Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente adotam a proteção integral e a prioridade absoluta como fundamentos da tutela da infância. Isso significa que toda criança tem direito a condições básicas de existência, à preservação de sua integridade física e psíquica e à convivência familiar e comunitária.
A partir desses princípios, o ordenamento jurídico estabelece que pais e responsáveis devem prover alimentação, moradia, saúde e educação, garantir cuidados cotidianos, proteger a criança de negligência e assegurar sua convivência familiar, mantendo presença mínima e não dificultando injustificadamente o contato com o outro genitor. A ausência total desses cuidados configura omissão juridicamente lesiva.
Quando uma criança nasce, ela passa a depender objetivamente de cuidados e proteção. Quando esses cuidados faltam, entramos no campo da responsabilidade jurídica.
E é justamente nesse ponto que voltamos a mencionar “Frankenstein”. Mesmo duzentos anos após sua publicação, a obra ilumina essa discussão de modo singular ao mostrar que dar vida, por si só, não esgota o dever de quem introduz alguém na existência.