Migalhas de Peso

Netflix aponta caminho para equilibrar inovação tecnológica e autoria humana

Plataforma de streaming estabelece regras para IA na produção audiovisual, garantindo ética, supervisão humana, proteção de direitos e colaboração criativa segura.

19/11/2025
Publicidade
Expandir publicidade

O debate sobre o uso de IA - inteligência artificial generativa na criação de conteúdos audiovisuais é, sem dúvidas, um dos mais instigantes - e controversos - da indústria criativa atualmente. Se, de um lado, a tecnologia promete ganhos de eficiência, redução de custos e novas possibilidades artísticas, de outro, levanta preocupações legítimas, desde a substituição de artistas e a diluição da autoria humana até questões éticas e jurídicas envolvendo direitos autorais, de imagem e manipulação da realidade. 

Em meio a esse cenário, a Netflix recentemente publicou em seu site institucional, na seção Partner Help Center, o documento intitulado “Using Generative AI in Content Production” que consolida suas diretrizes internas para o uso de IA generativa (GenAI) em todo o ciclo de produção de conteúdo audiovisual. Mais que um manual de boas práticas, o documento representa uma declaração de princípios de um dos maiores players, em escala global, do entretenimento: a IA deve ser utilizada como ferramenta colaborativa, e não como substituta da criatividade e do trabalho humano.  

Em linhas gerais, a Netflix estabelece um conjunto de princípios básicos sobre o uso da IA generativa: 

  • Proteção de direitos de terceiros: O conteúdo gerado não deve replicar ou recriar características identificáveis de materiais de terceiros ou protegidos por direito autoral sem autorização expressa.
  • Controle sobre a origem dos dados: As ferramentas não podem armazenar, reutilizar ou treinar seus modelos com dados protegidos, confidenciais ou proprietários.  
  • Segurança da informação: A IA deve ser usada em um ambiente corporativo seguro (enterprise-secured environment), que assegure a proteção dos dados de entrada (inputs) e saída (outputs). 
  • Caráter temporário: Os materiais e conteúdos gerados por IA devem ser em regra, temporários, servindo como apoio criativo, referência visual ou prototipagem, e não utilizados nas entregas finais da produção.  
  • Talento humano como prioridade: A IA generativa não pode substituir ou replicar performances, vozes ou imagens de atores, roteiristas ou demais profissionais representados por sindicatos, salvo mediante consentimento específico e documentado. 

Ou seja, a Netflix não proíbe o uso de IA. Pelo contrário: incentiva e direciona o seu uso responsável, priorizando a intervenção humana e o respeito aos direitos intelectuais e de personalidade. 

Há, contudo, circunstâncias específicas que demandam encaminhamento formal e aprovação expressa antes do uso da IA, configurando uma abordagem de compliance criativo

  • Uso de dados: é vedada a inserção de materiais de propriedade da Netflix, tampouco dados pessoais, exceto com aprovação explícita. Também é proibido o treinamento de modelos com obras ou performances de artistas e titulares de direitos.  
  • Conteúdo criativo (outputs): Não devem ser usados mecanismos de IA para gerar personagens principais, elementos visuais essenciais ou ambientes ficcionais que sejam centrais à história sem autorização expressa. Mesmo prompts que façam referência a obras protegidas devem ser evitados.  Ou seja, a tecnologia deve ser utilizada como material de apoio durante o processo criativo, e não como elemento central das obras.  
  • Talentos e atuações: Quando a intenção ou o tom emocional de uma atuação possa ser significativamente alterado, o cuidado deve ser excepcionalmente alto. Réplicas sintéticas ou digitais, com alteração de vozes, intérpretes ou aparências, não devem ser realizadas sem o consentimento explícito e documentado, vinculado à supervisão humana adequada.   
  • Ética e representação: O público deve confiar na autenticidade do que vê e ouve. A GenIA não deve ser utilizada para obscurecer os limites entre ficção e realidade ou induzir os espectadores em erro quanto à natureza ou à origem das imagens e sons exibidos. Transparência é requisito essencial. Igualmente, a ferramenta não deve substituir ou impactar o trabalho de profissionais representados por sindicatos (como atores, roteiristas ou membros da equipe).

A mensagem subjacente, portanto, é clara: a IA não deve competir com a criatividade humana, e sim colaborar com ela.  

Esse aspecto é central do ponto de vista jurídico. Os direitos autorais sempre partiram da premissa de que existe um criador humano, titular dos direitos sobre a obra. Como um ente de IA não é - ao menos sob a legislação vigente - sujeito de direitos, todo resultado gerado por sistemas automáticos deve ser revisto, integrado e validado por pessoas humanas. Ao que tudo indica, a Netflix, ao enfatizar a supervisão humana e o consentimento expresso de talentos, reafirma a necessidade de intermediação criativa e responsabilidade editorial. 

Além disso, ao exigir o uso de ferramentas com padrões elevados de conformidade e segurança, a empresa induz um movimento de autorregulação tecnológica, pressionando os fornecedores de IA a adotar bases de dados lícitas e modelos mais transparentes. 

Em síntese, as diretrizes da Netflix não apenas preservam a autoria e integridade das obras, que são fundamentos do direito autoral -, mas também estabelecem um modelo de colaboração regulada entre humanos e algoritmos. Trata-se de um paradigma intermediário entre o entusiasmo tecnológico e o ceticismo criativo: a IA como ferramenta de ampliação da imaginação, e não como substituição do criador. 

Em um momento em que a indústria audiovisual oscila entre a aceleração tecnológica e a defesa do trabalho humano, a posição da Netflix oferece uma referência pragmática e equilibrada: proteger os direitos de personalidade e propriedade intelectual sem inibir a inovação, projetando um futuro em que tecnologia e talento humano coexistem sob parâmetros éticos, jurídicos e criativos bem definidos.

Autores

Francesca Balestrin Advogada nas áreas de Propriedade Intelectual e Direito Digital do escritório Silveiro Advogados, é graduada em Ciências Jurídicas e Sociais com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-graduada em Direito Digital, Cybersecurity e Inteligência Artificial pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).

Leonardo Braga Moura Sócio de Silveiro Advogados, com mais de 20 anos de experiência como advogado, empreendedor e professor, nas áreas de Direito Empresarial, Proteção de Dados, Tecnologia e Inovação. Possui certificação de Data Protection Officer (DPO) na União Europeia (ECPC-B), pelo European Centre on Privacy and Cybersecurity da Maastricht University, Holanda.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos